Alguns especialistas acreditam que o rei da Idade Média pode ter realmente existindo
Não há quem não tenha ouvido falar, pelo menos uma vez, sobre o reiArtur e sua corte de jovens e bravos vassalos. Ostentando portentosas armaduras, combatendo pela honra de suas amadas e habitando grandes castelos, eles evocam os ideais da cavalaria, típicos da Idade Média. Da literatura às óperas, das artes plásticas ao cinema de Hollywood, poucos personagens mereceram tanta atenção e tornaram-se tão conhecidos. Mas, afinal, este rei existiu?
Para responder a esta pergunta e encontrar o verdadeiro Artur teremos que voltar mais longe no tempo. Não adianta procura-lo nos séculos 10 e 1, onde ele foi eternizado como um nobre cristão senhor de feudos. Esse rei nunca existiu. A história do possível Artur começa na Bretanha (que corresponde hoje ao norte da França e ao Reino Unido).
Ali viviam os celtas, um povo com origem no centro sul da Europa, que se espalhou pelo continente durante a Idade do Ferro, aproximadamente em 600 a.C. Guerreiros tribais violentos, eles não reconheciam nenhum poder fora de seu próprio clã.
Com a ocupação romana, no século 1, no entanto, parte das tribos celtas foram sendo integradas ao império, entre eles estavam os bretões. Por cinco séculos, a Bretanha esteve sob o domínio romano que, além de trazer desenvolvimento para a região, protegia-a de invasões.
Com o declínio do império, Roma passou a retirar suas legiões e, no início do século 5, os bretões tornaram-se alvo do ataque de pictos e escotos, tribos também de origem celta que habitavam o norte da ilha, onde hoje é a Escócia e a Irlanda. Mas vinha pelo mar as maiores ameaças à paz na Bretanha: anglos, jutos e saxões, povos de origem germânica.
Desde o abandono das legiões romanas, os bretões vinham sofrendo derrotas e o avanço anglo-saxão parecia irreversível. Se haveria um herói na história desse povo, era uma boa hora para ele aparecer. Isso teria acontecido em 517, na batalha do Monte Badon, na qual os bretões conseguiram uma vitória decisiva contra os invasores.
De fato, a arqueologia comprova que na época que sucede a batalha, as invasões na Bretanha diminuíram e as tribos puderam desfrutar de uma certa paz que duraria algumas décadas.
“Se Artur existiu, ele provavelmente combateu em Monte Badon. A lenda arturiana se remete ao mito da resistência e ao desejo de unificação. E a batalha em Badon é o único momento histórico comprovado em que isso de fato ocorreu”, diz Adriana Zierer, historiadora da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro.
Essa é a primeira coincidência entre o mito e a história. Mas o certo é que o Artur de Monte Badon seria completamente diferente daquele que conhecemos pelos livros e filmes.
“Os guerreiros da época eram extremamente violentos. Suas armas eram as espadas de ferro — uma curta e leve, outra pesadíssima e com quase um metro de lâmina — , machados rombudos e escudos. Os combates eram travados no chão, em meio a um corre-corre danado. As lutas eram corporais e rápidas: a estratégia era acertar uma forte pancada na cabeça ou nas costas do inimigo e derrubá-lo. Aí, a vítima não tinha mais chance: com uma espada mais curta e leve, ela era cortada preferencialmente na garganta, e deixada para sangrar e morrer” conta Ricardo Costa, historiador da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Os celtas usavam cavalos para tração, mas raramente para montaria. Nas batalhas, isso simplesmente não ocorria. Os combates eram comuns na Bretanha decadente do século 5. O padrão de vida proporcionado pelo Império Romano, com construções de pedra e até aquecimento central, foi decaindo.
A vida era extremamente rústica e as estradas que ligavam as cidades foram estragando, isolando as tribos. Os bretões não tinham unidade social ou religiosa: os clãs pouco se visitavam, não celebravam datas sagradas e mal comerciavam entre si, com exceção de trocas envolvendo cereais, roupas e calçados de couro. Viviam desconfiados de seus vizinhos, em clima de instabilidade política.
As alianças entre os clãs eram raras as disputas por território, ou qualquer outra diferença, geralmente se resolviam no braço. A maioria das pessoas eram camponeses vivendo uma vida muito simples, em casas de pau-a-pique. As moradias tinham um buraco no teto para sair a fumaça e o fogo era usado tanto para cozinhar carnes e cereais quanto para esquentar o ambiente.
A faca era praticamente o único utensílio — garfos e colheres eram raros — e um chifre oco era usado como copo para beber. A elite que escapava dessa pobreza era composta por alguns bretões romanizados, que desfrutavam de um conforto um pouco maior, vivendo em habitações fortificadas de pedra e de madeira, que chegavam até a importar produtos finos como o vinho. Era nesse grupo de privilegiados que se formavam os guerreiros, e Artur teria vivido entre eles, onde aprendeu a usar a espada e a lança.
Essas são as poucas provas que a arqueologia conseguiu para reconstituir o mundo arturiano. A maioria dos artefatos do período, como objetos de madeira e tecidos, se decompuseram nos pântanos da região e a única coisa que sobrou mesmo foram os buracos da fundação das casas. No século passado houve um grande esforço para descobrir alguma coisa que comprovasse o mito de Artur.
