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Matérias / Getúlio Vargas

Populista, autoritário e 'mártir': As controvérsias em torno da figura de Vargas

Setenta anos após sua morte, Getúlio Vargas segue como um personagem contraditório em suas ações e em seu legado, desafiando análises simplistas

Luiza Lopes Publicado em 18/08/2024, às 11h00

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Getúlio Vargas - Getty Images
Getúlio Vargas - Getty Images

Nas primeiras horas de 24 de agosto de 1954, o presidente Getúlio Vargas tirou sua própria vida com um tiro no peito. A morte do político encerrou seu segundo mandato presidencial, iniciado três anos antes, em meio a uma profunda crise. 

Setenta anos após o óbito, ele segue como um personagem contraditório em suas ações e em seu legado, que desafia análises historiográficas simplistas e dicotômicas. 

Vargas é uma figura importantíssima de nossa história, muito controverso e que suscita amor e ódio. Conhecer o governo dele, seus paradoxos, suas polêmicas, ajuda a gente a conhecer também o que é o Brasil, o que nós somos enquanto sociedade", afirma Thiago Cavaliere, doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em entrevista à Aventuras na História. 

Fernando Sarti, doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), concorda: "Há um consenso entre os historiadores: o peso inegável de Vargas na construção do Estado e da sociedade brasileira no século XX".

“Algumas pessoas consideram seu legado nefasto e um horror, enquanto outras o veem como uma maravilha. Independentemente das opiniões, a centralidade dessa figura é inquestionável”, conta Sarti em entrevista à Aventuras na História.

Cavaliere também reflete sobre o sentimento dos brasileiros quando o nome do ex-presidente é mencionado.

"Quando falamos publicamente sobre Vargas, a reação das pessoas não tem meio-termo: parte o chama de 'fascista' ou 'ditador', parte chama de 'o melhor presidente que o Brasil já teve'. Acho que essa é a lembrança que ficou na mente das pessoas", acrescenta ele. 

Carta-testamento

Ao lado de sua cama, o presidente deixou uma "Carta-testamento", endereçada ao "povo brasileiro". O texto se tornou um dos mais influentes e icônicos da história política do país, com efeitos imediatos e significativos.

Poucas horas após a morte, o documento foi lido emocionadamente pelo então Ministro da Economia, Oswaldo Aranha, através da rádio Nacional, documenta a Assembleia Legislativa de São Paulo.

Na carta, ele se apresentava como vítima de uma conspiração das elites e de interesses estrangeiros, o que gerou uma comoção nacional e o transformou em uma espécie de mártir para muitos brasileiros.

"Nós trabalhamos a carta de Vargas como um documento quase religioso. Ele se coloca como mártir. Quase como um Jesus Cristo, que oferece sua morte para a salvação do povo", diz Cavaliere

À Aventuras na História, Marcos Napolitano, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), reforça que "há no documento uma forte carga emocional, incrementada pela narrativa de martírio do líder em nome do povo". 

Nesse sentido, historiadores debatem se sua morte foi um ato de defesa dos interesses populares ou uma estratégia para assegurar seu legado diante da crise política que enfrentava.

A carta-testamento pode ser encarada como um fim triste e absurdamente impactante de uma figura política que chegou ao máximo que se pode chegar para salvar sua biografia. Quem tira a própria vida, em virtude de uma (suposta) injustiça, se declarando uma pessoa que viveu em função do povo brasileiro, nada mais é para os trabalhadores como um herói. E foi essa a imagem que ficou no imediato pós-suicídio", pontua Cavaliere
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Getúlio Vargas, presidente do Brasil entre 1930 e 1945 e entre 1951 e 1954 / Crédito: Governo do Brasil via Wikimedia Commons

"Nem de esquerda, nem direita"

Como aponta Cavaliere, o "mal-estar" no debate sobre a figura de Vargas não existe só entre os historiadores, mas também no meio político, uma vez que, "apesar de ter sido o presidente que por mais tempo governou o país (18 anos), ele não tem hoje um legado político-partidário". 

"Ao contrário do que ocorreu na Argentina, em que existe peronismo de direita e de esquerda, aqui no Brasil não houve uma continuidade político-partidária em relação ao varguismo. Talvez o PDT, de Leonel Brizola, tenha sido quem tentou manter a política-ideológica varguista, mas isso se perdeu com a morte dele", afirma. 

O estudioso também reflete sobre a visão que a esquerda e a direita compartilham hoje sobre o ex-presidente.

O historiador explica: "Vargas não atende 100% às esquerdas porque perseguiu figuras de esquerda durante seu governo e foi um ditador durante oito anos. Por outro lado, também não atende a quem é de direita, porque era a favor de um Estado grande, com empresas nacionais, e apoiou a criação de uma ampla legislação trabalhista, muito criticada pela direita".  

Líder populista?

Ao longo da história, o populismo se manifestou como um fenômeno político multifacetado ligado às circunstâncias locais. De modo geral, é caracterizado por um discurso que apela diretamente ao "povo" contra uma elite percebida como corrupta ou desconectada das necessidades populares. 

Vargas, por sua vez, foi consagrado pela historiografia como um “líder populista”, devido à defesa de pautas que representavam, a princípio, os interesses das classes trabalhadoras. 

Uma das marcas de seu governo, por exemplo, foi a criação de uma ampla legislação trabalhista, incluindo a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943.

A medida beneficiou os trabalhadores urbanos e ajudou a consolidar sua base de apoio popular, sendo "a conexão mais forte e que permanece na mente das pessoas hoje em dia ao lembrar de Vargas", segundo Cavaliere.

Além disso, ele utilizava outros dois mecanismos associados ao populismo: um forte discurso nacionalista e a concentração de poderes de forma autoritária, especialmente durante o período do Estado Novo (1937-1945), quando governou sem a existência de partidos políticos e com controle sobre a imprensa. 

“Foi um momento de gênese de uma política de massas contraditória, que mesclava autoritarismo com aberturas democráticas”, aponta Napolitano.

No entanto, essa visão que foi criada de Vargas como "carismático e populista" tem sido questionada por historiadores.

Eu acredito que ele sempre foi mais um homem de Estado, um oligarca, mas que percebeu que era impossível governar e modernizar o Brasil sem algum apelo simbólico e sem concessões, ainda que tímidas, às massas trabalhadoras”, explica Napolitano

Cavaliere concorda: “Por um lado, ele criou a CLT, mas por outro ele acabou com a autonomia sindical e prendeu líderes trabalhistas que pensavam com a própria cabeça e que não aderiram ao seu projeto”.