Lennon saiu dos Beatles e gravou canções engajadas. Mas foi assassinado quando a única paz que buscava era a de ser um homem comum
Em julho de 1971, o músico inglês John Lennon e sua esposa, a artista plástica japonesa Yoko Ono, resolveram fazer uma canção de Natal enquanto tomavam café da manhã em Nova York. Eles queriam que a letra incitasse o ouvinte a fazer alguma coisa pela paz, pois a sangrenta guerra do Vietnã estava em curso.
Em questão de minutos, os versos foram ficando prontos, começando com “Então é Natal/ E o que você fez?” Depois de deixar a canção de lado por meses, Lennon resolveu gravá-la em novembro.
Embora o tempo fosse curto demais, pressionou a gravadora para lançá-la antes do Natal. Conseguiu. Mas, devido à divulgação insuficiente, o single alcançou pouco mais do que o 40º lugar das paradas de sucesso. Seu nome era Happy Xmas (The War is Over) – algo como “Feliz Natal (A Guerra Acabou)”.
Nove anos depois, em 8 de dezembro de 1980, Lennon estava chegando a seu prédio quando ouviu um homem chamá-lo. Antes que o músico terminasse de se virar para olhar, o segurança desempregado Mark Chapman o atingiu com quatro tiros de revólver. Lennon faleceu a caminho do hospital.
Sua morte chocou a geração que havia começado ouvindo Beatles, passado pelo desbunde do amor livre e, depois, se engajado em movimentos pela paz e respeito aos direitos humanos.
Nas multidões que logo se formaram para prestar homenagem a Lennon, canções pacifistas de sua autoria eram entoadas em coro. E, no próprio Natal de 1980, Happy Xmas (The War is Over) atingiu o número 1 nas paradas da Inglaterra.
Em 1983, faria estrondoso sucesso nos Estados Unidos e, até hoje, é presença certa na programação de fim de ano das rádios.
Cantor ativista
Esse clamor tardio pela paz não deixa de ser irônico. Desde meados dos anos 70, o compositor já tinha parado de ir a manifestações ou gravar canções de protesto. Nos seus últimos anos, Lennon esteve mais preocupado em curtir a família.
O disco que estava gravando quando morreu não continha nenhum libelo, apenas canções reflexivas e pessoais (que foram lançadas no álbum póstumo Milk and Honey, de 1984).
O período ativista da vida de Lennon começou ainda antes do fim dos Beatles. Em 1969, logo após selar sua união com Yoko, partiu em lua de mel promovendo o que eles chamaram de Bed-In For Peace (“Na Cama pela Paz”).
Em março, eles foram para o hotel Hilton de Amsterdã, na Holanda, e enviaram aos jornalistas um cartão que dizia: “Venha para a lua de mel de John e Yoko: uma sessão de cama”.
Com as recentes esquisitices do casal (a capa do disco Two Virgins, com os dois nus, era um exemplo), houve quem esperasse o pior. Só que, ao chegar, os repórteres encontraram os anfitriões vestidos de branco e falando apenas de paz.
Na segunda sessão do Bed-In, em um hotel de Montreal, no Canadá, eles conseguiram ainda mais atenção. Chamaram o então primeiro-ministro local, Pierre Trudeau, para visitá-los.
O encontro só se concretizaria meses depois, pouco antes do Natal de 1969, e o casal saiu declarando que, se mais líderes tivessem as ideias de Trudeau, o mundo seria um lugar pacífico.
Foi durante o Bed-In canadense que, na presença de 50 fãs, Lennon registrou, com um gravador portátil, a despojada Give Peace a Chance.
Como as andanças de Lennon e Yoko demonstravam, o músico não estava mais preocupado com o destino dos Beatles. Logo veio o fim da banda, anunciado em abril de 1970. Foi aí que o engajamento político se tornou a obsessão da vida de Lennon.
Ele nunca havia lidado bem com a omissão do conjunto diante dos temas palpitantes dos turbulentos anos 60 (os Beatles eram proibidos pelo empresário Brian Epstein de comentar assuntos polêmicos).
Poucos meses após a dissolução do grupo, Lennon devolveu à rainha a Ordem do Império Britânico, que ganhara com os outros três Beatles em 1965.
O ato foi um protesto contra o apoio da Grã-Bretanha à Nigéria durante a repressão a Biafra, um estado que pretendia se separar do país africano (a guerra civil matou 1 milhão de pessoas).
A devolução da medalha também representou a revolta com o suporte dado pelo Reino Unido aos americanos na Guerra do Vietnã. Esse conflito foi o grande alvo das manifestações pacifistas de Lennon.
Perto do Natal de 1970, ele e Yoko espalharam outdoors por 11 cidades do mundo com os dizeres: “War is over! If you want it. Happy Christmas from John & Yoko” (“A guerra acabou! Se você quiser. Feliz Natal de John e Yoko”).
Numa conversa com o paquistanês Tariq Ali (um dos mais importantes escritores de esquerda contemporâneos), publicada na revista Red Mole em janeiro de 1971, Lennon disse que conheceu na pele a opressão das classes populares, embora os Beatles o tivessem afastado da realidade.
“Quando comecei com o rock, esse gênero era a revolução para as pessoas da minha idade”, afirmou. “Quero influenciar as pessoas com a minha música e minhas entrevistas.”
