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Matérias / União Soviética

Há exatos 30 anos, acontecia a dissolução da União Soviética

Entenda o que causou a queda da URSS

Rodrigo Cavalcante Publicado em 26/12/2020, às 12h00 - Atualizado às 14h34

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Josef Stalin em pintura - Wikimedia Commons
Josef Stalin em pintura - Wikimedia Commons

No dia 8 de dezembro de 1991, o então presidente dos EUA, George Bush, o pai, atendeu a um telefonema de Moscou. "Hoje, teve lugar um acontecimento muito importante em nosso país", disse do outro lado da linha o líder russo Boris Yeltsin, que completou: "Gorbachev não tem conhecimento destes desdobramentos".

Bush não demorou muito para entender o que havia acontecido. Yeltsin, sem consultar Gorbachev, assinara o Pacto de Belaveja junto com os presidentes da Bielorrússia e da Ucrânia e extinguira a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Gorby resistiria até o natal. 

O evento não marcou apenas a queda da URSS e do socialismo no Leste Europeu: selou o fim do próprio século 20. Essa era a opinião do falecidohistoriador Eric Hobsbawn. Trinta anos depois, parece outra era. 

O fim da URSS não foi por morte súbita, mas por uma espécie de doença degenerativa cujas causas tiveram origem muitas décadas antes, quando a Segunda Guerra Mundial sequer havia acabado.

Da guerra quente à fria

Se alguém tivesse de escolher um instante preciso da história para marcar o início da Guerra Fria, não haveria momento melhor do que às 19h30 do dia 24 de julho de 1945. Tudo aconteceu no intervalo de uma das sessões da Conferência de Potsdam, nos arredores de Berlim, quando Josef Stalin, Harry Truman e Winston Churchill, respectivos líderes da URSS, dos EUA e da Inglaterra, traçavam o destino do mundo - especialmente a partilha da Alemanha, que havia se rendido em maio, e o desfecho da guerra contra os japoneses, que ainda não haviam se rendido. 

Pintura que mostra Josef Stalin / Crédito: Getty Images

Naquela noite quente do verão alemão, Truman aproveitou o fim de uma sessão da conferência para comentar com Stalin que os EUA estavam de posse de uma nova arma, com "inusitado poder destrutivo". De acordo com Churchill e outras testemunhas, Stalin, como um bom jogador, permaneceu impassível e não mexeu um músculo da face. Simplesmente agradeceu a informação passada por Truman e desejou que os americanos usassem o novo artefato com "sucesso contra o Japão". O resto, você já sabe: menos de um mês depois, caíram as primeiras bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.

Hoje, alguns historiadores acreditam que a decisão de lançar as bombas sobre o Japão não teve como objetivo apenas abreviar o desfecho da Segunda Guerra. Conforme escreveu o historiador Charles L. Mee, autor de Paz em Berlim, Truman sabia que, ao usá-las, estaria demonstrando que tinha poder de sobra para dispensar qualquer ajuda soviética contra o Japão. O presidente americano esperava que tal demonstração impedisse Stalin de pretender algum domínio na região após a guerra.

Ainda durante a Conferência de Potsdam, os líderes dos EUA e da Inglaterra já anteviam que a Europa seria dividida em duas zonas de influência: a Ocidental, capitalista, sob influência dos EUA, e a Oriental, comunista, ajudada pela URSS. A fronteira entre "as duas Europas" seria a própria Alemanha, também dividida.

Attlee, Truman e Stálin em Potsdam / Crédito: Wikimedia Commons

Ao disputarem a hegemonia na região, americanos e soviéticos sabiam: o que realmente estava em jogo era a hegemonia mundial. Ao contrário dos EUA, que adotaram uma estratégia de controle indireta, o intervencionismo militar da URSS na Europa revelaria logo suas fragilidades.

Tudo estava muito claro. Enquanto os tanques russos partiam em direção à Alemanha para combater os nazistas, os países que ficavam no meio do caminho precisavam ser dominados pelo Exército Vermelho para "garantir a retaguarda".

Como a maioria desses países estava com a economia e o sistema político em frangalhos, os soviéticos usaram uma estratégia simples: fortaleciam as lideranças comunistas locais e levavam-nas ao poder desde que, é claro, elas se lembrassem de que não deveriam contrariar as diretrizes do Partido Comunista soviético.

Um ótimo plano, não fosse por um "detalhe": a população desses países gostava de pensar por conta própria. E eram países bastante conservadores, historicamente aliados ao Ocidente e inimigos da Rússia. Só para citar um exemplo, a Polônia, logo que se tornou independente em 1919, teve como um de seus primeiros atos declarar guerra à recém-fundada União Soviética. Checos, poloneses, húngaros, todo mundo - exceto, claro, os comunistas locais - se sentiu traído pelos aliados ocidentais.

Não que pudessem expressar essa frustração. Quando multidões resolviam ir às ruas para reivindicar que seus países seguissem o caminho que quisessem rumo ao comunismo, os soviéticos não hesitavam em lembrar ao proletariado que o preço a ser pago pela igualdade econômica era a perda da liberdade política. Foi assim na Hungria, em 1956, e na Tchecoslováquia, em 1968 - a famosa Primavera de Praga.

