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Matérias / Guerras

Uma marcha impiedosa: A invasão de Portugal por Napoleão

Na época, a então rainha Maria, considerada louca, pensava que Bonaparte, um general estratégico, era o próprio anticristo

José Francisco Botelho Publicado em 17/09/2021, às 10h00

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Napoleão Bonaparte em pintura oficial - Creative Commons/ Wikimedia Commons
Napoleão Bonaparte em pintura oficial - Creative Commons/ Wikimedia Commons

Em novembro de 1807, a rainha dona Maria I, conhecida como “a Louca”, descobriu que o homem que ela via como o anticristo marchava em direção ao reino de Portugal. Era Napoleão Bonaparte, a própria encarnação do demônio, na opinião da monarca.

Bonaparte comandava o exército mais formidável da época e sonhava em construir um império tão grandioso quanto o romano. Em suas guerras de conquista, já havia deposto reis e rainhas na Itália, Alemanha e Holanda. Agora, queria conquistar Portugal e abocanhar suas colônias ultramarinas. Estava tão certo da vitória que chegou a apontar governadores para o Rio de Janeiro, a Bahia e o Maranhão.

Contra os planos do francês, havia apenas o tímido e indeciso dom João, príncipe regente que governava Portugal em nome de sua mãe, a rainha louca. O jogo de gato e rato entre o maior conquistador da Europa e um dos reis menos poderosos da época foi resolvido numa única cartada, que mudaria a história de Portugal e também a do Brasil.

O homem que dom João teve de enfrentar em 1807 era simplesmente o maior gênio militar que o mundo ocidental já conhecera desde a Antiguidade. Mais que uma personalidade histórica, Napoleão virou mito ainda em vida.

Pintura de Napoleão durante a juventude / Crédito: O Projeto Yorck/Creative Commons/Wikimedia Commons

Sua vida foi pautada pela ambição e por uma série de lances inusitados. Para começar, o conquistador que transformou a França em superpotência não era francês. Filho de um advogado, nasceu em 1769, na Córsega, ilha italiana anexada pela França em 1768. Só pisou em solo francês aos 15 anos, quando foi estudar na Escola Militar de Paris.

Estrangeiro e de sangue não muito azul, ele só podia esperar um futuro medíocre: na época, a França era governada por monarcas absolutistas que mantinham um rígido sistema de classes sociais. Para galgar altos cargos, o que contava não era o talento, mas a genealogia.

Acontece que o chamado Antigo Regime foi virado de pernas para o ar em 1789, quando a Revolução Francesa varreu os privilégios da nobreza e guilhotinou a monarquia. Dois anos depois, países monarquistas como Inglaterra, Áustria e Prússia juntaram-se para atacar a recém-nascida República. No meio do escarcéu, Napoleão logo mostrou a que veio. Seus feitos em batalha renderam promoções meteóricas — passou de capitão a general com apenas 27 anos e, em 1796, invadiu e conquistou a Itália, então ocupada pela Áustria.

De volta a Paris, Napoleão foi aclamado herói nacional. Aproveitando a adoração do povo e do Exército, o insaciável general deu o golpe de Estado em 1799. Cinco anos depois, coroou a si mesmo imperador da França. Agora, poderia perseguir um sonho ainda mais megalomaníaco: dominar toda a Europa e colocar seu nome ao lado dos grandes conquistadores da história, como Júlio César e Carlos Magno.

A primeira pintura feita por Jacques-Louis David / Crédito: Getty Images

Máquina de guerra

Nas chamadas guerras napoleônicas, que duraram até 1814, Bonaparte estraçalhou austríacos, russos e prussianos em espetaculares batalhas campais, como Austerlitz e Jena. Os inimigos da França faziam guerra à moda antiga, com oficiais aristocratas e soldados altamente treinados. Segundo essa estratégia, um exército de peso podia levar meses ou anos até ficar pronto.

Napoleão adotava outros procedimentos na hora de montar suas tropas. Ele preferia recrutar seus guerreiros com rapidez na massa popular francesa, que, além de fanaticamente patriota, era uma das mais numerosas da Europa.

Em fins do século 18, a França tinha cerca de 26 milhões de habitantes — no auge, Napoleão tinha um exército de 750 mil homens. Some-se a isso a genialidade estratégica de Bonaparte, um general que sabia agir com velocidade e surpreender o inimigo com as calças na mão. O resultado é a maior máquina de guerra desde o Império Romano.

Em 1807, Napoleão era senhor supremo da Europa. Dominava a Bélgica, a Holanda, a Alemanha e a Itália, enquanto os monarcas da Áustria e da Rússia eram obrigados a assinar tratados humilhantes. O único espinho no calcanhar napoleônico era a Inglaterra. Se Napoleão dominava a terra, os ingleses dominavam os mares — na batalha naval de Trafalgar, em 1805, o almirante britânico Horatio Nelson destroçou a armada francesa na saída do Mediterrâneo.

Incapaz de invadir a Inglaterra por mar, Napoleão tentou matar o adversário pelo bolso, decretando que todas as nações europeias fechassem seus portos ao comércio inglês — era o Bloqueio Continental. A ordem foi seguida em toda Europa, com uma única exceção: o minúsculo Portugal, aliado secular da coroa britânica.

Foi para punir aquela insolência que tropas napoleônicas marcharam contra o apavorado reino de dom João em novembro de 1807. Napoleão acreditava que esta seria uma campanha fácil: enviou 27 mil soldados sob o comando de um de seus generais menos brilhantes, Jean-Andoche Junot.

