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Matérias / Pé de lótus

Pé de lótus: A tradição milenar das mulheres chinesas com pés enfaixados

Em busca de um padrão de beleza e status social, chinesas quebravam e amarravam os próprios dedos para que os pés medissem entre 7,5 e 10 centímetros

Fabio Previdelli
por Fabio Previdelli
[email protected]

Publicado em 25/05/2023, às 15h00 - Atualizado em 26/05/2023, às 12h19

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O pé de lótus de uma chinesa - Arfo via Wikimedia Commons
O pé de lótus de uma chinesa - Arfo via Wikimedia Commons

Através de séculos, classes sociais e culturas, as mulheres foram submetidas a seguirem padrões de beleza cada vez mais inalcançáveis. Muitas vezes, o aspecto da beleza feminina estava intimamente ligado à dor

Na Inglaterra vitoriana, por exemplo, os espartilhos ajudavam as mulheres a terem cinturas cada vez mais finas. Já na China em meados do século 10, o costume era ainda mais doloroso, afinal, entendia-se que as chinesas, para alcançar certo status social, precisavam ter pés que medissem entre 7,5 e 10 centímetros

Uma mulher com os pés desembrulhados/ Crédito: Domínio Público

O pé de lótus, como a tradição ficou conhecida, ultrapassou dinastias. A prática brutal só foi banida no início do século 20. Mesmo assim, deixou marcas na sociedade chinesa e uma reflexão de quanto sofrimento as mulheres precisam ser submetidas para atender desejos masculinos. 

O início da lenda

Segundo artigo da Smithsonian Magazine, a tradição do pé de lótus foi inspirada em uma dançarina da corte do século 10, chamada Yao Niang. A história diz que ela tinha os pés amarrados em forma de uma lua nova

Yao Niang teria encantado o imperador Li Yu dançando na ponta dos pés em um lótus dourados de quase dois metros que era enfeitado com fitas e pedras preciosas. Ainda assim com uma classe única. 

Um ponto curioso é que a alteração na forma do pé fazia com que Yao Niang tivesse que andar de um modo diferente, mantendo o equilíbrio com o apoio dos músculos da coxa e das nádegas. Desde o início, aponta o artigo, a bandagem nos pés foi cercada de conotações eróticas

Pés amarrados eram considerados bonitos e até eróticos/ Crédito: Library of Congress

Há quem diga também que a inspiração possa ter vindo de um conto da dinastia Tang de Ye Xian, escrito por volta de 850 por Duan Chengshi. A história relembra uma menina que perdeu seu sapato e se casou com um rei que procurava incansavelmente a dona de tal calçado. 

Afinal, apenas seus pés eram pequenos o suficiente para entrar no sapatinho. Como se pode perceber, o conto é um dos antecedentes que inspiraram o clássico Cinderela, aponta Fay Beauchamp em 'Asian Origins of Cinderella: The Zhuang Storyteller of Guangxi'. 

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Para muitos, os pés enfaixados eram um realce para a beleza de uma mulher e tornavam seus movimentos mais delicados. Uma mulher com os pés enfaixados, provavelmente, faria um casamento de maior prestígio.

A prática dolorosa 

Acredita-se que o costume de enfaixar os pés das mulheres tenha surgido com dançarinos da corte da elite chinesa, durante o século 10, no período das Cinco Dinastias e Dez Reinos.

Pés pequenos eram considerados uma qualidade atraente, um símbolo de status e uma marca de beleza feminina. A prática foi amplamente usada para distinguir as meninas da classe alta. Mas, tempos depois, aponta o World History, ela passou a ser adotada em todo o país. 

Para chegar ao resultado esperado, todo o doloroso processo começava ainda na infância, quando as meninas tinham entre 5 e 6 anos. Primeiro, os pés das crianças eram mergulhados em água quente e suas unhas eram cortadas. 

Depois, seus pés eram massageados e untados com óleo antes que todos os dedos, exceto o dedão, fossem quebrados e amarrados contra a sola. Isso formava um triângulo. Assim, os pés eram amarrados firmemente com longas tiras de pano — o que restringia qualquer crescimento do membro. 

