Em entrevista ao site Aventuras na História, Mauricio fala sobre os 12 anos que foi refém dos militares no Uruguai, as intervenções na América Latina, negacionismo histórico e o atual momento político do continente
“Caminhar pela rua, sem preocupações, dizer o que quero. Ver o sol. Agora, por exemplo, converso contigo pelo telefone e pela janela o sol me abraça. Bom, isso é a liberdade para mim”.
Essa frase pode até retratar um dos muitos momentos que vivemos e que consideramos apenas mais um dia, mas ela representa algo muito maior para Pepe, Ñato e, principalmente, para Ruso — autor da mesma.
Ela representa tudo que José Alberto Mujica, Eleuterio Fernández Huidobro e Mauricio Rosencof, respectivamente, foram privados durante os 4.323 dias em que foram reféns da ditadura militar uruguaia.
Por 12 anos o trio, que fazia parte do grupo de guerrilheiros dos Tupamaros, viveram em condições subumanas. “O período mais sombrio que vivi, mas que sobrevivi, foi quando caçaram dirigentes do Movimento Tupamaro, onde o governo, por qualquer motivo, nos condenava”, disse Rosencof em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História em 2021.
Quando os militares ofereciam comida, ou pelo menos o que eles chamavam como tal, recebiam o alimento no meio de bitucas de cigarro ou misturadas junto à terra. Além disso, também tiveram que se saciar com larvas, moscas e até mesmo pedaços velhos de papeis. “Não tínhamos o que comer, um prato para se alimentar, erámos agredidos, não vimos nenhuma outra pessoa por 12 anos”.
“Estivemos presos em calabouços de um metro e oitenta por oitenta centímetros, embaixo da terra, onde não recebíamos água e tivemos que aprender a reciclar nossa própria urina”, relata Mauricio, que é um dos autores do livro 'Memórias do Calabouço', que recentemente foi publicado no Brasil pela editora Rua do Sabão. “Quando se vive uma luta política, você pode viver todas as alternativas possíveis: a vida, a morte, a prisão, tudo que se pode pensar”.
Questionado se tinha medo de morrer, ele responde: “Bom, esse é um pensamento em todos que estão vivos, não?”. Cada vez em que ele, Pepe e Ñato eram levados de um calabouço ao outro, durante um translado, revela que esses momentos pareciam ser cada vez mais próximos do fim. “Sempre que a porta era aberta e alguém entrava dentro de nosso calabouço, fora do horário rotineiro, pensamos que chegaria nossa hora. Isso acabou se tornando um pensamento permanente”.
Em 27 de junho de 1973, um Golpe de Estado derrubou a democracia uruguaia. Assim, partidos políticos foram proibidos de funcionar, sindicatos e grêmios estudantis ficaram em segundo plano. Já os meios de comunicação passaram a sofrer censura. Os grupos de resistência, também, foram caçados impiedosamente, conforme explica o Brasil Escola.
Apesar de distintas em muitos aspectos, os Golpes militares na América Latina possuem características em comum, como o autoritarismo, a violência e o clima de medo que paira sobre toda a sociedade.
“Acredito que haja uma matriz comum nesses golpes de Estado. A América Latina viveu, constantemente, diversos golpes. Inclusive, há golpes que estão, mais ou menos, institucionalizados”, explica Rosencof.
Entre os exemplos citados pelo ex-diretor de Cultura municipal de Montevidéu, está o Brasil. “Como agora podemos ver, Lula acabou sendo inocentado de todas as acusações e manipulações de [Sérgio] Moro. E tudo isso por uma vantagem que possibilitou o favorecimento de alguém que ganhou as eleições de uma maneira não muito justa as tradições institucionais e democráticas brasileiras”.
Outro ponto citado por Mauricio é a participação de Henry Kissinger — ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos e um dos mentores da chamada Operação Condor — em golpes de estado como os que ocorreram no Chile e no Uruguai.
Em 2002, conforme relata matéria publicada pelo G1, os Estados Unidos divulgaram mais de 4 mil documentos do Departamento de Estado sobre a participação de agências de inteligência americanas durante os períodos ditatoriais na América do Sul.
Entre os arquivos há, por exemplo, anotações que datam o ano de 1976, quando Kissinger se encontrou com o ministro de relações exteriores argentino. “Se há coisas que precisam ser feitas, vocês devem fazê-las rapidamente”, diz Henry sobre o que indica ser a aprovação a repressão de dissidentes.
“Me espanta também ler as páginas sobre os registros de Henry Kissinger, onde ele explica com total impunidade, como o Departamento de Estado planejou meticulosamente o golpe e a morte de Salvador Allende”, diz Mauricio.
Pare ele, há padrões bem iguais sobre os golpes que aconteceram nesses países. “Todos passaram pela Escola das Américas, que ficava no Panamá, que pertencia aos Estados Unidos, onde se formava os militares de toda a América Latina”.