Retrato do Imperador Napoleão Bonaparte, 1804 / Crédito: Getty Images

A tentativa de dominar a Península Ibérica — a Espanha seria invadida em 1808 — acabou em catástrofe. A gula napoleônica esbarrou na surpreendente e feroz resistência de portugueses e espanhóis. Os franceses estavam acostumados a enfrentar exércitos bem-ordenados, em campo aberto. Os ibéricos, no entanto, adotaram táticas de guerrilha que incluíam emboscadas e fugas repentinas.

Entre os combatentes havia camponeses e estudantes de todas as idades, que além de armas de fogo atacavam com paus, pedras e foices, para, em seguida, desaparecer montanhas da região. A Guerra Peninsular, como ficou conhecida, estendeu-se até 1814 e matou 7 mil franceses além de centenas de milhares de portugueses e espanhóis. Nesse Vietnã napoleônico, o exército mais poderoso do mundo empacou, perdendo a fama de invencível.

Ah, claro: outro fator decisivo no virar da maré foi uma decisão tomada pelo titubeante príncipe português nas vésperas da invasão francesa. A decisão de fugir.

Quando o ano de 1807 já ia chegando ao fim, a frágil e decadente monarquia portuguesa estava numa situação delicada, espremida entre o martelo e a bigorna. O martelo era a França: enquanto dona Maria I delirava em Lisboa, o exército do general Junot marchava pelos Pirineus, a cadeia de montanhas que divide o território francês da Península Ibérica. A bigorna, por outro lado, era a Inglaterra: oficialmente nação amiga de Portugal, tratava o país como um pau-mandado.

A aliança entre britânicos e portugueses datava do século 14, quando o rei dom João I casou-se com Felipa de Lancaster, cunhada do soberano inglês. A Inglaterra ajudou Portugal a defender sua independência contra os espanhóis, que tentaram anexar o vizinho diversas vezes desde a Idade Média. Em troca, Portugal cedeu aos ingleses polpudos tratados comerciais — desde o século 17, os britânicos ganhavam vantagens especiais no comércio com as colônias lusitanas ao redor do mundo.

Agora, a aliança era mais assimétrica do que nunca. Saudoso de seu passado de glórias e dependente do dinheiro vindo das colônias, Portugal era o país mais retrógrado da Europa — e um dos militarmente mais fracos. Tinha uma armada de apenas 36 embarcações, enquanto a Inglaterra contava com 880 navios. Em 6 de novembro de 1807, uma esquadra britânica apareceu no rio Tejo, tripulada por 7 mil homens: caso dom João se rendesse ao imperador Napoleão Bonaparte, a capital portuguesa seria duramente bombardeada por seus próprios aliados.

O que salvou a monarquia lusitana da extinção foi um antigo plano secreto, debatido, analisado e guardado a sete chaves durante quase três séculos. Por volta de 1532, retornando de uma viagem à enorme colônia portuguesa na América do Sul, o explorador Martim Afonso de Souza deu o seguinte conselho ao rei dom João III: “Doidice seria um rei viver na dependência de seus vizinhos, podendo ser monarca de outro maior mundo”. João III não se fez de rogado e ordenou a elaboração de um detalhado plano de emergência, que seria posto em ação no caso de uma invasão estrangeira — a migração do governo e da família real para o lado de cá do oceano Atlântico.

A Coroação de Napoleão, de Jacques-Louis David / Crédito: Creative Commons/ Wikimedia Commons

No último minuto

Quando estouraram as devastadoras guerras napoleônicas, mais de 200 anos depois, os conselheiros de dom João VI tiraram o velho projeto da gaveta. “Portugal não é a melhor nem a mais essencial parte da monarquia”, escreveu o ministro português Rodrigo de Souza Coutinho, o conde de Linhares, num memorando em 1803. “Depois de devastado por uma longa e sanguinolenta guerra, ainda restaria ao soberano ir criar um poderoso império no Brasil, donde volte a conquistar o que tenha perdido na Europa.”

Apesar dos conselhos, dom João esperou até o último momento para tomar sua decisão. Só em outubro de 1807, com o general Junot a caminho, o príncipe aceitou a ideia de fugir. Mesmo assim, adiou a partida ao máximo: em fins de outubro, tentou adoçar Napoleão enviando-lhe uma caixa de diamantes e sugerindo o casamento de dom Pedro I com alguma parenta do corso.

A resposta do imperador foi encarcerar o emissário lusitano. No dia 24 de novembro, chegou a Lisboa a última edição do jornal oficial do governo francês, em que Napoleão anunciava: “A Casa de Bragança já não reina na Europa”. A notícia causou alvoroço na corte. De repente, não havia mais delongas. Era fugir ou perder a coroa.

Na madrugada de 24 para 25 de novembro, dom João finalmente ordenou o embarque. Dali até o dia da partida, funcionários, pajens e camareiras vararam as noites esvaziando palácios e empacotando pratarias e joias. Uma caravana de 700 carroças, carregadas de dinheiro, livros e documentos, começou a fluir para o cais de Lisboa. Tudo isso debaixo de chuva e vento. A partida, planejada desde o século 16, foi aprontada às pressas, com o exército invasor quase às portas da cidade.

No fim das contas, a demora veio a calhar. Quando ocupou a capital portuguesa, no início de dezembro, Junot entrava numa arapuca. O plano de Napoleão era capturar a família real e obrigá-la a assinar a rendição — com dom João a caminho do Brasil, os franceses não podiam cantar vitória nem se retirar sem desonra. E acabaram enredados num dos conflitos mais desastrosos das guerras napoleônicas.

O tímido príncipe português, enfim, passou a perna no maior soldado da Europa. Um fato, admitido pelo próprio Bonaparte. Em suas memórias, por volta de 1820, o corso declarou a respeito de dom João: “Ele foi o único que me enganou”.


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