Entenda como piada racista acabou sendo usada pela Ku Klux Klan para disseminar a segregação racial nos Estados Unidos
Qual o limite do humor? Podemos censurar uma piada? Mesmo ofensiva, uma piada pode ser contada, a fim de preservar a liberdade de expressão do humorista? Essas perguntas geraram enorme repercussão durante a semana após um show do comediante Leo Lins ser censurado pela Justiça.
Entre outros assuntos contidos no especial de comédia 'Perturbador', Leo Lins faz 'brincadeiras' contra negros, mulheres e até mesmo casos de estupro. Mas a grande questão é: uma piada realmente pode acarretar atos de preconceito na sociedade?
o show de humor: pic.twitter.com/GgUVMM20WG
— Sad Feet: o pinguim 🐧 (@sadfeetopinguim) May 17, 2023
Acho curioso uma galera que defende a família defendendo o Léo Lins fazer esse tipo de “piada”
— Levi Kaique Ferreira (@LeviKaique) May 18, 2023
Tipo, isso não tem graça nenhuma. Sério, ele só fala um monte de absurdo e as pessoas acham graça da “coragem” dele falar essas merdas pic.twitter.com/nptobTPVkR
O debate é amplo e com diversos pontos de vista. Julgamentos a parte, é praticamente impensável não recordar do assunto e relembrar sobre as leis de segregação racial nos Estados Unidos promulgadas no final do século 19 e início do século 20.
+ Escravidão mascarada: as inacreditáveis leis de Jim Crow, nos EUA
Entenda a relação entre o humor, Jim Crow, a Ku Klux Klan e o preconceito contra os afro-americanos!
O artista Thomas D. Rice foi um dos responsáveis por iniciar a representação racista de afros-americanos e de sua cultura durante shows de menestréis na década de 1830. Para isso, Rice, que era branco, pintou o rosto de preto, com cortiça queimada, para dar vida ao personagem Jim Crow. A prática racista, hoje, é conhecida como blackface.
O artista caracterizou Jim usando vestes de trapo, chapéu surrado e sapatos rasgados, recorda o site do Jim Crow Museum. Tido como uma pessoa trapaceira, Jim Crow era um trabalhador do campo, muito ágil e irreverentemente espirituoso.
A origem do personagem foi perdida em meio a lendas, mas a mais aceita delas é que Rice o emulou a partir de um negro escravizado que vivia no sul dos Estados Unidos. O escravizado era posse de um dono de terras de sobrenome Crow.
A história aponta que o artista encontrou um cavalariço negro e idoso que trabalhava nas cidades ribeirinhas onde Thomas se apresentava, provavelmente em Louisville, Kentucky.
O escravizado tinha pernas tortas e um ombro deformado, mas frequentemente cantava e dançava uma música improvisada, apenas para sua própria diversão. Rice se encantou e adaptou a música na letra de "Jump Jim Crow".
O artista, além disso, já tinha observado danças e canções afro-americanas por anos, visto que cresceu em um bairro racialmente integrado de Manhattan. Mais tarde, além disso, viajou para estados do sul do país para se apresentar.
A famosa figura teatral de Rice serviu para criar uma visão negativa e estereotipada generalizadas dos negros norte-americanos. Seus shows atingiram o ápice na década de 1850 e se estenderam até sua morte, em 19 de setembro de 1860, aos 52 anos.
Apesar de um certo desinteresse ter deixado o legado de Rice fora dos holofotes na década de sua morte, o espírito de Jim Crow foi revivido pela Ku Klux Klan no polêmico filme The Birth of a Nation ('O Nascimento de uma Nação'), exibido para o presidente Woodrow Wilson em 1915.
Classificado como "o filme mais controverso já feito nos Estados Unidos", segundo artigo da University Press of Kentucky, o longa idealizou os negros como estupradores e figuras bestializadas.
The Birth of a Nation ainda retrata seus personagens negros (muitos dos quais são interpretados por atores brancos com blackface) como pouco inteligentes e sexualmente agressivos com mulheres brancas.
Já a Ku Klux Klan é mostrada como uma força heroica e necessária para preservar os valores americanos, proteger as mulheres brancas e manter a supremacia branca racial, aponta o The Moving Arts Film Journal.
Popular entre o público branco em todo o país, o sucesso do filme foi uma consequência e um contribuinte para a segregação racial nos Estados Unidos. Em uma das 'piadas' do filme, para se ter ideia, uma mulher se suicida ao se jogar de um precipício apenas por se deparar com um negro.
Jim Crow, a "piada", está em "O Nascimento de uma Nação" quando um branco atua como um negro irracional, selvagem e de movimentos atrapalhados, assim como o personagem de comédia.
— Diego Tbt (@ReTintaPreta) May 17, 2023
Na cena abaixo, uma mulher branca se suicida ao se deparar com o negro. Onde a piada foi parar... pic.twitter.com/1kSVaTtixU
Com isso, depois que Woodrow Wilson viu a exibição do filme, o presidente norte-americano passou a ser mais ferrenho nas leis segregacionistas que já vigoravam no país desde o final do século 19.
Após a Guerra de Secessão, em 1865, a 13ª emenda aboliu a escravatura nos Estados Unidos. Mas os chamados black codes, apelidados de Leis Jim Crow, foram instaurados em todo o Sul do país como uma maneira legal de colocar os cidadãos negros em servidão contratada.
Os afro-americanos perderam o direito ao voto e ainda eram controlados sobre onde moravam, onde poderiam ir, como deveriam se comportar, além de serem barrados de escolas, ônibus e até mesmo de oportunidades igualitárias. Um verdadeiro Apartheid.
Na teoria jurídica, os negros recebiam um tratamento chamado de "separate but equal" ('separado, mas igual'), mas a realidade era outra. Estabelecimentos públicos para negros eram quase sempre inferiores aos dos brancos — isso quando existiam. Sem contar as diversas placas espalhadas com lembretes de espaços dedicados "somente para brancos" ou "apenas pessoas de cor".
As leis de segregação Jim Crow logo se espalharam do Sul para todo o território do país. O Apartheid norte-americano só começou a derrocar em 1954, quando a Suprema Corte, sob o juiz Earl Warren, declarou inconstitucional a segregação de escolas públicas.
Uma década depois, em 1964, o presidente Lyndon B. Johnson assinou a Lei dos Direitos Civis, que legalmente encerrou a segregação institucionalizada pelas medidas de Jim Crow e, no ano seguinte, a Lei dos Direitos de Voto interrompeu os esforços para impedir que os negros votassem.