Arquivos entregues ao Brasil em 2014 evidenciam que torturas e assassinatos eram práticas comuns após o golpe de 64
Publicado em 04/04/2021, às 00h00 - Atualizado em 30/03/2023, às 16h00
"O suspeito é deixado nu, sentado e sozinho em uma cela completamente escura ou refrigerada por várias horas. Na cela há alto-falantes, que emitem gritos, sirenes e apitos em altos decibéis. Então, o detido é interrogado por um ou mais agentes, que informam qual crime acreditam que a pessoa tenha cometido e que medidas serão tomadas caso não coopere. Nesse ponto, se o indivíduo não confessa, e se os agentes consideram que ele possui informações valiosas, ele é submetido a um crescente sofrimento físico e mental até confessar."
Por mais que muitos neguem, o golpe militar de 1964, instaurado em 31 de março de 1964, há exatos 59 anos, assassinou e desapareceu com centenas de pessoas no período de 21 anos em que esteve vigente — terminando em 1985.
As aspas acima são de um arquivo do governo americano trazido por Joe Biden, na época vice-presidente na gestão de Barack Obama, ao Brasil em 17 de junho de 2014.
Ao todo, um HD com 43 documentos produzidos pelas autoridades americanas foram entregues à Dilma Rousseff. Neles há informações sobre a censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar entre 1967 e 1977.
Até aquele momento, grande parte desses documentos eram considerados confidenciais pelo governo americano, que durante anos mirou regimes ditatoriais em diversos países da América do Sul, na chamada Operação Condor, como explica matéria publicada pela equipe do site do Aventuras na História.
A entrega dos arquivos feita pessoalmente por Biden à Dilma, uma das principais oposicionistas torturadas nos porões da ditadura.
O compartilhamento de informações foi feito como uma filosofia da gestão de Obama, conforme aponta matéria da BBC, que pregava por uma transparência maior e a favor dos direitos humanos. Além disso, os americanos tinham a clara intenção de estreitar relações diplomáticas com os países sul-americanos.
Estou feliz de anunciar que os Estados Unidos iniciaram um projeto especial para desclassificar e compartilhar com a Comissão Nacional da Verdade documentos que podem lançar luz sobre essa ditadura de 21 anos, o que é, obviamente, de grande interesse da presidente", disse Dilma, conforme repercutiu o G1 na época.
Entre os documentos, um trecho de um deles, enviado pelo consulado americano do Rio de Janeiro ao Departamento de Estado, em 1973, evidencia como as torturas eram feitas à época. Confira:
Ele [preso torturado] é colocado nu, em uma pequena sala escura com um chão metálico, que conduz correntes elétricas. Os choques elétricos, embora alegadamente de baixa intensidade, são constantes e eventualmente se tornam insuportáveis. O suspeito é mantido nessa sala por muitas horas. O resultado é extrema exaustão mental e física, especialmente se a pessoa é mantida nesse tratamento por dois ou três dias. Em todo esse período, ele não recebe comida nem água."
O arquivo mostra que, ao menos, 126 pessoas teriam sido submetidas a tratamentos semelhantes, isso quando não eram vítimas de táticas mais violentas, como os famosos 'paus de arara'. Os relatos foram obtidos não só com depoimentos de torturados, mas também com relatos de informantes militares — que tiveram seus nomes rasurados.
"Esse é um dos relatórios mais detalhados sobre técnicas de tortura já desclassificados pelo governo dos Estados Unidos", disse Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação Brasileiro do Arquivo de Segurança Nacional Americano, em Washington D.C, à BBC Brasil.
"Os documentos americanos ajudam a lançar luz sobre várias atrocidades e técnicas (de tortura do regime). Eles são evidências contemporâneas dos abusos dos direitos humanos cometidos pelos militares brasileiros. Quase todo o mundo acredita neles. As pessoas que preferem não reconhecer a verdade sobre o que foi feito são os Bolsonaros e aqueles que realmente cometeram esses crimes", completa Peter.
Na época, os documentos trazidos por Biden mostraram que os militares não só torturavam as pessoas, como também as matavam aos montes. Em um dos arquivos, por exemplo, como aponta a BBC, o cônsul-geral americano em São Paulo, Frederic Chapin, relata que havia "um informante e interrogador profissional trabalhando para o Centro de Inteligência Militar de Osasco".
"Ele [o informante] explicou como havia quebrado uma célula 'comunista' envolvendo um agente da polícia civil. O policial foi forçado a falar depois de ter tomado choques elétricos nos ouvidos e mencionou sua conexão com uma amiga, que foi imediatamente detida. Ela não foi cooperativa, no entanto, então foi deixada no pau-de-arara por 43 horas, sem alimentos ou água", completa trecho de um telegrama escrito por Chapin em 1973.
"Isso a quebrou, nossa fonte contou. Tortura, de uma forma ou de outra, é prática comum em interrogatórios em Osasco. Ele também nos deu um relato em primeira mão do assassinato de um subversivo suspeito, o que chamou de 'costurar' o suspeito, ou seja, dar tiros nele da cabeça aos pés com uma arma automática", finaliza.