De todo o esqueleto de Arnegunde, apenas um órgão foi preservado para a eternidade, intrigando cientistas por décadas
O arqueólogo Michel Fleury se deparou, em 1959, com um pulmão bem preservado dentro de um sarcófago de pedra na Basílica de St Denis, em Paris, na França. Lá, os mais importantes reis franceses do passado foram enterrados ao longo dos séculos.
Estavam próximos do órgão um esqueleto, uma mecha de cabelo, joias e fragmentos de tecidos e couro, que intrigaram o pesquisador e fizeram com que um estudo de décadas fosse iniciado.
Foi apenas em 2016 que cientistas chegaram a uma conclusão satisfatória sobre o que colaborou para a preservação do pulmão e se tinha sido mumificado de forma natural, com o passar do tempo, ou se havia sido deliberadamente embalsamado.
Após a descoberta, os arqueólogos conseguiram identificar o pulmão, e consequentemente o esqueleto, como sendo a rainha Merovíngia Arnegunde, uma das seis esposas do rei Clotário I, que viveu entre os anos 511 e 561, e mãe do rei Chilpéric I.
A identificação foi feita por meio do anel de ouro encontrado junto aos restos mortais, que apresentavam a inscrição "Arnegundis" ao redor de um monograma central "Regine", como relata o portal Live Science.
A nobre pertencia à realeza merovíngia, que estabeleceu o reino pós-romano mais poderoso na Europa Ocidental entre os séculos 5 e 8. O esqueleto da rainha é um dos poucos que restaram desse período, sendo considerado extremamente importante.
De acordo com as investigações feitas pelos pesquisadores, Arnegunde tinha 1,54m de altura e morreu com cerca de 61 anos de idade por causas ainda não conhecidas.
Uma equipe internacional de cientistas foi responsável pela análise dos restos mortais, liderados por Raffaella Bianucci, bioantropóloga da Seção de Medicina Legal da Universidade de Torino, na Itália.
Segundo a especialista, "do ponto de vista macroscópico, o pulmão parece bem preservado, enquanto o corpo está completamente esqueletizado".
Ela ressaltou, no entanto, que o cinturão de cobre que o esqueleto da rainha usava provavelmente teve papel importante para a conservação do órgão, que pode ser impressionantemente visto até os dias de hoje.
Por meio de uma microscopia eletrônica de varredura nas biópsias pulmonares, o grupo percebeu que havia uma grande concentração de íon cobre na superfície do tecido pulmonar do órgão investigado. Havia ainda presença de um óxido de cobre.
Outras análises bioquímicas feitas pelos pesquisadores revelaram ainda que o material analisado apresentava ácido benzóico e compostos relacionados no pulmão, ainda que em níveis mais baixos.
"Essas substâncias são comuns no reino vegetal e perfis semelhantes já foram relatados nos bálsamos de corpos mumificados egípcios", afirmou Bianucci.
Ela continua: "Como Arnegunde usava um cinto de liga de cobre em volta da cintura, especulamos que o óxido de cobre nos pulmões é devido ao desgaste do cinto”.
"As propriedades de preservação do cobre, combinadas com o tratamento de embalsamamento de especiarias, podem ter permitido a preservação dos pulmões", completa.
Para a equipe, a principal possibilidade é de que a rainha tenha sido submetida a uma injeção oral de um fluido feito de especiarias ou plantas aromáticas, visto que existem relatos históricos de que tais procedimentos eram usados na França durante o século 6 para a mumificação artificial da realeza.
"Durante o estudo dessa múmia, descobrimos que o corpo não passou por remoção de órgãos e cérebro. Em vez disso, parece que uma solução de embalsamamento foi injetada pela boca", explicou Albert Zink, chefe do Instituto EURAC para Múmias, que participou do estudo. Por isso, “o líquido se aglomerou no pulmão, que é o único órgão bem preservado".
O método teria sido aprendido com os romanos, que, por sua vez, teriam adotado o procedimento dos egípcios. Ainda assim, Bianucci destaca que "claramente, a mumificação merovíngia era muito menos sofisticada".
"Baseava-se essencialmente no uso de tiras de linho embebidas em óleo e resina, usadas com especiarias e plantas aromáticas como tomilho, urtiga, mirra e babosa", afirmou Bianucci.
"A Rainha Arnegunde é um caso particularmente complexo", concluiu a pesquisadora. "Desde que foi exumada em 1959, seus restos mortais sofreram vários deslocamentos, desaparecendo na década de 1960 para finalmente ressurgir em 2003."