No fim do século 19, países europeus repartiram o continente africano entre si e o exploraram durante quase 100 anos
Isabelle Somma, Arquivo Aventuras na História Publicado em 26/02/2023, às 18h00 - Atualizado em 01/01/2024, às 10h48
Quando encerrou a Conferência de Berlim, em 26 de fevereiro de 1885, o chanceler alemão Otto von Bismarck inaugurou um novo – e sangrento – capítulo da história das relações entre europeus e africanos.
Menos de três décadas depois do encontro, ingleses, franceses, alemães, belgas, italianos,espanhóis e portugueses já haviam conquistado e repartido entre si 90% da África – ou o correspondente a pouco mais de três vezes a área do nosso país.
Essa apropriação provocou muitas mudanças profundas não apenas no dia a dia, nos costumes, na língua e na religião dos vários grupos étnicos que viviam no continente, como também criou fronteiras que, ainda hoje, são responsáveis por tragédias militares e humanitárias.
O papel da conferência, que contou com a participação de 14 países, era delinear as regras da ocupação.
“A conferência não ‘dividiu’ a África em blocos coloniais, mas admitiu princípios básicos para administrar as atividades europeias no continente, como o comércio livre nas bacias dos rios Congo e Níger, a luta contra a escravidão e o reconhecimento da soberania somente para quem ocupasse efetivamente o território reclamado”, registrou o historiador Guy Vanthemsche, autor de Belgium and the Congo, 1885-1980 (“Bélgica e Congo, 1885-1980”).
A rapidez com que a divisão ocorreu foi consequência direta da principal decisão do encontro, justamente o princípio da “efetividade”: para garantir a propriedade de qualquer território no continente, as potências europeias tinham de ocupar de fato o quinhão almejado.
Tudo isso provocou uma corrida maluca em que cada um queria garantir um pedaço de bolo maior que o do outro.
“Em pouco tempo, com exceção da Etiópia e da Libéria, todo o continente ficou sob o domínio europeu”, disse a historiadora nigeriana-americana Nwando Achebe.
A Libéria, formada por escravizados libertos enviados de volta pelos Estados Unidos, havia se tornado independente em 1847. Na Etiópia, a independência foi garantida depois da Conferência de Berlim, com a vitória do Exército do imperadorMenelik II sobre tropas italianas na batalha de Adwa, em 1896.
O interesse europeu pela África vinha de muito tempo antes da conferência. No século 15, os portugueses já haviam chegado aos arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, iniciando sua ocupação do continente (que depois se estendeu a Angola e Moçambique).
Os britânicos ocuparam partes da atual África do Sul, do Egito, do Sudão e da Somália no século 19. No mesmo período, os franceses se apoderaram de parte do Senegal e da Tunísia, enquanto os italianos marcavam presença na Eritreia desde 1870. Em 1902, França e Inglaterra já detinham mais da metade do continente.
A ocupação não se deu somente com as forçadas armas de fogo, que eram novidade para muitos dos povos subjugados. A trapaça foi largamente usada para a conquista e manutenção dos territórios.
O rei Lobengula, do povo Ndebele, é um exemplo: assinou um contrato em que acreditava ceder terras ao magnata britânicoCecil Rhodes em troca de “proteção”. O problema é que o contrato firmado pelo rei não incluía a segunda parte do trato.
O monarca nem percebeu, pois era analfabeto e não falava inglês. Apesar dos protestos de Lobengula, que acreditava que a palavra valia alguma coisa entre os recém-chegados, o governo da Inglaterra se fez de desentendido.
Apoiou a exploração do território Ndebele, no atual Zimbábue, de onde Rhodes tirou toneladas de ouro. O mais famoso entre os trapaceiros, no entanto, foi o rei Leopoldo II, que conseguiu passar a perna em africanos e europeus.
Soberano de um pequeno país, a Bélgica, não tinha recursos nem homens para ocupar grandes territórios. Por isso, criou associações que se apresentavam como científicas e humanitárias, a fim de “proteger” territórios como a cobiçada foz do Rio Congo.
“Graças a hábeis manobras diplomáticas, ele conseguiu obter o reconhecimento, por todas as potências da época, de um ‘EstadoLivre do Congo’, do qual ele seria o governante absoluto”, descreveu Vanthemsche.
Leopoldo dominou com mão de ferro o Congo, usando métodos violentos para conseguir extrair o máximo que pudesse para aumentar sua riqueza pessoal. Mas o principal método utilizado pelos europeus foi o bom e velho “dividir paradominar”.
A ideia era se aproveitar da rivalidade entre dois grupos étnicos locais (ou criá-la, se fosse inexistente) e tomar partido de um deles. Com o apoio do escolhido, a quem davam armas e meios para subjugar os rivais, os europeus controlavam a população inteira.
“Pode-se dizer que todas aspotências conduziam a conquista da mesmaforma: através da força bruta, dividindo paradominar e usando soldados que eram prin-cipalmente africanos e não europeus”, disse Paul Nugent, autor de África desde a Independência: Uma História Comparada.
O método usado pelos colonizadores provocou tensões que até hoje perduram, pois transformou profundamente as estruturas sociais tradicionais da África.
“Formações de grupos flexíveis e cambiantes foram mudadas para ‘estruturas étnicas’ bastante rígidas”, afirmou Vanthemsche.