A outra revolução

Na Europa Ocidental, a economia ia muito bem. Com a ajuda dos EUA, que prosperava como nunca no pós-guerra, o nível de renda dos trabalhadores em países como República Federal Alemã, França e Itália crescia a um ritmo acelerado, bem superior ao de seus companheiros no mundo comunista. Sem falar, é claro, na liberdade.

De propósito, o mundo capitalista resolveu fazer de Berlim Ocidental sua vitrine mais reluzente, justamente porque essa parte da cidade acabou transformada em uma ilha da democracia liberal encravada na comunista República Democrática Alemã - visível por cima do muro.

Por alguns anos, os dois sistemas conviveram lado a lado. Mas, quando os comunistas perceberam que a tal "vitrine" exercia um fascínio preocupante sobre os berlinenses, que preferiam trabalhar e morar no lado ocidental da cidade, a administração do setor oriental decidiu erguer, em 1961, o Muro de Berlim. Um muro para evitar que os próprios cidadãos saíssem.

No lado oriental, o cenário econômico não era dos mais animadores. Entre a década de 1930 e o início da década de 1960, a consolidação da URSS como potência industrial teve por base o que os economistas chamam de crescimento extensivo.

O importante era aumentar a produção a qualquer custo, utilizando a maior quantidade possível de mão-de-obra e de recursos naturais. Porém, o mundo estava prestes a entrar em uma nova fase econômica, que mais tarde ficaria conhecida como a Terceira Revolução Industrial - nome dado às mudanças na produção de bens e serviços provocados pelo avanço da microeletrônica e dos sistemas computadorizados.

A queda muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989 / Crédito:  Wikimedia Commons

Na década de 1970, fábricas projetadas para produzir em série um determinado produto passaram a ser substituídas por plantas industriais automatizadas e muito mais flexíveis, capazes de se adaptar às variações de demanda no mercado consumidor. A linha de montagem criada por Henry Ford, por exemplo. Ela revolucionou a fabricação de carros nas primeiras décadas do século 20, quando foi inventada.

Mas já não já dava conta do recado nos anos 70 e começou a ser trocada pelo modelo da japonesa Toyota - cujas linhas de montagem ágeis e descentralizadas permitiam que os engenheiros fizessem mudanças em tempo real, um salto e tanto na inovação de produtos.

Enquanto isso, trabalhadores da Alemanha Oriental tinham de esperar anos para poderem dirigir seus poluentes e antiquados Trabants, símbolos da ineficiência das montadoras socialistas.

Como ficaria claro mais tarde, essa flexibilização era incompatível com o planejamento rígido e centralizado das fábricas soviéticas - que, antes da Segunda Guerra, davam a impressão de poder fazer frente ao modelo de mercado.

"A defasagem tecnológica com o Ocidente foi se tornando cada vez maior, chegando a um ponto crítico em meados dos anos 70 e tornando-se um fosso catastrófico na década de 80", escreveu o historiador Angelo Segrillo em O Declínio da URSS. Não bastasse a defasagem econômica da década de 1980, os soviéticos teriam de enfrentar a ascensão de novos personagens que, juntos, estavam prontos para desafiar a velha ordem soviética.

Atores finais

O primeiro chamava-se Karol Wojtyla, que também foi ator, poeta, autor teatral e atleta, até ser nomeado arcebispo de Cracóvia, em 1964. Catorze anos depois, seus colegas cardeais elegeram-no o primeiro papa não-italiano em 455 anos.

Como João Paulo II, ele desempenharia um papel importante no desmonte do regimes socialistas do Leste Europeu. "Quando ele beijou o solo no aeroporto de Varsóvia, no dia 2 de junho de 1979, deflagrou o processo pelo qual o comunismo na Polônia, e depois em toda parte na Europa, teria fim", escreveu o historiador americano John Lewis Gaddis, em seu livro A História da Guerra Fria. "Outros logo seguiram seus passos".

Inspirado pelo papa, o segundo polonês a desafiar o comunismo foi o eletricista Lech Walesa que, em agosto de 1980, postou-se diante do portão do estaleiro Lenin, na cidade de Gdansk, para anunciar a criação do Solidariedade - o primeiro sindicato independente de um país comunista. Enquanto isso, nos EUA e na Inglaterra, despontava um casal que, ao menos ideologicamente, foram feitos um para o outro.

Tanto o presidente americano na época, Ronald Reagan, como a então primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher, pareciam ter nascido com a missão de resgatar a reputação do capitalismo no Ocidente e afastar de vez o espectro comunista do mundo.

Para isso, Thatcher começou seu trabalho em casa, iniciando uma onda de privatizações na Inglaterra para recuperar a confiança na livre-iniciativa do país, cuja economia vinha dando sinais de cansaço. Reagan, ex-ator, fez da luta contra o comunismo quase um roteiro de Hollywood, cujos heróis - como o pugilista Rock Balboa, da série Rocky, ou a dançarina Alex Owens, de Flashdance - tornaram-se símbolos da celebração da iniciativa individual.