Em 1930, o arqueólogo Raleigh Radford, em missão oficial patrocinada pelo Ministério Britânico, escavou o Castelo de Tintegel, em Northern Cornwall, a 200 quilômetros de Londres. Acreditava-se que aquele seria o local onde Artur nascera. As pesquisas confirmaram que o local havia sido uma fortificação no século 6. Foram encontrados potes e vasos de cerâmica importada, indicando que se tratava de um raro entreposto comercial.
“Depois de 20 anos de trabalhos, a arqueologia não conseguiu provar que Artur foi concebido ali, mas mostrou que foram usados fatos reais na narrativa sobre ele”, afirma Geoffrey Ashe, historiador da Universidade de Cambridge, Inglaterra, e autor do livro A Descoberta de Rei Artur.
Para Ashe, um dos maiores e mais assíduos pesquisadores sobre o tema, existiu um Artur histórico e o nome dele é Riothamus, versão latina do título bretão “Rigothamus”, que quer dizer rei supremo. A melhor evidência de que Riothamus realmente existiu é uma carta do prefeito de Roma em torno de 470.
“Esse era apenas um título, mas alguns relatos de época se referiam a ele como Artur, que poderia ser seu nome de batismo”, diz Ashe.
Riothamus cumpre alguns requisitos para ser aceito como Artur: ele participou de campanhas militares na região que hoje corresponde ao País de Gales, fato também atribuído ao rei das lendas, e lutou na guerra contra os invasores da Bretanha.
Mas se esse fosse o nosso homem, Artur teria nascido antes do que se imagina, durante o domínio romano. Ele teria sido educado, falaria latim, e poderia ter sido um rei de fato, não apenas um líder do período conturbado que se seguiu. Sabe muito pouco sobre Riothamus, mas um evento famoso ligado a ele foi o envio, a pedidos do imperador, de um exército de 120 mil homens para ajudar a defender Roma contra invasores visigodos.
Tudo indica que Riothamus tinha uma aliança com Roma, um sinal claro de seu poder, mas certamente o evento não condiz com a imagem de um líder disposto a defender a Bretanha a qualquer preço. A tese de Ashe é instigante, mas está longe de ser consenso.
Diante de tantas incertezas e da falta de material histórico confiável, o renomado historiador David Dumville, também da Universidade de Cambridge, exortou a hipótese do colega, e fez um apelo para que todos os historiadores abandonassem o assunto por completo. O pedido funcionou e, nos últimos 20 anos, praticamente nenhum historiador da academia se aventurou a descobrir a identidade secreta do rei.
A Batalha de Badon foi o evento fundador do mito de que um líder bretão voltaria para unir todos os clãs contra os invasores. Se Artur entanto, sabemos que depois dela, as lendas sobre esse guerreiro só aumentaram.
Em um raro vestígio reconhecidamente histórico datado do século 6 — cerca de 100 anos depois de Monte Badon —, o livro De Excedio et Conquestu Britanniae (A Destruição Britânica e Sua Conquista, sem versão em português), escrito por um monge chamado Gildas, descreve a Bretanha como um país, subjugado pelos saxões.
O religioso protesta contra os líderes locais, que faziam alianças com os estrangeiros para enfrentar escotos e pictos do norte, o que acabou abrindo espaço para a invasão. No fim, ele clama pela volta do guerreiro que havia vencido a Batalha de Badon. O único detalhe é que o nome desse líder não era Artur, mas Ambrósio Aurélio.
Artur mesmo, com esse nome, só apareceu no século 9, num relato conhecido como Historia Brittonum (História dos Bretões) e atribuído a outro monge: Nennius. Ele conta 12 grandes vitórias de um líder corajoso e inteligentíssimo chamado Artur, que teria colecionado vitórias sobre os saxões, culminando com o triunfo em Monte Badon.
Na década de 70, linguistas e historiadores reviraram a obra de Nennius e não restou dúvida para ninguém de que ela é baseada no texto de Gildas. No entanto, a obra de Nennius apresenta novos componentes retirados de lendas celtas e galesas.
Ele conta, por exemplo, que em uma batalha, Artur teria matado 940 inimigos com um só golpe. Essa era uma forma tradicional nas narrativas celtas: incluir feitos obviamente inverídicos fazia crescer a fama do guerreiro.
A maior novidade acrescida por Nennius, o nome Artur, também tem uma referência na mitologia celta: uma coletânea de lendas sobre antigos heróis galeses chamada Mabinogion fala de um líder chamado Artur.
Só em 1470 foi publicado o romance que daria ao rei seu acabamento final, que conhecemos hoje. Le Morte d'Arthur (A Morte do Rei Artur, sem versão em português), de Thomas Malory, reuniu todos os elementos anteriores para produzir uma narrativa coerente, onde todas as versões se encaixavam para dar aos britânicos o seu herói. O que ficou, afinal, foi um homem valoroso, de inegáveis força e senso de justiça. É como o rei vive no imaginário de seu povo e acabou sendo assim no mundo todo.