Guerrilheiro baiano lutou contra o autoritarismo durante toda a vida
Desde o fim de 1968, as ligações entre a Ordem dos Dominicanos do bairro de Perdizes, em São Paulo, com os membros da Ação Libertadora Nacional (ALN, organização clandestina que atuava na luta armada contra a Ditadura Militar) já eram bem conhecidas dos americanos que colaboravam com a repressão no Brasil.
O papel dos religiosos era principalmente logístico: escondiam material considerado subversivo e tinham liberdade para fazer o mapeamento de áreas no interior para guerrilha rural. Ajudavam na recuperação de feridos em combate com a polícia e facilitavam a fuga do país daqueles mais perseguidos.
Um dos frades chegou a comprar, do próprio bolso, um Fusca azul para os revolucionários. Quando precisavam de mais apoio, procuravam auxílio de outras ordens religiosas — igualmente inconformadas com a violência bárbara do regime. Só que esse movimento todo e o número extenso de pessoas envolvidas deixaram a conexão exposta.
Os agentes da repressão só não prendiam os freis de uma vez porque queriam dar corda a mais descuidos com o sigilo. Esperavam que um deles levasse ao paradeiro do inimigo número 1 do governo autoritário: Carlos Marighella, político baiano fundador da ALN. Maior estrategista da luta armada contra a Ditadura.
Uma sequência de displicências no segredo dessa relação entre guerrilheiros e dominicanos levou Sérgio Paranhos Fleury, o temido delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), a comandar a perseguição a dois freis, Ivo e Fernando, numa viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro.
No dia 2 de novembro de 1969, já em terras cariocas, os religiosos foram presos e levados ao quinto andar do prédio do Ministério da Marinha. E foi lá que aqueles homens de Deus conheceram o inferno em vida.
Foram espancados, colocados no pau de arara e sofreram eletrochoques. Fleury insistia em saber onde estava Marighella. Ao receber descargas elétricas nos ouvidos e no pênis, o frade Fernando deu um grito de dor tão forte que deslocou sua mandíbula. Um dos torturadores encaixou sua boca com um soco no queixo. A violência foi tamanha que os agentes conseguiram a informação que queriam. Mas talvez isso nem fosse necessário.
“A repressão decidiu envolver os dominicanos para, em primeiro lugar, esconder quais eram as fontes para chegar ao Marighellae, também, para desmoralizar a Igreja, porque, desde o AI-5, a Igreja começou a se opor à Ditadura”, afirma Frei Betto, autor de "Batismo de Sangue" (2000), que narra os episódios em torno da morte do guerrilheiro. Marighella se reunia com os frades à noite, na altura do número 800 da Alameda Casa Branca, em São Paulo.
Frei Fernando de Brito foi obrigado a acertar um encontro com Marighella, por telefone, e 28 policiais acompanharam o delegado Fleury nessa tocaia na noite de 4 de novembro.
Rodeados de policiais armados, escondidos, Ivo e Fernando esperaram como sempre no automóvel até que o líder da ALN surgiu na rua, a pé, usando uma peruca como disfarce. Assim que Marighella se acomodou no automóvel, os policiais saíram de seus esconderijos. Arrancaram os freis do veículo e os atiraram ao chão, enquanto outros encurralavam o alvo daquela caçada humana.
Fleury deu-lhe voz de prisão, mas Marighella lutou para se desvencilhar dos policiais e, assim que se mexeu, aquele homem, já com seus 57 anos, foi fuzilado à queima-roupa: recebeu tiros nas nádegas, no púbis, no queixo e no tórax.
“Marighella já suspirou pela última vez quando seus matadores se convencem de que ele está mesmo desarmado, sem um canivete sequer”, escreve seu biógrafo, o jornalista Mário Magalhães.
O que acharam foi um frasco com cápsulas de cianureto. O revolucionário sempre dizia aos companheiros que a repressão jamais o prenderia vivo: “Não alimentarei noticiário da Ditadura. Não serei troféu.”