Em meio à ascensão de líderes que se comportavam como astros, faltava apenas que a URSS substituísse seu ator principal. Mas quando Gorbachev chegou ao poder, em 1985, ele não podia imaginar que seria o último a viver o papel de secretário-geral da URSS.

"A formação de Gorbachev era de advogado e não de ator, mas ele compreendia os usos da personalidade pelo menos tão bem quanto Reagan", escreveu o historiador John Gaddis. "Pela primeira vez desde que a Guerra Fria começou, a URSS tinha um governante que não parecia sinistro, grosseiro, indiferente, senil ou perigoso".

Inicialmente, Gorbachev acreditou que conseguiria levar a URSS a um final feliz, desde que convencesse seus companheiros de partido das reformas necessárias para reerguer o país. Mas seus planos de reestruturação econômica (Perestroika) e transparência política (Glasnost) não tiveram o mesmo sucesso que os acordos de desarmamento que o fizeram Nobel da Paz.

À medida que Gorbachev surpreendia o mundo com discursos pregando a distensão do regime, a pressão interna dos cidadãos que viviam no Leste Europeu parecia prestes a explodir, sem que seus governantes pudessem ter nenhum controle sobre as manifestações contra o comunismo.

O cair das cortinas

A explosão veio em 1989, ano do bicentenário da Revolução Francesa. Em junho, depois que Gorbachev deu a entender ao novo primeiro-ministro da Hungria que reconhecia que a revolta de 1956 tinha começado em virtude da insatisfação do povo, mais de 200 mil húngaros sentiram-se à vontade para ir à cerimônia do "novo funeral" de Imre Nagy, que liderou a revolta e foi executado por ordem do líder soviético Nikita Kruschiov - o mesmo que havia denunciado a monstruosidade de seu antecessor, Josef Stalin

Três meses depois, com a retirada da cerca de arame farpado ao longo da fronteira entre a Hungria e a Áustria, milhares de alemães orientais cruzaram o território húngaro para aproveitar a "janela aberta" e escapar para o Ocidente. Na Polônia, o sindicato Solidariedade não apenas tinha sido reconhecido, como seus líderes foram autorizados a se candidatar a cargos para a câmara baixa do país - ganhando o maior número de cadeiras.

E quando milhares de manifestantes foram aclamar Gorbachev durante uma visita a Berlim Oriental, muitos levaram cartazes com dizeres como "Gorby, socorro!" ou "Gorby, fique aqui!". O líder soviético voltou para Moscou convencido de que o regime socialista da Alemanha Oriental estava ameaçado.

No dia 9 de novembro daquele ano, o mundo inteiro assistiu pela TV à materialização dos temores de Gorbachev. O governo alemão, pressionado, viu-se obrigado a "relaxar" as regras que impediam a viagem para o Ocidente. O novo decreto dizia que os alemães orientais poderiam cruzar a fronteira, com permissão.

Günter Schabowski, jornalista e membro do politburo, leu o comunicado na TV estatal sem ter participado das reuniões que a decidiram. Suas palavras, confusas, deram a entender que simplesmente estava liberado cruzar o muro. Isso fez com que milhares de berlinenses se dirigissem aos postos de controle. Impotentes diante de tamanha multidão, os guardas acabaram abrindo os portões. A divisa física, agora sem função, passou a ser atacada pela multidão. Veio abaixo o Muro de Berlim.

Ainda em novembro, o governante comunista da Bulgária, Todor Zhivkov, no poder desde 1954, anunciou seu afastamento. Sete dias depois, manifestações na Tchecoslováquia fizeram com que um governo de coalizão liderado por Alexandre Dubcek, líder da Primavera de Praga em 1968, tomasse o poder dos comunistas.

Em 17 de dezembro, manifestantes na Romênia foram alvejados por ordem do líder romeno Nicolau Ceausescu. Resultado: 97 pessoas mortas e o início de uma revolta popular que terminou com o julgamento sumário e execução de Ceausescu e de sua esposa no dia de natal de 1989.

O próprio Gorbachev foi surpreendido no desfile de primeiro de maio de 1990, na Praça Vermelha, com manifestantes trazendo faixas nas quais lia-se: "Abaixo Gorbachev! Abaixo o Socialismo e o Império Vermelho fascista". Àquela altura, ele já estava consciente de que havia perdido o controle do processo que iniciara.

Se uma série de Estados europeus buscava um caminho próprio, por que o mesmo não poderia ser reivindicado por Lituânia, Moldávia, Ucrânia ou qualquer outra república da URSS? Quando alguns desses Estados começaram a proclamar independência, Gorbachev viu-se diante de um impasse: ou usaria a força bruta, como nos velhos tempos, ou aceitaria ver a desintegração do país.

Enquanto não encontrava uma saída, seu governo foi vítima de um golpe militar, cuja resistência foi liderada por Boris Yeltsin - o mesmo homem que, no dia 8 de dezembro de 1991, decretaria o fim da URSS em um telefonema ao então presidente americano, George Bush. No Natal daquele ano, Gorbachev passou a Yeltsin os códigos necessários para disparar um ataque nuclear. E assinou o decreto oficial do fim da URSS.


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