Francisco Franco roteirizou 'Raza', baseada em si, mas acabou passando pela autocensura em busca de reescrever a história
No século 20, o general Francisco Franco foi um dos ditadores que mais tempo esteve no poder — entre 1939 e 1976. O Franquismo, que tinha uma base definida no catolicismo e no anticomunismo, também foi marcado pela perseguição ferrenha contra opositores e pelo apoio da Espanha aos regimes fascistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Ao contrário do que se passou com a Alemanha e a Itália, porém, o déspota espanhol não sucumbiu com a vitória do Aliados. O Franquismo vigorou até o fim da vida do general, que faleceu em 20 de novembro de 1975, aos 82 anos.
A transição para a democracia, portanto, acabou ocorrendo de forma simplista. Somente em 2006, segundo aponta matéria do InfoEscola, as Cortes Espanholas e do Parlamento Europeu condenaram o Franquismo por conta de violações dos direitos humanos.
Mesmo assim, em 2008, de acordo com a BBC, uma pesquisa apontou que os espanhóis acreditavam que o regime tinha "tanto um lado bom quanto ruim”, com a opinião pública se opondo a processar ex-oficiais de Franco. Além do mais, muitos se consideravam indiferentes à criação de uma comissão da verdade para atribuir responsabilidades pela Guerra Civil espanhola.
Tão controverso quanto o governo de Francisco Franco, está seu legado, especialmente o filme ‘Raza’ (‘Raça’, em tradução livre), de 1942, cujo roteiro foi escrito por ele próprio, mas assinado com um pseudônimo.
Conforme aponta matéria publicada pela BBC, o filme ‘Raza’ foi roteirizado por Francisco Franco e dirigido por José Luis Sáenz de Heredia, primo de Primo de Rivera, que fundou o partido Falange, que tinha inspiração no fascismo. A obra é descrita pelo veículo como tendo “um pedigree de extrema direita”.
Inicialmente, a película serviria apenas como propaganda. O roteiro conta a trajetória da família militar Churrucas, que vivia na zona rural do país. O começo da história se dá no ano de 1897, quando o patriarca morre de forma heróica ao defender a colônia espanhola de Cuba contra os Estados Unidos. Assim, a mãe dos Churrucas precisa cuidar sozinha de quatro filhos (três homens e uma mulher).
Com o passar do tempo, seus filhos passam a seguir carreiras mais tradicionais, com exceção de Pedro, o mais rebelde que embarca na busca de dinheiro e poder político; se aproximando do governo Republicano — enquanto o resto da família é Franquista.
A história termina com Pedro reconhecendo que seguiu um caminho errado e provando a seus familiares que possui a verdadeira alma de “raça espanhola”. No ato final, os Churrucas se unem em prol do heroísmo de José, tido como predestinado, que se tornou um líder militar dos fascistas.
Conforme aponta a BBC, ‘Raza’ acaba sendo uma versão revisada que favorece a família de Franco — sendo José Churruca a espécie de um alter ego ddo ditador. As semelhanças entre as histórias são evidentes: ambas famílias possuem origens galesas e com um histórico de serviço naval, ao menos José que, assim como Franco, serviu ao Exército.
O longa é uma perfeita retratação do ditador como um filho que divinamente foi ordenado pela família nacional espanhola. Muito mais que isso, uma tentativa de oferecer uma versão oficial sobre a guerra civil que ocorreu no país, onde, acredita-se, que meio milhão de pessoas foram mortas.
Para modelar a história da Espanha com base numa visão nacionalista (de família, Deus e a raça espanhola), onde os fascistas lutam pela salvação da Espanha, ‘Raza’ utiliza da tática de mesclar imagens ficcionais com registros reais, para dar mais veracidade ao que é dito — que acaba mesclando José e Franco em um personagem único.
A BBC, por sua vez, define o filme como a obra mais próxima de uma autobiografia franquista. Entretanto, por mais que Franco se orgulhasse dela, a mesma estava longe de ser atemporal?
Segundo Saénz de Heredia, quando ele e déspota assistiram o longa pela primeira vez, o general não poderia ter demonstrado maior satisfação:
Assistimos ao filme juntos, Franco e eu na frente, sua esposa e outros atrás; do canto do meu olho, sob a luz da tela, eu vi que ele estava emocionado, que seus olhos estavam molhados e atentos, o que me deixou feliz, porque significava que tudo tinha dado certo. E quando terminou, ele me disse exatamente isto: 'muito bem, Saénz de Heredia — você conseguiu'", afirma.
Com o passar do tempo, porém, Franco achou necessário reescrever a história por algumas vezes, visto que suas necessidades e visões acabaram mudando; principalmente depois do fim da Guerra, já que os fascistas acabaram do lado perdedor. Era necessário uma outra versão para legitimar seu poder.
Em 1950, porém, Francisco Franco optou por se autocensurar, ordenando a destruição de todas as cópias possíveis do longa. Pouco depois, uma outra versão, ‘Espíritu de una Raza’ (‘Espírito de uma Raça’, em tradução livre), foi lançada. Nela, já não se encontrava mais qualquer saudação fascista.
Além do mais, aponta a BBC, os inimigos do Franquismo mudaram, com a burguesia e os maçons, entre outros, dando espaço única e exclusivamente aos comunistas. Os trechos contra os Estados Unidos também foram retirados, já que as duas nações formaram uma aliança.
‘Espíritu de una Raza’ se tornara uma representação da Guerra Fria. Francisco Franco havia conseguido mais uma vez, reescreveu a história a seu favor.