O relato da suposta tradição nunca falha em chocar sociedades modernas, porém historiadores modernos questionam se um costume tão desumano existiu mesmo
Ingredi Brunato, sob supervisão de Thiago Lincolins Publicado em 19/12/2021, às 08h00 - Atualizado em 22/07/2022, às 17h00
É inegável que o infanticídio é considerado um conceito chocante. Nossa espécie é muito apegada a bebês, até por conta de motivos biológicos, uma vez que mamíferos dependem dos cuidados dos pais para sobreviver durante o início da vida. Dessa forma, a ideia de que alguém poderia assassinar um recém-nascido é repulsiva em muitos níveis.
A despeito disso — ou talvez exatamente por conta dessa nossa aversão ao ato — uma história contada por Plutarco, um filósofo grego, se tornou famosa ao longo dos séculos.
O episódio, que é descrito no livro "Vida de Licurgo", se passa durante uma reunião do conselho de anciãos espartanos que tem por objetivo avaliar um bebê. Caso ele seja "apto e forte", poderá viver. No entanto, caso seja considerado fraco ou então "deformado", será abandonado para morrer.
A justificativa por trás dessa fria decisão, de acordo com o pensador, é de que "não é melhor para nem eles nem para a cidade que vivam sua vida natural mal equipados". O trecho foi repercutido pelo Science.org.
A obra citada, vale mencionar, se propõe a contar a biografia de Licurgo, que foi um influente líder político que teria sido responsável por criar as leis da cidade de Esparta.
A suposta tradição grega foi amplamente difundida ao longo dos anos como um fato a respeito da antiga sociedade, porém um estudo publicado no sábado passado, 10, questiona se o ato de matar bebês deficientes era mesmo um costume comum na cidade grega, ou a história é simplesmente uma lenda.
Conforme aponta a pesquisadora norte-americana Debby Sneed, existe uma série de razões para duvidar da frequência dos episódios de infanticídio em Esparta.
Uma delas, por exemplo, é a ausência de outras fontes históricas descrevendo a prática. O próprio Plutarco, inclusive, admite que está contando a respeito de algo que teria acontecido 700 anos antes de seu nascimento.
Evidências a respeito de espartanos com deficiências físicas, por outro lado, são uma realidade. Existem documentos, por exemplo, descrevendo espartanos que teriam "braços de doninha" (animal conhecido por suas pernas curtas) desde o nascimento, sugerindo assim que existiram moradores da cidade grega que possuíam deficiências físicas desde que saíram do útero que, no entanto, receberam os cuidados necessários para chegarem à idade adulta.
Outro desses relatos, inclusive, vem de "Vida de Licurgo", em que Plutarco menciona um rei espartano que teria pernas "prejudicadas", porém, era conhecido e respeitado por ser um ótimo líder.
A arqueologia também oferece embasamento para a teoria de que os antigos gregos não tinham o infanticídio como uma prática comum e bem-aceita, ainda de acordo com o Science.org.
Já foram encontrados, por exemplo, os restos mortais de um bebê de oito meses que sofria de hidrocefalia grave. A deficiência é conhecida por afetar o formato do crânio, de forma que poderia ter sido identificada desde o nascimento, contudo, o pequeno teria sido cuidado até que a condição o matara.
Em uma sociedade que tem a tradição eugênica de 'descartar' nenéns que não tem a mesma aparência dos outros, isso não ocorreria.
Existem inclusive estátuas gregas que mostram pessoas adultas com fendas palatinas e outros tipos de condições que provocam diferenças externas evidentes.
“Temos muitas evidências de que as pessoas não mataram ativamente crianças. E nenhuma evidência de que mataram”, concluiu Sneed.
A pesquisa de Debby, no entanto, ainda não foi o suficiente para fazer com que a comunidade científica descarte completamente o conceito, que foi consenso durante tanto tempo.
“Você poderia definir toda a sociedade grega e romana antiga como se livrando de bebês fracos? Absolutamente não. Mas a ausência de evidências não significa que o fenômeno em si estava ausente”, argumentou Christian Laes, outro especialista da área, também conforme o veículo.
Para Laes, a vergonha e o tabu relacionados ao ato de abandonar bebês poderia fazer com que os episódios em que isso ocorria não fossem registrados. Existem registros etnográficos, todavia, que mantém a possibilidade de que famílias sem recursos para criar os filhos deixassem recém-nascidos indesejados em locais públicos, onde ou seriam recolhidos por outras pessoas, ou pereceriam.
"Não tenho certeza se posso concordar que era uma prática comum criar filhos deficientes”, acrescentou.