A arqueóloga Valdirene Ambiel revela à AH impressões e curiosidades históricas sobre os restos do imperador, da Imperatriz Leopoldina e de Dona Amélia
Em abril de 1982, a arqueóloga Valdirene Ambiel, até então com apenas 11 anos de idade, fez uma marcante visita à Cripta Imperial, do Parque da Independência, no Ipiranga. Na companhia de seu pai, ela presenciou a chegada dos restos mortais de D. Amélia, segunda esposa de Dom Pedro I.
Aquele episódio ficou registrado para sempre na memória da pesquisadora, que relembra muito bem o período de infância. Ambiel brincava no espaço e via que o local da cripta estava interditado "normalmente por problemas causados pela umidade", segundo ela.
"[Eu] temia que estes problemas pudessem de alguma forma prejudicar a preservação dos remanescentes humanos, bem como do material associado", conta, em entrevista à Aventuras na História. "Desejava que alguém fizesse algo para melhorar as condições do local. E principalmente para preservar os despojos dos imperadores. Entretanto, em minha infância e adolescência, eu nunca imaginei ser uma destas pessoas", acrescenta.
Experiência única
Ambiel foi quem estudou em 2012 os remanescentes humanos dos primeiros imperadores do Brasil como parte de sua dissertação de mestrado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP).
Ela se dirigiu à Cripta Imperial, onde estavam os restos não só de Dona Amélia, como também de Dom Pedro I e a primeira esposa dele, a Imperatriz Leopoldina. O estudo (que pode ser acessado aqui) foi produzido em parceria com várias instituições e especialistas — de biógrafos e escritores a um médico legista e um arquiteto. Além disso, Ambiel também contou com um engenheiro civil, e demais pesquisadores de dentro e fora do meio acadêmico.
A primeira tarefa foi abrir o sarcófago de Leopoldina. Quando a tampa de granito fora removida de modo parcial, houve uma surpresa: a urna era mais recente e não a descrita por documentos do Instituto Histórico Geográfico de São Paulo, que falavam do translado dos restos da imperatriz, realizado em 1954.
Notando a substituição das urnas, Ambiel e sua equipe contataram então os órgãos responsáveis pelo Monumento à Independência, mas não houve resposta. "Muitas pessoas, inclusive do meio acadêmico, já haviam nos alertado da possibilidade de não haver nada nos sarcófagos, o que seria uma questão extremamente grave, uma vez que estes remanescentes humanos deveriam estar sepultados ali", conta a pesquisadora.
Detalhes de Leopoldina
Apesar do contratempo, para a sorte de todos, os despojos de Dom Pedro I e suas esposas estavam sim presentes. Leopoldina, que foi a primeira a ser estudada, estava, segundo a pesquisa, com um vestido branco com bordados "em forma de folhas em verde na altura do peito" e mangas fofas com detalhes da fauna brasileira.
As vestes, segundo Ambiel, não tinham identificação ou cuidados de preservação. "Havia muita cal, provavelmente ainda do funeral de 1826, uma vez que a Imperatriz sofreu muita febre antes de entrar em óbito, fato que pode ter acelerado o processo de decomposição", observa a especialista.
Outra questão curiosa é que não havia luvas na imperatriz. Uma possível hipótese para explicar isso seria a cerimônia do beija-mão, na qual — como o nome já diz — se beijava as mãos de pessoas importantes em sinal de referência. Isso era feito, inclusive, mesmo após a morte.
De acordo com a arqueóloga, quem reforçou esse costume era D. João VI, que queria se aproximar de seus súditos. "A cerimônia do beija-mão, era um costume antigo da realeza europeia, mas em desuso no século 19, exceto por D. João VI, rei de Portugal", explica."Esta tradição foi mantida no Império do Brasil, por D. Pedro I".
Entretanto, Ambiel conta que esse ritual não ocorreu com Leopoldina devido ao rápido processo de decomposição do corpo da imperatriz. Em outras palavras, beijar uma mão decomposta ficou fora de cogitação.
Entretanto, segundo a pesquisadora, o cadáver da falecida havia passado por um preparo à base de espírito de vinho, modo de conservar os mortos muito usado desde o século 16. Só que, no caso da majestade — que morreu por conta da evolução de um quadro infeccioso — como visto, a febre muito elevada acelerou o processo.
Dom Pedro I e governos pouco democráticos
O translado dos despojos de Dom Pedro I ocorreu em 1972, justamente no Sesquicentenário da Independência do Brasil. Nesse período, o nosso país estava em período de ditadura militar, sob o comando de Emílio Garrastazu Médici. Portugal, por sua vez, também vivia sob uma ditadura, tendo à frente o premier Marcello Caetano.
Visto isso, a vinda dos restos do imperador virou motivo para celebração de cunho nacionalista. "Podemos observar que muita propaganda sobre o traslado foi feita", comenta a pesquisadora, que acrescenta: "este foi um período muito complicado do regime militar brasileiro. E o governo lusitano também estava em situação não muito diferente".
Apesar da grande valorização do acontecimento pelas ditaduras, os restos do soberano mesmo assim "davam pena", de acordo com Ambiel. "O corpo do imperador estava totalmente desarticulado, e sem nenhuma posição anatômica mantida. Isso para mim representa a maior falta de respeito, não com a figura de um monarca, mas antes de tudo, falta de respeito com um ser humano", lamenta.
Os restos de Dom Pedro I vieram para o Brasil em três urnas, como era tradição de nobres e clero da Igreja Católica. Mas, só a urna de madeira de lei com as coroas de Brasil e Portugal, e ornamentos religiosos foi mantida. A placa de chumbo, bem como, a urna de madeira rudimentar foram retiradas, e colocadas sob a responsabilidade do Departamento de Patrimônio Histórico do Município de São Paulo.
Medalhas, botões e outros artefatos do monarca, assim como um fragmento de tecido do manto e brincos de Leopoldina, também foram encontrados no estudo e entregues ao Museu da Cidade de São Paulo, que administra o Monumento à Independência.
Dona Amélia
A maior revelação sobre a segunda esposa de Dom Pedro I foi que os remanescentes dela estavam mumificados. A especialista explica que esse fenômeno ocorreu devido ao embalsamento feito no corpo da dama, após sua morte, em 1873.
Um reembalsamento foi realizado depois, em 1982. Para entender como esse último processo ocorreu, foi realizada uma análise das substâncias da espuma de uma das três urnas funerárias que guardavam os restos de D. Amélia.
O fato de o corpo ter sido fechado com essa tripla proteção das urnas, segundo Ambiel, pode ter contribuído para a preservação do mesmo. E ainda, diferentemente do que ocorreu com Dom Pedro I e Leopoldina, Amélia não tinha consigo presença de cal ou sedimentos que pudessem atrapalhar o processo.
Além disso, Valdirene Ambiel conta que, entre as três figuras históricas analisadas, seu sentimento ao investigar os restos mortais, se deu em medidas equivalentes ao trio de imperadores.
"Com relação à emoção, nisso foram iguais", reflete Ambiel. "Pessoas, seres humanos como nós, que tiveram suas vidas, seus valores. Erros e acertos, qualidades e defeitos, assim como cada um de nós nos dias atuais. Diferente de iconografias em livros, quadros em museus, naquele momento, nós os vimos como seres humanos".
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