Campeã estadual em 1946, a equipe de Fortaleza não teve a mesma sorte no campeonato do ano seguinte
Fortaleza, 22 de fevereiro de 1948. Acostumado a acordar bem cedo, hábito que assumira para si desde que se tornara militar, nos anos de 1920, o major João Lago Diniz Junqueira aproveitou para ler um jornal antes de ir até o estádio Presidente Vargas.
Grande esportista e presidente da Federação Cearense de Futebol, o major teria naquele dia o importante papel de entregar o troféu de campeão cearense de 1947. De um lado estaria o Fortaleza, clube que teve como um dos fundadores Alcides Santos, membro de uma das mais tradicionais famílias da cidade, e que, por ter estudado na França, levara para a equipe as cores de sua bandeira: vermelho, azul e branco.
A origem junto a famílias mais abastadas da sociedade cearense fez com que o Leão, como também é conhecido, passasse desde sua fundação a ser considerado time de elite no estado. Do outro lado estava o Ferroviário, clube fundado por funcionários da empresa ferroviária local, a Rede de Viação Cearense, pela iniciativa do chefe da oficina de manutenção, Valdemar Caracas.
Apaixonado pelo bom futebol de Leônidas da Silva no São Paulo, coube a Caracas adotar as cores, uniforme e distintivo do tricolor paulista, com exceção da sigla SPFC, trocada por FAC, de Ferroviário Atlético Clube, que tradicionalmente passou a ser considerada a terceira força do estado, atrás do Ceará e do Fortaleza.
A competição, que tinha se iniciado em abril do ano anterior e que já durara quase um ano, enfim chegava ao seu final. Apesar da longa duração, o campeonato ocorrera dentro de certa normalidade, com exceção do episódio de abandono dos atletas.
Como resultado, o tricolor cearense perdeu o ponto conquistado naquela partida e, desde então, para evitar repetir tal situação, o major Junqueira passou a escalar pessoas próximas, de sua confiança, para árbitros, sobretudo das partidas mais importantes, preferencialmente militares com os quais tinha relação de hierarquia.
Naquele dia, o juiz da partida decisiva do campeonato seria o sargento Edson de Oliveira, homem de sua total confiança. Uma vez que tinha vencido o primeiro confronto decisivo, por 4 a 1, o Fortaleza, que buscava o bicampeonato, precisava apenas de um empate para a conquista do título, enquanto o Ferroviário necessitava vencer, por qualquer placar, para provocar uma terceira partida.
O primeiro tempo foi marcado por um total domínio do Ferroviário, que chegou a abrir uma confortável vantagem de 3 a 1. Apenas no final dessa etapa o Fortaleza conseguiu equilibrar a partida e diminuir o placar para 3 a 2. O segundo tempo se tornou empolgante quando, logo aos 8 minutos, o árbitro não percebeu a saída da bola e validou um gol irregular do Fortaleza, o que empatava a partida, e lhe daria o título.
Revoltados com a marcação, os jogadores do Ferroviário cercaram o juiz e por muito pouco uma briga não se iniciou. No minuto seguinte, após saída de bola pela linha de fundo, o zagueiro do Ferroviário, Expedito, se direcionou ao juiz e gritou: “Marca escanteio de novo, seu #@&%$!”.
Apesar do xingamento, Edson de Oliveira se conteve e deixou o jogo prosseguir. Logo em seguida, no entanto, ao marcar falta de Expedito, depois de uma violenta entrada sobre o meio-campista Jombrega, Edson o expulsou. Revoltado, o jogador se recusou a sair de campo, e a confusão foi generalizada.
Por se acharem prejudicados pela arbitragem, os dirigentes do Ferroviário orientaram que seus jogadores abandonassem o campo. Foi da arquibancada de onde estava assistindo ao jogo que o major Junqueira, extremamente aborrecido, de posse de sua autoridade de militar e como presidente da Federação, ordenou que toda a equipe do Ferroviário, incluindo atletas, dirigentes e comissão técnica, fosse presa.
Sem adversário em campo, e com o placar marcando 3 a 3, restou ao Fortaleza comemorar o título estadual, enquanto os jogadores do Ferroviário eram levados, ainda de uniforme, para a Delegacia Central de Polícia. Chegando lá, todos os atletas foram dispensados para ir para casa, mas tiveram que suportar as gozações dos torcedores rivais, que comemoravam o título pelas ruas da cidade.
Por José Renato Santiago, Doutor e mestre pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo com pós-graduação pela ESPM. Autor de livros sobre a história do futebol, gestão do conhecimento e capital intelectual.