Em busca de um padrão de beleza e status social, chinesas quebravam e amarravam os próprios dedos para que os pés medissem entre 7,5 e 10 centímetros
Publicado em 25/05/2023, às 15h00 - Atualizado em 26/05/2023, às 12h19
Através de séculos, classes sociais e culturas, as mulheres foram submetidas a seguirem padrões de beleza cada vez mais inalcançáveis. Muitas vezes, o aspecto da beleza feminina estava intimamente ligado à dor.
Na Inglaterra vitoriana, por exemplo, os espartilhos ajudavam as mulheres a terem cinturas cada vez mais finas. Já na China em meados do século 10, o costume era ainda mais doloroso, afinal, entendia-se que as chinesas, para alcançar certo status social, precisavam ter pés que medissem entre 7,5 e 10 centímetros.
O pé de lótus, como a tradição ficou conhecida, ultrapassou dinastias. A prática brutal só foi banida no início do século 20. Mesmo assim, deixou marcas na sociedade chinesa e uma reflexão de quanto sofrimento as mulheres precisam ser submetidas para atender desejos masculinos.
Segundo artigo da Smithsonian Magazine, a tradição do pé de lótus foi inspirada em uma dançarina da corte do século 10, chamada Yao Niang. A história diz que ela tinha os pés amarrados em forma de uma lua nova.
Yao Niang teria encantado o imperador Li Yu dançando na ponta dos pés em um lótus dourados de quase dois metros que era enfeitado com fitas e pedras preciosas. Ainda assim com uma classe única.
Um ponto curioso é que a alteração na forma do pé fazia com que Yao Niang tivesse que andar de um modo diferente, mantendo o equilíbrio com o apoio dos músculos da coxa e das nádegas. Desde o início, aponta o artigo, a bandagem nos pés foi cercada de conotações eróticas.
Há quem diga também que a inspiração possa ter vindo de um conto da dinastia Tang de Ye Xian, escrito por volta de 850 por Duan Chengshi. A história relembra uma menina que perdeu seu sapato e se casou com um rei que procurava incansavelmente a dona de tal calçado.
Afinal, apenas seus pés eram pequenos o suficiente para entrar no sapatinho. Como se pode perceber, o conto é um dos antecedentes que inspiraram o clássico Cinderela, aponta Fay Beauchamp em 'Asian Origins of Cinderella: The Zhuang Storyteller of Guangxi'.
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Para muitos, os pés enfaixados eram um realce para a beleza de uma mulher e tornavam seus movimentos mais delicados. Uma mulher com os pés enfaixados, provavelmente, faria um casamento de maior prestígio.
Acredita-se que o costume de enfaixar os pés das mulheres tenha surgido com dançarinos da corte da elite chinesa, durante o século 10, no período das Cinco Dinastias e Dez Reinos.
Pés pequenos eram considerados uma qualidade atraente, um símbolo de status e uma marca de beleza feminina. A prática foi amplamente usada para distinguir as meninas da classe alta. Mas, tempos depois, aponta o World History, ela passou a ser adotada em todo o país.
Para chegar ao resultado esperado, todo o doloroso processo começava ainda na infância, quando as meninas tinham entre 5 e 6 anos. Primeiro, os pés das crianças eram mergulhados em água quente e suas unhas eram cortadas.
Depois, seus pés eram massageados e untados com óleo antes que todos os dedos, exceto o dedão, fossem quebrados e amarrados contra a sola. Isso formava um triângulo. Assim, os pés eram amarrados firmemente com longas tiras de pano — o que restringia qualquer crescimento do membro.
Os invólucros eram removidos brevemente a cada dois dias, para tratar de sangramentos e evitar o pus de infeccionar o pé. Às vezes, relata a Smithsonian Magazine, o "excesso" de carne era cortado ou até mesmo deixado para gangrenar, apodrecer e cair.
Com o tempo, as amarras ficavam mais apertadas e, consequentemente, os sapatos menores. Os calcanhares e a sola logo se tornavam um bloco só. Depois de dois anos, o processo chegava ao fim.
Muitos pés criavam uma fenda tão profunda que era possível armazenar uma moeda em seu espaço. O resultado almejado do excruciante e longo processo era ter pés não maiores que 7,5 (lótus dourado) ou 10 centímetros (lótus de prata).
Quanto menores os pés, mais atraentes eles eram, até mesmo eróticos para alguns, se tornando uma marca distinta de elegância. O mesmo acontecia com modo de andar de uma mulher que, agora, era forçada a adotar uma passada mais leve e breve.
Com criados para realizar tarefas domésticas, a mobilidade de uma mulher era limitada — até mesmo em circunstâncias normais. Com os pés enfaixados, a caminhada só devia ser conseguida com grande dificuldade.
Pés menores, além disso, exigiam sapatos especialmente delicados; que eram normalmente feitos de seda ou algodão. Em muitas vezes, os calçados eram lindamente bordados. Eles foram encontrados em abundância em túmulos de mulheres chinesas de classe alta.
Inicialmente, a prática de enfaixar os pés era feito para distinguir as mulheres de alta classe do restante da população. O que se tornou costume durante a Dinastia Song, que durou entre os anos de 960 até 1279.
No entanto, com o passar dos anos, as mulheres de províncias ou regiões periféricas da China passaram a adotar o costume como uma forma de buscar uma ascensão social; o que ocorreu durante a Dinastia Qing, entre 1636 e 1912.
Eventualmente, a característica tornou-se algo a ser observado cuidadosamente pelos pais que arranjavam o casamento de seus filhos. Pés minúsculos, apesar das origens entre dançarinas e cortesãs, passaram a simbolizar não apenas elegância, mas também virtude moral e modéstia. Assim, desenvolveu-se uma certa pressão dos pais entre as famílias para realizar o processo em suas filhas ou correr o risco de não encontrar maridos elegíveis.
Os imperadores manchus tentaram proibir a prática no século 18, mas sem sucesso, comenta matéria da BBC. Para se ter uma ideia, estima-se que entre 40% e 50% de todas as chinesas do século 19 podem ter adotado a prática — o índice subia quase para 100% se o recorte fosse feito apenas para as chinesas Han de classe alta.
No final do século 19, reformadores chineses passaram a desafiar a prática, mas só somente no início do século 20 que a amarração de pés começou a desaparecer. De acordo com Gail Hershatter em 'Women and China's Revolutions', as mulheres de classe alta e de zonas urbanas abandonaram a prática antes do que as que viviam em áreas rurais e mais pobres. Em 2007, apenas um pequeno grupo de idosas chinesas cujos pés haviam sido amarrados na infância continuavam vivas.
Em 2005, o fotógrafo Jo Farrell foi até a China documentar a prática extinta. "A maioria das pessoas me disse que era uma tradição tão antiga que não havia mais mulheres", disse em entrevista ao The Guardian.
O profissional, porém, conversou com um taxista que revelou que sua vó tinha os pés enfaixados. "Fui à aldeia da avó do taxista, na província de Shandong, e conheci Zang Yun Ying. Ela se tornou a primeira mulher no meu projeto."
Ao longo de nove anos, Farrell rastreou as últimas sobreviventes do enfaixamento dos pés, encontrando 50 mulheres — cinco das quais ainda estavam com os pés completamente amarrados. Todas elas eram de aldeias pobres.
Na sociedade chinesa, era o único caminho a seguir para as mulheres", diz Farrell. "Elas fizeram isso porque pensaram que isso lhes daria um futuro melhor, uma vida melhor."