Os invólucros eram removidos brevemente a cada dois dias, para tratar de sangramentos e evitar o pus de infeccionar o pé. Às vezes, relata a Smithsonian Magazine, o "excesso" de carne era cortado ou até mesmo deixado para gangrenar, apodrecer e cair. 

Com o tempo, as amarras ficavam mais apertadas e, consequentemente, os sapatos menores. Os calcanhares e a sola logo se tornavam um bloco só. Depois de dois anos, o processo chegava ao fim. 

Muitos pés criavam uma fenda tão profunda que era possível armazenar uma moeda em seu espaço. O resultado almejado do excruciante e longo processo era ter pés não maiores que 7,5 (lótus dourado) ou 10 centímetros (lótus de prata)

Desenho de comparação de raios-X entre um pé normal e um enfaixado/ Crédito: Domínio Público

Quanto menores os pés, mais atraentes eles eram, até mesmo eróticos para alguns, se tornando uma marca distinta de elegância. O mesmo acontecia com modo de andar de uma mulher que, agora, era forçada a adotar uma passada mais leve e breve. 

Com criados para realizar tarefas domésticas, a mobilidade de uma mulher era limitada — até mesmo em circunstâncias normais. Com os pés enfaixados, a caminhada só devia ser conseguida com grande dificuldade. 

Pés menores, além disso, exigiam sapatos especialmente delicados; que eram normalmente feitos de seda ou algodão. Em muitas vezes, os calçados eram lindamente bordados. Eles foram encontrados em abundância em túmulos de mulheres chinesas de classe alta.

A expansão e o fim

Inicialmente, a prática de enfaixar os pés era feito para distinguir as mulheres de alta classe do restante da população. O que se tornou costume durante a Dinastia Song, que durou entre os anos de 960 até 1279

No entanto, com o passar dos anos, as mulheres de províncias ou regiões periféricas da China passaram a adotar o costume como uma forma de buscar uma ascensão social; o que ocorreu durante a Dinastia Qing, entre 1636 e 1912.

Um sapato de lótus/ Crédito: Vassil via Wikimedia Commons

Eventualmente, a característica tornou-se algo a ser observado cuidadosamente pelos pais que arranjavam o casamento de seus filhos. Pés minúsculos, apesar das origens entre dançarinas e cortesãs, passaram a simbolizar não apenas elegância, mas também virtude moral e modéstia. Assim, desenvolveu-se uma certa pressão dos pais entre as famílias para realizar o processo em suas filhas ou correr o risco de não encontrar maridos elegíveis.

Os imperadores manchus tentaram proibir a prática no século 18, mas sem sucesso, comenta matéria da BBC. Para se ter uma ideia, estima-se que entre 40% e 50% de todas as chinesas do século 19 podem ter adotado a prática — o índice subia quase para 100% se o recorte fosse feito apenas para as chinesas Han de classe alta

No final do século 19, reformadores chineses passaram a desafiar a prática, mas só somente no início do século 20 que a amarração de pés começou a desaparecer. De acordo com Gail Hershatter em 'Women and China's Revolutions', as mulheres de classe alta e de zonas urbanas abandonaram a prática antes do que as que viviam em áreas rurais e mais pobres. Em 2007, apenas um pequeno grupo de idosas chinesas cujos pés haviam sido amarrados na infância continuavam vivas. 

O registro do passado 

Em 2005, o fotógrafo Jo Farrell foi até a China documentar a prática extinta. "A maioria das pessoas me disse que era uma tradição tão antiga que não havia mais mulheres", disse em entrevista ao The Guardian. 

O profissional, porém, conversou com um taxista que revelou que sua vó tinha os pés enfaixados. "Fui à aldeia da avó do taxista, na província de Shandong, e conheci Zang Yun Ying. Ela se tornou a primeira mulher no meu projeto."

Ao longo de nove anos, Farrell rastreou as últimas sobreviventes do enfaixamento dos pés, encontrando 50 mulheres — cinco das quais ainda estavam com os pés completamente amarrados. Todas elas eram de aldeias pobres. 

Na sociedade chinesa, era o único caminho a seguir para as mulheres", diz Farrell. "Elas fizeram isso porque pensaram que isso lhes daria um futuro melhor, uma vida melhor."