Monteiro Lobato teria tomado um nome da boca de outro povo para batizar sua bruxa com aspecto reptiliano. Entenda!
O escritor Monteiro Lobato foi o responsável pela popularidade da Cuca. Conquanto sua única aparição seja no livro 'O Saci' (1921), onde a bruxa é descrita superficialmente como uma “velha com aparência de jacaré” que transforma Narizinho em uma pedra, a Cuca, no final dos anos 1970, ganhou imensa popularidade através da série televisiva 'Sítio do Picapau Amarelo'.
O que pouca gente sabe é que Lobato tomou um nome da boca do povo português para batizar sua bruxa com aspecto reptiliano. Venham comigo, pelos caminhos mais escuros da história, desvendar essa trama rocambolesca.
A literatura genuinamente brasileira escrita por Monteiro Lobato já foi criticada de diversas formas. Há quem diga que ele tenha eternizado a imagem da mulher negra na cozinha, a empregada subserviente que ama servir e cuidar dos filhos dos outros, enquanto é insultada pela única criança que poderia ser seu filho, o Saci. Um menino negro, mutilado. Pior. Em 'Reinações de Narizinho' (1931), o narrador se refere à Tia Nastácia como negra de estimação.
Outros ainda falam de machismo por algumas passagens das personagens Narizinho e Emília. Na matéria em questão, entretanto, não haverá juízo de valor quanto a esse ou aquele ismo do velho Lobato.
Criador da 'Turma do Sítio do Picapau Amarelo', o paulista José Bento Monteiro Lobato foi advogado, fazendeiro, diplomata, editor de livros, escritor e tradutor. Escrevia para crianças como se estivesse batendo papo com o leitor. É por isso que os estudiosos dizem que sua obra é marcada pela oralidade e por uma linguagem coloquial.
Para o desenvolvimento da personagem Cuca, Lobato idealizou uma espécie de bicho-papão, papa-gente com base na Coca, o dragão que São Jorge derrotou segundo a tradição do folclore galego-português. Trazido para o Brasil durante a colonização, o nome, na pronúncia original, significava crânio ou cabeça e servia para representar a personagem de diversas formas, entre estas, um fantasma, uma bruxa velha ou um dragão comedor de crianças desobedientes, sempre à espreita nos telhados das casas para raptar aqueles que fazem alguma malcriação.
A artista brasileira Tarsila do Amaral produziu, em 1924, uma obra baseada nessa mesma descrição da personagem, atualmente exposta no Museu de Grenoble, na França. Muito antes, Goya desenhou, em 1799, a gravura “Que viene el Coco” representando o ser como um fantasma ou uma bruxa assustadora.
Interessante notar que nesse contexto, Lobato, um sabido estudioso de outras culturas, tomou a palavra que serve de representação para várias coisas malignas do folclore português e batizou sua personagem. Ainda que essa não fosse a intenção do autor, com o advento da moderna dramaturgia brasileira e a adaptação de suas histórias para o cinema e televisão, a Cuca viria a se tornar um dos mitos modernos mais emblemáticos do folclore brasileiro.
Um mito, entretanto, de longa data. A mais antiga referência ao personagem está no livro 3 de Doações de Dom Afonso III, no ano de 1274: “E se porventura alguma Balea ou Baleia ou serea ou Coca ou Roaz ou Musaranha ou outro pescado grande que semelhe algun destes morrer em Sesimbra ou em Silves ou em outros lugares da Ordin de El Rey”.
Mas é ao Norte de Portugal, nas circunvizinhanças da Vila de Monção, que a tradição secular se repete todo ano. Nessa freguesia, conhecida como Terra da Coca, na festa do dia de Corpus Christi, um imenso dragão montado sobre uma estrutura de madeira coberta com lona saí às ruas e é empurrada contra um cavaleiro que representa São Jorge em seu cavalo. Os dois antagonistas então simulam um combate mortal onde tanto um como o outro pode vencer.
Segundo a tradição, se o cavaleiro ganha, o ano agrícola é fértil; quando a Coca vence, o ano é mau. Nessa ocasião, os habitantes locais chamam o dragão de Santa Coca.
Na Catalunha e em vários países de língua castelhana, o mesmo personagem é chamado de Cuca ou Cucafera e é representada por uma figura zoomórfica com o corpo de tartaruga, chifres ao longo da coluna e com garras e cabeça de dragão. Nesse sítio, a lenda conta que ela tinha que comer todas as noites ao jantar três gatos e três crianças. Na Galiza, também se celebra a Coca no dia de Corpus Christi e no dicionário da Real Academia Espanhola credita-se a origem do festival ao mito da Coca ou El Coco, assombração ou bruxa portuguesa que mete medo nos meninos travessos.
À semelhança com a tradição norte-americana do Jack O’Lantern — personagem do folclore europeu dos países de língua inglesa — a representação da Coca também se faz com uma abóbora iluminada internamente com velas e faz parte do património imaterial galego-português.
M.R. Terci é escritor e roteirista; criador de “Imperiais de Gran Abuelo” (2018), romance finalista no Prêmio Cubo de Ouro, que tem como cenário a Guerra Paraguai, e “Bairro da Cripta” (2019), ambientado na Belle Époque brasileira, ambos publicados pela Editora Pandorga.