Em 10 de janeiro de 49 a.C., Júlio César tomava uma decisão que mudaria o destino de Roma
O Rubicão é um pequeno rio de águas vermelhas (seu nome vem de rubi). Tem 80 km, nasce nos Montes Apeninos e deságua no Mar Adriático. O direito romano estabeleceu que ele marcava o limite em que os generais poderiam chegar com suas tropas – a fronteira entre a Gália Cisalpina e a Itália. Os 250 km de distância até Roma tinham de ser percorridos sem as legiões. Era uma forma de proteger o Senado e a República de um golpe. Nas primeiras horas do dia 10 de janeiro de 49 a.C., o grande general Júlio César, conquistador da Gália, estava ao norte do Rubicão. Sabia que atravessá-lo seria uma declaração de guerra. Que o Senado romano o trataria como inimigo público.
Cercado por um pequeno grupo de colaboradores, César hesitou. De acordo com o historiador Plutarco, ele estava “muito perturbado com a grandeza e a audácia de seu empreendimento”. Discutiu com seus conselheiros, pesou os prós e os contras. “Ainda há tempo de voltar atrás”, disse ao amigo Asínio Polião. De repente, narra outro historiador romano, Suetônio, um homem alto e bonito apareceu, sentado a pouca distância do grupo, e começou a tocar sua flauta.
Logo, soldados e pastores o cercaram. O homem, então, tomou a trombeta de um dos soldados e a tocou forte, alto, enquanto caminhava até o outro lado da ponte. César convocou seu grupo e explicou o que tinham testemunhado. “Vamos para onde nos chamam a voz dos deuses e a injustiça de nossos inimigos”, disse ele, segundo Suetônio, e, em um gesto que Plutarco classificou como “um abandono dos conselhos da razão”, cruzaram o Rubicão. Para resumir, a frase do general que entrou para a história: Alea jacta est (“a sorte está lançada” ou “os dados estão lançados”). Foi o primeiro ato da guerra civil que mudou o destino do maior império do planeta na época, jogado em uma batalha que se espalhou pelo Mediterrâneo, da Espanha ao Egito – e mudou a face do mundo ocidental.
Do outro lado do Rubicão, Júlio César enfrentaria o popular general Cneu Pompeu. A vida dos dois próceres de Roma era uma relação literal de amor e ódio. Pompeu fora casado com a filha de César, Júlia, que morreu durante o parto do primeiro filho do casal. A criança também não sobreviveu. Dez anos antes, César e Pompeu juntaram-se ao homem mais rico de Roma, Marco Licínio Crasso, na formação de um triunvirato informal que pretendia dividir as possessões romanas.
O erro de Crasso foi imaginar que seu dinheiro seria suficiente para equilibrar a balança de poder. “César e Pompeu eram vistos como os generais mais hábeis e mais ilustres, não apenas entre os romanos como também entre todos os homens de seu tempo”, escreveu sobre a dupla o historiador Díon Cássio. Pompeu era um general muito popular por causa da conquista da Hispânia, da guerra que moveu contra os piratas no Mediterrâneo e por acabar com a revolta do gladiador Espártaco.
César era adorado pela plebe e por seus soldados. O trio usou o poder em Roma em benefício próprio. César, que era o cônsul na ocasião, criou leis que ajudaram os negócios de Crasso e garantiram terras para os soldados de Pompeu – que, em troca, conseguiu apoio político para que César conquistasse e governasse a rica Gália. Mas Crasso morreu em campanha na Ásia, e as diferenças entre Pompeu, que defendia o Senado, e César, que o esnobava, começaram a crescer.
Até que os políticos exigiram que o general deixasse suas tropas e voltasse para Roma. Cícero, o grande tribuno, inimigo de César, previu o risco que ameaçava as instituições republicanas. “Hoje, é a ambição de dois homens que põe tudo em perigo”, escreveu ao amigo Ático. “É da paz que precisamos. Sou dos que pensam que mais vale aceitar tudo o que César pede do que apelar às armas.” Era tarde demais.
“Se César se puser em marcha, basta que eu bata o pé no chão para encher de legiões a Itália”, disse Pompeu em pleno Senado. Era uma bravata. À medida que César avançava rumo à Roma com suas tropas, mais Pompeu se enchia de preocupação. “Bate então com o pé no chão”, zombou o senador Marco Favônio. O plano de Pompeu tinha alguma sensatez, mas mostrou-se infeliz. Ele pretendia ir para Brindisi, no Adriático, e de lá partir para Dirráquio, a atual cidade de Durrës, na Albânia, para organizar seus partidários na Grécia e na Ásia.
Com ele, embarcaram 200 senadores. “A tática de Pompeu é uma das mais claras e das mais engenhosas: recrutar no Oriente numerosas tropas; fazer o bloqueio da Itália com sua frota, a fim de impedir o abastecimento da península e de Roma; provocar a fome; e apresentar-se como um salvador ao qual o conjunto dos romanos se aliariam”, escreveu Joël Schmidt em Júlio César. Não funcionou. O plano faria sentido numa guerra tradicional. Mas quem passaria fome se ele funcionasse seria seu próprio povo. Que, logicamente, começou a se bandear para o lado de César.
