As mudanças provocadas pela vinda da família imperial acabaram colocando o Brasil colônia no caminho da independência
Coluna do arquivo impresso da Aventuras na História - Laurentino Gomes Publicado em 10/09/2021, às 09h00
Um dos períodos da história brasileira que testemunhou mudanças profundas foram durante os 13 anos em que a corte portuguesa permaneceu no Rio de Janeiro. Em um espaço de apenas uma década e meia, o Brasil passou por inúmeras transformações.
Uma forma de avaliar a herança de dom João VI na história brasileira é abordar a questão pelo avesso: como seria hoje se o país e a corte não tivesse fugido para o Rio?
Apesar da relutância em fazer conjecturas sobre o passado, os historiadores concordam que, na hipótese mais provável, o Brasil simplesmente não existiria na forma atual. Muita coisa mudou com a chegada do príncipe regente. Em 1808, passados os atropelos da viagem, Dom João não perdeu tempo. Caberia a ele e ao seu ministério transformar o país.
Foram inúmeras as decisões administrativas que o príncipe regente tomou. As novidades começaram a aparecer num ritmo alucinante e teriam grande impacto no futuro do país.
Na escala em Salvador, a medida principal foi a abertura dos portos. Na chegada ao Rio de Janeiro, foi a concessão de liberdade de comércio e indústria manufatureira no Brasil.
A decisão, anunciada no dia 1° de abril de 1808, revogava um alvará de 1875, que proibia a fabricação de qualquer produto da Colônia. Combinada com a abertura dos portos representava na prática o fim do sistema colonial.
Livre de proibições, inúmeras indústrias começaram a despontar no território brasileiro. A primeira fábrica de ferro foi criada em 1811, na cidade de Congonhas do Campo, pelo então governador de Minas Gerais, dom Francisco de Assis Mascarenhas, o conde da Palma.
Em outras regiões foram erguidos moinhos de trigo e fábricas de barcos, pólvora, cordas e tecidos.
A abertura de novas estradas, autorizada por dom João ainda na escala em Salvador, ajudou a romper o isolamento que até então vigorava entre as províncias. Sua construção estava oficialmente proibida por lei desde 1733, com a desculpa de combater o contrabando de peças preciosas.
As regiões mais distantes ganharam uma nova carta hidrográfica. Goiás, a sua primeira companhia de navegação. Expedições percorreram os rios tributários do Amazonas até as nascentes e estabeleceram a comunicação fluvial entre o Mato Grosso e São Paulo.
A navegação a vapor foi inaugurada em 1818 por Felisberto Caldeira Brant, futuro marquês de Barbacena e primeiro embaixador do Brasil em Londres após a intendência.
A Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal publicado em território nacional, começou a circular no dia 10 de setembro de 1808, impresso em máquinas trazidas da Inglaterra. Com ressalva: só imprimia notícias favoráveis ao governo.
O mapa da mina
A maior de todas as conquistas de dom João VI, no entanto, foi mesmo a preservação da integridade territorial brasileira. Dois séculos atrás, a unidade política e territorial do Brasil era muito frágil.
Sem a mudança da corte portuguesa, os conflitos regionais teriam se aprofundado, a tal ponto que a separação entre as províncias seria quase inevitável.
“Essas colônias estariam de fato perdidas para a metrópole se dom João não migrasse para o Brasil”, afirmou em suas memórias o almirante Sidney Smith, comandante da esquadra que levou a corte para o Rio.
Uma prova dessa fragilidade foi a própria delegação brasileira enviada a Portugal para participar das votações das cortes entre 1821 e 1822. Embora o Brasil tivesse direito a 65 deputados, só 46 compareceram às sessões em Lisboa, o que os deixava em ínfima minoria diante da representação portuguesa, composta por 100 delegados.
Apesar da inferioridade numérica, os brasileiros se dividiram nas votações. Os delegados das províncias do Pará, Maranhão, Piauí e Bahia se mantiveram fiéis à coroa portuguesa e votaram sistematicamente contra os interesses brasileiros das demais regiões.
Em nova demonstração de falta de consenso, em 1822 essas províncias do Norte e Nordeste não aderiram á Independência. Dom Pedro I teve que recorrer à força militar para convencê-las a romper os laços com o governo português.
Com base nessas divergências regionais, o historiador americano Roderick J.Barman, autor do livro Brasil – The Forging of a Nation, levantava algumas hipóteses sobre qual teria sido o destino dos territórios portugueses na América sem a mudança da corte para o Rio de Janeiro.
Barman acredita que o Brasil poderia ter se desintegrado em três diferentes países. É fácil imaginar as consequências dessa separação.
1. Esse Brasil dividido em pedaços autônomos nem de longe teria o poder e influência que o país exerce hoje sobre a América Latina. Na ausência de um Brasil grande e integrado, o papel provavelmente caberia à Argentina, que seria, então, o maior país do continente.
2. Brasília, a capital federal plantada no cerrado por Juscelino em 1961 para estimular e simbolizar a integração nacional, nunca teria existido. O esforço de integração teria dado lugar à rivalidade e à disputa regional.
3. Na escola, quando abrissem seus livros de Geografia, as crianças gaúchas aprenderiam que a floresta Amazônica era um santuário ecológico de um país distante, situado ao norte, na fronteira com a Colômbia, Venezuela e Peru.
4. As diferenças regionais teriam se acentuado. É possível que, a esta, altura, as regiões mais ricas desse mosaico geográfico estariam discutindo medidas de controle da emigração dos vizinhos mais pobres, como fazem hoje os americanos em relação aos mexicanos.
5. Nordestinos seriam impedidos de migrar para São Paulo. Em contrapartida, ao viajar de férias para as paradisíacas praias da Bahia ou do Ceará, os paulistas teriam de providenciar passaportes e, eventualmente, pedir visto de entrada.
6. O comércio e intercâmbio entre as diversas regiões seriam muito menores e mais complicados. Ao vender seus produtos para Goiás, Mato Grosso ou Tocantins, os cariocas, paulistas e paranaenses teriam de pagar tarifas de importação – e vice-versa.
Á luz da realidade do Brasil atual, tudo isso parece mero devaneio. Ainda assim, não se deve subestimar a importância de dom João VI na construção da identidade do brasileiro de hoje.
Por essa razão, o balanço que a maioria dos estudiosos brasileiros faz da transferência da corte para o Rio de Janeiro tende a ser positivo, apesar de todas as fraquezas pessoais do rei e seus familiares.
Para o historiador Oliveira Lima, dom João VI foi "o verdadeiro fundador da nacionalidade brasileira", por duas razões principais: assegurou a integridade territorial e deu início à classe dirigente que se responsabilizaria pela construção do país.
Ironicamente, esse legado não seria desfrutado por dom João ou pela metrópole portuguesa. "Ele próprio regressava menos rei do que chegou", finaliza Oliveira ao tratar do retorno do rei a Lisboa, em 1821.
Laurentino Gomes, jornalista, é jornalista e autor de grandes obras como 1808. Essa coluna foi publicada na edição 54 da Aventuras na História.
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