O exemplo mais extremo dessa fronteira imaginária criada pelos europeus é o de tutsis e hutus, de Ruanda. Os tutsis foram considerados de “origem mais nobre” pelos colonizadores (primeiro alemães, depois belgas), e os hutus foram colocados em posição de inferioridade.
Os tutsis mantiveram o poder mesmo após a saída dos belgas. Em 1994, 32 anos após a independência de Ruanda, cerca de 1milhão de pessoas morreram no conflito em que os detentores do poder foram perseguidos pelos até então marginalizados hutus.
As fronteiras territoriais também foram delineadas sem respeitar a disposição da po-pulação local, com base nos interesses dos europeus.
“Eles recorriam a noções arbitrá-rias como latitude, longitude, linha de divi-são das águas e curso presumível de um rioque mal se conhecia”, revelou o historiador Henri Brunschwig em A Partilha da África Negra.
E essas fronteiras ainda sobrevivem. Segundo o geógrafo francês Michel Foucher,cerca de 90% das atuais fronteiras na África foram herdadas do período colonial. Apenas em 15% delas foram levadas em consideração questões étnicas. De acordo com o especialista, há ainda mais de uma dezena de fronteiras a serem definidas.
O Saara Ocidental é o único caso de território africano que ainda não conseguiu a independência. Em 1975, depois de décadas explorando o fosfato da região, a Espanha o abandonou.
No mesmo ano, o Marrocos invadiu o país. Houve resistência, e a guerra durou até 1991. Desde então, a Organização das Nações Unidas tenta organizar um referendo para que a população da última colônia africana decida se quer a independência ou a anexação pelo Marrocos.
As formações políticas e grupais eram mais fluidas e a variação linguística, maior do que na era colonial.
O método europeu era dividir para dominar, aumentando ou criando rivalidade entre dois grupos étnicos locais.
Para os países africanos, ver-se livre dos europeus não significou uma melhoria de sua situação. Ao contrário: em muitos lugares, a independência provocou guerras ainda mais sangrentas, que contaram com a participação das antigas metrópoles coloniais.
Um exemplo é a Nigéria. Seis anos após a independência do país, em 1960, o sibos, que haviam adotado o cristianismo, declararam a secessão do território nigeriano de Biafra.
Foram apoiados por franceses e portugueses, interessados nas ricas reservas de petróleoda região. Os hauçás e fulanis, muçulmanos que dominavam o cenário político do país, lutaram pela unidade apoiados pelos ingleses. O resultado foi uma guerra civil em que quase 1 milhão de nigerianos morreram, a grande maioria de fome – até hoje o país é palco de embates religiosos e políticos.
Não se sabe exatamente quantos grupos étnicos havia na África quando os coloniza-dores chegaram, mas acredita- se que fossem por volta de mil.
“O que sabemos sugere queas formações políticas e grupais eram mui-to mais fluidas e a variação linguística eramuito maior do que na era colonial”, ressaltou o historiador britânico Keith Shear, do Centro de Estudos Africanos Ocidentais da Universidade de Birmingham.
Línguas foram adotadas em detrimento de outras, o que provocou o nascimento de elites. “A chegada de missionários e a introdução de escolas formais fizeram com que dialetos específicos fossem selecionados para traduzir a Bíblia. Estabeleceram-se ortografias oficiais, provocando homogeneidade linguística”, explicou Shear.
Os que falavam a língua do grupo majoritário tiveram mais facilidades num governo centralizado e dominado por uma só etnia. Se por um lado alguns dialetos desapareceram, o mesmo não ocorreu com a diversidade étnica.
“Grupos étnicos não foram eliminados durante o domínio colonial, apesar de os alemães terem tentado realizar o primeiro genocídio na Namíbia”, destacou Paul Nugent.
Teria sido possível, inclusive, o surgimento de outros povos. “Muitos historiadores defendem a tese de que novos grupos foram criados durante o período colonial, pois as pessoas começaram a se auto-definir de novas formas. Por exemplo: os ibos da Nigéria e os ewes de Gana e do Togo apenas passaram a se denominar desse modo durante o período entre as duas Grandes Guerras Mundiais”, afirmou.
A colonização comprometeu duramente o desenvolvimento da África. Hoje o continente abriga boa parte dos países mais pobres do planeta. “No plano político, o legado do colonialismo inclui a tradição de administração de cima para baixo, a persistência de burocracias que fornecem poucos serviços e um baixo senso de identidade e interessenacional. Os Estados são geralmente fracos, ineficientes e brutais”, disse Shear.
“Economicamente, o colonialismo produziu, em sua maior parte, economias dependentes, monoculturistas e não integradas, que atendem prioridades externas e não internas.”
A situação atual dos países africanos pode ser atribuída à pressa que os colonizadores tiveram em transformar a realidade local. Isso fez com que o continente pulasse etapas importantes.
“O maior problema é que, em apenas algumas décadas, as sociedades tradicionais africanas foram lançadas em uma situação totalmente desconhecida. Você não pode criar um sistema capitalistae Estados democráticos de um dia para outro, em poucas gerações. As próprias sociedades tradicionais europeias precisaram deséculos para chegar a esse resultado”, descreveu Guy Vanthemsche. Essa chance nunca foi dada aos africanos.