Assim como no Brasil, Rosencof também explica que no Uruguai há uma onda constante de negacionistas, que tentam ‘reescrever’ a história por intenções políticas claras ou até mesmo pela falta de conhecimento e desinteresse de outros grupos.
“Muitos podem até negar a existência dos campos de concentração, por exemplo, ou até mesmo o genocídio dos judeus, ou de quem quer que seja, mas isso não deixa de ser real. Há o testemunho de pessoas que sobreviveram a esse caos, que deixaram seu legado. A memória e a história estão ao alcance da mão de todos que querem opinar sobre o tema”.
Em relação ao Brasil, ele rebate a descrença de muitos em relação ao destino de Olga Prestes. “No Brasil eu sei que também negam que a esposa de Luís Carlos Prestes, Olga, que inclusive tem origem alemã, depois que foi detida e enviada para a Alemanha Nazista, acabou em um campo de concentração. Isso se pode negar? Como?”, indaga.
“Existem livros, documentos, memórias que evidenciam isso. Por mais que tentem deslocar fatos, nada supera a realidade”.
Em meados de 2019, uma onda de protestos populares tomou conta do Chile, como mostra matéria publicada pela equipe do site Aventuras na História. Na ocasião, manifestantes de todo o território se levantaram contra o aumento de preço das tarifas de transporte público nos horários de pico. O grupo sofreu uma forte repreensão da polícia, mas o presidente Sebástian Piñera pediu perdão, e finalmente cancelou o aumento.
No entanto, os protestos não cessaram. Quando os atos completaram um ano, manifestantes voltaram a pressionar o Governo, desta vez para a criação de um novo plebiscito constitucional, que derrubaria algumas leis vigentes deste o fim da ditadura Pinochet e que seria a primeira igualitária, com colaboração social e paridade de gênero, tendo em vista a participação equitativa de mulheres na formulação da nova constituição.
Assim, no dia 25 de novembro do ano passado, uma votação popular optou pela mudança da carta fundamental, o que abrirá caminhos para que a nova convenção constitucional seja redigida.
Rosencof vê com bons olhos essa manifestação popular. “Agora, os chilenos estão lutando porque é uma maneira que encontraram de combater algumas leis dos tempos de Pinochet. E agora querem modificá-las. Foi uma forma que encontraram de aprender como formar um denominador comum para acabar com os privilégios da sociedade”.
Entretanto, ele acredita não necessariamente esse tenha que ser o único caminho a ser escolhido. “Os chilenos sabem o que fazer em seu país, assim como os brasileiros sabem o que fazer por aí; e como nós sabemos o que fazer no nosso. Não existe um denominador comum. Não existe tradições similares em matéria de golpe e de institucionalização”.
Assim como ele também acredita que, por mais que uma onda conservadora esteja rondando os mais distintos lados do globo, isso não significa que as pessoas que lutem pela democracia e pelo fim dos privilégios sociais estão mais fragilizadas agora, muito pelo contrário.
“Analisando a situação na América Latina, podemos citas os indígenas aimarás, que estão no governo da Bolívia, depois de todo o operativo golpista que tirou Evo Morales do poder. Que decidiu sair para evitar conflagrações entre irmãos de sua terra, se exilando em outro país”, cita um exemplo.
“Mesmo assim, eles seguiram lutado pela reinstitucionalização. Posteriormente, houve outras eleições e o partido de Evo Morales saiu vitorioso e hoje o presidente da Bolívia é da filiação dele. Com a presença muito marcante dos índios aimarás, que são um fenômeno muito marcante na América Latina, onde os nativos não aprecem na primeira fila das candidaturas políticas”, completa.
Mauricio acredita que, por mais que os países enfrentem oscilações políticas, elas não serão eternas e que as lutas sim devem ser permanentes. “Como permanente na América Latino digo que são as que seguem sendo os temas mais fundamentais, como os problemas da terra, que está privilegiada na mão de poucas pessoas; e também na preocupação de quem quer seguir vivendo com seu trabalho e possuindo sua parcela de terra para trabalhar”.
“Um outro ponto seria a presença dos Estados Unidos, que de alguma maneira seguem intervendo. O que considero um certo risco, porque eles vêm com um espírito de ser proprietários das chamadas repúblicas bananeiras”, completa.
“Um exemplo disso, é quando Jacobo Arbenz ganha as eleições na Guatemala e planeja um ministério que tem como objetivo a distribuição de terras. Então, imediatamente, os Estados Unidos organizam uma invasão com o intuito de que as terras não deixem as mãos dos grupos de oligarquia, de outras países e de empresas norte-americanas".
Sobre a versão que muitos acreditam de que os americanos apenas lutam pela democracia nas Américas, ele é enfático: “Não acredito que os Estados Unidos sejam tão generosos que queiram impor suas intervenções apenas para dignificar a política com esses sujeitos”.