O último rei romano foi Tarquínio, o Soberbo, que morreu em 509 a.C. As famílias mais antigas da cidade fundaram então a República para evitar que novos tiranos pudessem governar Roma. O Senado era uma oligarquia conduzida por patrícios, que no século 2 a.C., com o crescimento de Roma, não conseguia mais dar conta do sectarismo da população. Havia uma complexa sociedade militar, novos povos que eram incorporados ao império e, principalmente, a plebe – a população que deixava o campo para ocupar a cidade, e que não parava de crescer. Com o tempo muitos plebeus tornaram-se ricos, especialmente por causa do comércio e do exército. E passaram a exigir participação nos rumos da política romana. Alguns patrícios, como os irmãos Tibério e Caio Graco, passaram a apoiar as demandas dos plebeus, especialmente a votação de leis agrárias. Foram considerados inimigos do povo e mortos por causa disso no final do século 2 a.C. Em 107 a.C., o general Caio Mário, tio de Júlio César, tornou-se líder dos populares, o partido da plebe, que se opunha aos optimates, que defendiam os patrícios. Ele foi o protagonista da primeira guerra civil, em oposição a Sila.
Sila invadiu Roma em 83 a.C. e eliminou todos os seus adversários. Mas a divisão entre populares e optimates, plebe e patrícios permaneceu no coração da cidade até a ascensão de César. “Ele fazia parte dos populares por razões familiares, bem antes das guerras civis”, afirma Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Ainda assim, o projeto político de César ia além das divisões entre os dois partidos. Ele buscava seu próprio espaço: o poder absoluto. Até ser assassinado no Senado em 44 a.C., manteve o controle do poder romano. E sua morte, mais tarde vingada por Marco Antonio, foi mais uma pá de cal na República. O primeiro imperador romano, Caio Júlio César Augusto, que chegou ao poder em 27 a.C., era sobrinho-neto de César.
No dia 1º de abril de 49 a.C., Júlio César estava no Campo de Marte, nas aforas de Roma, para encontrar os poucos senadores que permaneceram na cidade. Era uma forma de mostrar que respeitava a legalidade, ao não entrar na capital com suas tropas. Ali mesmo foi aclamado pela população. Mandou seus aliados para a Sardenha, Sicília e África e partiu para a Península Ibérica, o território fiel a Pompeu. O temor de César era que, a partir da Hispânia, os inimigos levassem a rebelião à Gália, que ele pacificara pouco antes de a guerra civil eclodir. “Vou combater um exército sem general, para em seguida combater um general sem exército”, afirmou. Depois de um duro cerco à Marselha, César venceu a guerra na Hispânia e voltou para Roma em outubro.
Em Roma, César foi aclamado ditador – um cargo que existia para momentos de crise, com duração máxima de seis meses. “O que Júlio César pretendia era tornar-se rei, segundo nos dizem autores como Plutarco”, afirma Pedro Paulo Funari, professor da Unicamp e coordenador do Centro de Estudos Avançados da universidade. “Uma realeza seria algo muito diferente. O modelo romano seria outro, ao estilo de Alexandre, o Grande, e seus sucessores.”
Passados seis meses, César renunciou ao posto de ditador, mas conservou todas as suas prerrogativas – o Senado estava esfacelado e a administração pública de Roma funcionava precariamente por falta de gente. Enquanto isso, Pompeu, em Tessalônica, preparava suas tropas. “Sua frota podia ser considerada invencível, com 500 navios. Sua cavalaria era a flor de Roma e da Itália: sete mil cavaleiros”, escreveu Plutarco em Pompeu. “A guerra travou-se em locais tão distantes quanto a Espanha, o Egito e o norte da África, onde quer que o Senado encontrasse legiões e generais, com destaque para Pompeu, dispostos a resistir à rebelião de César”, descreveu o historiador inglês John Keegan em Uma História da Guerra.
A despeito da grande frota de Pompeu, César cruzou o Adriático sem ser incomodado. Enfim, em abril de 48 a.C., os dois exércitos se enfrentaram. Os revoltosos cercaram as forças do Senado em Dirráquio, mas a batalha não teve vencedores. Os soldados de Pompeu, esfomeados, escaparam da cidade. Os dois lados cantaram vitória, mas o confronto decisivo ocorreria um mês depois, em Farsália.
César tinha 22 mil legionários, 1,8 mil homens na cavalaria e cerca de 10 mil aliados. As forças de Pompeu contavam com 60 mil legionários e entre 5 mil e 8 mil homens na cavalaria. Apesar da desproporção, a vitória coube a César. Ele conteve e depois massacrou a cavalaria de Pompeu, que deveria ser o fator decisivo do combate. Depois, tratou de massacrar o inimigo. Metade das forças de Pompeu foi morta. E o velho general fugiu vestido em trajes civis.
Daí em diante, a guerra se transformou em perseguição implacável. “César foi um grande estrategista. Basta dizer que lutou na Gália por oito anos, uma eternidade hoje, mas muito mais na Antiguidade, quando as pessoas morriam cedo”, afirma Funari. “Como general, ele arriscou muito mais a vida do que qualquer comandante atual”, diz o professor da Unicamp, chamando a atenção para o fato de César ser um líder popular entre os soldados por não temer nenhuma tarefa, mesmo as braçais.
Pompeu, sempre com as tropas de César em seu encalço, passou por Mitilene, na ilha grega de Lesbos, vagou pela Ásia Menor até chegar a Chipre, de onde embarcou para Alexandria. Ali, foi morto por seus próprios soldados, por ordem do rei Ptolomeu, que temia a fúria de César. A guerra prosseguiu por mais algum tempo, até que os filhos de Pompeu foram finalmente derrotados na Hispânia, na Batalha de Munda. Roma agora pertencia a César.