Pioneiro, o escritor se tornou um importante símbolo na defesa pelos direitos da população transexual
Isabela Barreiros, sob supervisão de Thiago Lincolins Publicado em 23/06/2021, às 16h01 - Atualizado às 16h02
Se hoje o Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo, imagine como era o contexto há 40 anos. Em 2020, 184 assassinatos de pessoas trans foram registrados, como apontou o dossiê da Associação Nacional das Travestis e Transexuais (Antra), mas o passado era ainda mais obscuro para essas pessoas.
Para se tornar quem queria ser, João W. Nery teve que abandonar tudo. As verdades exigidas pelo seu corpo e pela sociedade, o currículo acadêmico, o emprego e todos os direitos que possuía. A decisão foi tomada aos 27 anos: ele iria realizar a cirurgia de redesignação sexual.
Atualmente, o procedimento é realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas não era assim em 1977, quando Nery determinou que se submeteria à cirurgia em plena ditadura militar. A operação era tão pioneira que foi realizada de maneira clandestina, em um período em que tudo isso era considerado ilegal no país.
Naquele ano, ele passou por cirurgias de mamoplastia masculinizadora, o nome que se dá à retirada dos seios, e de histerectomia, a remoção do útero. João tinha se tornado o primeiro homem trans a ser operado para sua redesignação sexual em todo o Brasil. Mas era só o começo.
João Nery era psicólogo e atuava como professor universitário no Rio de Janeiro. Isso tudo, porém, como Joana. Após realizar a cirurgia para adequar seu corpo à sua verdadeira identidade, ele retificou seus documentos para poder ter um nome masculino, o que também teve que ser feito de maneira oculta.
“Ao assumir uma nova identidade, tive de negar todo o meu currículo acadêmico. Parei de dar aulas de psicologia na universidade e de atender no consultório. Passei décadas com medo de ser punido por tentar ser quem eu sou”, explicou anos mais tarde à revista Claudia.
Mesmo durante as décadas seguintes da transição, a transexualidade ainda não era debatida pela sociedade brasileira. Por isso, ao longo desses anos, a transfobia e o preconceito não eram poucos.
“Nosso círculo de amizades era formado por pessoas que tinham conhecimento de tudo. Ao longo de mais de duas décadas de convivência, me deparei com situações de preconceito e transfobia. Na maioria das vezes, expressas de forma velada”, contou a viúva de João, Sheila Salewski, em depoimento ao O Globo.
A museóloga recordou o ponto de mudança dessa história: em 2005, “quando passaram a pipocar na internet artigos sobre transexualidade”. Na época, o psicólogo decidiu que relançaria uma biografia escrita anos antes, afirmando que estava “na hora de voltar a falar sobre este assunto”. O pioneirismo de Nery na causa trans foi revelado ao mundo a partir do lançamento do livro ‘Viagem solitária’, em 2011, o que o colocou de vez na militância.
Depois da obra, viriam mais duas, ‘Vidas Trans’ e ‘Velhice Transviada’, ambas tratando da experiência transexual. Participando de programas de TV e seminários, escrevendo artigos em jornais, dando palestras e muito mais, Nery se transformou em uma das figuras mais importantes para a comunidade em todo o país.
Com uma trajetória notável, o escritor deu nome a um projeto de lei que foi aprovado em 2018. De autoria de Jean Wyllys e Érika Kokay, o projeto garante o direito de retificação de registros civis, uma batalha a qual João batalhou para vencer.
O psicólogo morreu aos 68 anos no dia 27 de outubro de 2018 enquanto lutava contra um câncer. Um mês e meio antes de falecer, publicou em seu perfil no Facebook uma declaração final.
“Se unam, não oprimam os nossos irmãos oprimidos, já por tanta transfobia e sofrimento. Um trans masculino não precisa ser sarado, nem ter barba, nem se hormonizar ou ter pênis para se operar. Basta saber quem são e que sente do gênero masculino. Vamos nos respeitar, nos unir, nos fortalecer e, sobretudo, ensinar os homens cis o que é ser um homem sem medo do feminino”.
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