Causas americanas
Lennon parecia mesmo determinado a fazer alguma coisa pelo mundo além de boas canções. Ele saiu de Londres e, em agosto de 1971, foi para Nova York, o grande centro mundial do capitalismo e da contracultura. Lennon e Yoko foram morar no bairro de Greenwich Village, onde se concentrava todo tipo de ativistas.
O casal alugou um humilde apartamento de dois quartos com um colchão no lugar da cama. O Rolls-Royce branco com que circulavam em Londres foi trocado por duas bicicletas.
Nos Estados Unidos, Lennon começou a se engajar em causas americanas. Em setembro de 1971, uma rebelião na penitenciária de Attica, em Nova York, envolveu mais de mil presos.
Quando as negociações emperraram, o então governador Nelson Rockefeller enviou ao local 1.700 soldados, que mataram 32 pessoas. Lennon demonstrou seu descontentamento usando um broche com a inscrição: “Indiciem Rockefeller por assassinato”. E organizou um concerto em prol das viúvas dos presos.
No mesmo mês em que ocorreram os violentos confrontos de Attica, chegou às lojas americanas o disco Imagine, gravado ainda na Inglaterra. A faixa-título fez muito sucesso já no lançamento, e se tornou a mais emblemática canção já feita sobre a paz – foi interpretada por gente tão díspar como a pacifista Joan Baez e o brega Ray Conniff.
Ao piano, John imagina um mundo sem guerras, religiões, posses, ciúmes e tudo mais que seja capaz de gerar conflito.
Mesmo pregando a paz sem parar, Lennon virou uma ameaça aos olhos do governo americano. Era o roqueiro mais influente do mundo – o decadente Elvis, por exemplo, estava fazendo shows para senhoras em Las Vegas – e tinha o objetivo declarado de incitar as massas.
O telefone do músico foi grampeado e seus passos foram seguidos de perto pelas autoridades. Ele de fato estava mantendo contato com figuras conhecidas da polícia ianque, como John Sinclair, fundador do movimento Panteras Brancas (inspirado nos Panteras Negras).
Sinclair estava preso desde 1969 por ter vendido dois cigarros de maconha a policiais disfarçados. Em dezembro de 1971, Lennon e Yoko lideraram mais um concerto político, desta vez no estado do Michigan, em que cantaram “John Sinclair”, que pedia a libertação do ativista.
Coincidência ou não, a Suprema Corte daquele estado autorizou a soltura de Sinclair três dias depois.
Quando o visto de permanência de Lennon e Yoko expirou em fevereiro de 1972, eles receberam uma ordem de deportação – que teve como pretexto uma prisão por posse de maconha acontecida ainda em Londres, em 1968 –, contra a qual recorreram.
Contudo, ao se aprofundar nas investigações, o FBI chegou à conclusão de que o excesso de drogas deixara o músico inofensivo. “Lennon parece ter orientação radical, mas não dá a impressão de ser um verdadeiro revolucionário, já que está constantemente sob a influência de narcóticos”, diz um relatório da época.
Inofensivo ou não, fato é que Lennon começou a se desiludir com as causas – e com as pessoas – que havia apoiado. John Sinclair, por exemplo, o processou para ter uma porcentagem de dinheiro no projeto cinematográfico Ten for Two, justamente o registro de um show organizado por Lennon para pedir sua libertação.
Traições e alcoolismo
Em 1973, frustrado com a esquerda americana, o casal vai viver no luxuoso edifício Dakota, próximo ao Central Park. No final daquele ano, Yoko avisa que está se separando, cansada das traições e do alcoolismo de Lennon.
Sozinho, ele vai para Los Angeles, onde passa meses se drogando e compondo sem parar. Mas, em 28 de novembro de 1974, nos bastidores de um show de Elton John, o casal se reconciliou e voltou à velha relação apaixonada.
Depois de tanto sofrer, 1975 foi um ano inesquecível para Lennon. Fame, parceria dele com David Bowie, alcança o topo da parada em setembro. Logo depois, a Justiça americana finalmente cancela a ordem de deportação do casal.
O cantor passa de perseguido a “cartão postal” de Nova York. Dois dias após a decisão, em 9 de outubro, nasce Sean Taro Ono Lennon – um presente de aniversário para o pai, nascido na mesma data, em 1940. Enfim, chegava a paz (em tempo: longe dali, em abril, a Guerra do Vietnã havia acabado).
Nesse momento, Lennon resolve sair de cena. Ele sentia por não ter sido um bom pai para seu primeiro filho, Julian (que nasceu em 1963, da união com Cynthia). Vivendo a "beatle mania", o músico fora totalmente ausente – nem estava presente no dia do nascimento.
Mas com Sean seria diferente: Lennon anunciou que só voltaria a gravar quando a criança tivesse 5 anos. E assim foi. O período posterior ao nascimento de Sean é tido como o mais feliz da vida de Lennon – longe dos estúdios, o ex-beatle dedicou seu tempo a tarefas domésticas.
Lennon retornou às paradas de sucesso em 17 de novembro de 1980, com o álbum Double Fantasy. Ele escolheu (Just Like) Starting Over “(Justamente Como) Começar de Novo” como first single. E a volta foi para valer: antes do fim do ano, o roqueiro já estava de novo trabalhando em estúdio.
Não cansava de dizer que se sentia seguro em Nova York, cidade que o ajudou a esquecer a paranoia de lugares abertos que adquirira durante os Beatles. Foi esse o homem que Mark Chapman matou. Um homem comum, que certa vez buscou a paz no mundo – mas a encontrou dentro do próprio lar.
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