Profundamente enraizado na cultura samurai, o shūdō consistia em um sistema educacional, filosófico e espiritual que vigorou entre os séculos 13 e 19
Vítor Soares, professor de História Publicado em 24/03/2025, às 19h00 - Atualizado em 26/03/2025, às 07h10
No imaginário ocidental, a homossexualidade muitas vezes é vista como uma pauta moderna. Porém, ao voltarmos os olhos para o Japão feudal, nos deparamos com o shūdō (衆道), uma prática homoerótica profundamente enraizada na cultura samurai.
Traduzido como “O Caminho da Juventude”, o shūdō era mais do que um costume sexual: era um sistema educacional, filosófico e até espiritual, com códigos próprios, que vigorou entre os séculos 13 e 19.
O shūdō consistia em relações entre um homem mais velho, chamado nenja, e um jovem aprendiz, o wakashū. Essas relações, inspiradas no modelo budista do nanshoku, transcendiam o sexo e eram vistas como instrumentos de formação moral e marcial. A beleza, a virtude e a lealdade eram os pilares dessa pedagogia erótica, presente em textos clássicos como o Hagakure. Assim como na pederastia grega, acreditava-se que tais vínculos fortaleciam a honra e os valores do guerreiro.
Embora o termo shūdō só tenha surgido no século 17, suas raízes são mais antigas. No budismo, era comum a relação entre monges e seus assistentes (chigo), que, com o tempo, influenciou as relações nos mosteiros e mais tarde entre samurais. Durante o período Edo (1600–1868), o amor entre homens floresceu também entre atores kabuki e prostitutas masculinas (kagema), formando uma ampla rede de homoerotismo cultural e social.
A prática não apenas era tolerada, como era valorizada nas elites guerreiras. A mulher, por outro lado, era vista de forma inferior, conforme reforçado por textos como o Onna Daigaku, que ditavam normas de submissão feminina. Assim, em uma sociedade marcada por guerras e pela ausência feminina nos castelos e campos de batalha, o afeto entre homens tornou-se comum — e até esperado — entre samurais.
Personagens históricos como Oda Nobunaga e Mori Ranmaru foram associados a essas relações, embora sem comprovação documental. Já na literatura, autores como Ihara Saikaku retrataram com sensibilidade os dramas amorosos entre guerreiros, alguns terminando em seppuku (suicídio ritual), em nome da honra e do amor.
Com a Restauração Meiji e a influência ocidental e cristã, o shūdō caiu em desuso e foi reprimido. Mas sua existência revela um passado onde a homossexualidade masculina foi, por séculos, parte legítima da formação ética e emocional da elite japonesa.