Diversos médicos e cientistas do Instituto Oswaldo Cruz foram perseguidos pelo governo militar. Entenda o caso
Diferentemente do que muitos afirmam hoje em dia, a ditadura militar brasileira (1964-1985) foi responsável pela perseguição política e ideológica de diversos brasileiros e estrangeiros, em seus mais diversos motivos.
A perseguição não se limitou a poucas áreas ligadas à política, à esquerda e à guerrilha, mas foi um sistema repressivo generalizado que, além da tortura, afetou diretamente uma infinidade de grupos de áreas completamente distintas. Um desses grupos foi a cúpula de cientistas brasileiros internacionalmente reconhecidos que trabalhavam para o Instituto Oswaldo Cruz durante os anos de chumbo.
Dez cientistas renomados da instituição foram perseguidos e diretamente afetados pela truculência das cassações políticas e perseguições policiais nos anos 1970, além de um mar de aposentadorias compulsórias e limitações das liberdades. Em 1970, esse ataque aos dez cientistas do IOC ficou conhecido como Massacre de Manguinhos, nome dado por Herman Lent (médico e entomologista) em referência ao Castelo Mourisco, sede do IOC no RJ, no bairro de Manguinhos.
Trata-se da cassação política dos pesquisadores Haity Moussatché, Herman Lent, Moacyr Vaz de Andrade, Augusto Cid de Mello Perissé, Hugo de Souza Lopes, Sebastião José de Oliveira, Fernando Braga Ubatuba e Tito Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque no dia 1° de abril de 1970 e, dois dias depois, da aposentadoria compulsória desses servidores.
O choque do evento foi gigante, pois todos eram líderes de pesquisas inovadoras no combate a efemeridades comuns no território brasileiro e muitos estudavam curas para doenças negligenciadas, sendo que a cassação levou ao desmonte de diversos laboratórios de pesquisa do IOC e a precarização da pesquisa em medicina na época.
Cientistas políticos apontam que a perseguição a esse grupo de cientistas ligados à área da medicina experimental e combate a doenças tropicais remete aos anos 1940, pois em 1946 esses cientistas reconheceram e apoiaram o então senador do Partido Comunista (PCB) Luís Carlos Prestes em sua defesa da retirada das tropas estadunidenses do Nordeste brasileiro e fim da base militar do RN, montada durante a Segunda Guerra Mundial.
Desde então, esse grupo de cientistas estaria sendo vigiado pela direita autoritária presente no governo e no exército. O grupo chegou a enviar um telegrama à Tribuna Popular elogiando a ação política de Prestes. Nos anos que se seguiram, esse grupo ficou marcado também por sua campanha pelo desenvolvimento de oportunidades mais fundamentadas para a pesquisa científica no Brasil.
Esses cientistas participaram de disputas políticas pela criação de instituições de fomento à pesquisa e de um ministério voltado à pesquisa, à ciência e à tecnologia, defendiam a autonomia do IOC e prezavam pela consolidação da produção científica nacional. A direita autoritária tinha esses cientistas como alvo significativo, mas é a partir de 1964 que a perseguição e as pressões do governo se agravaram.
A princípio, muitas demandas do IOC eram também defesas de princípios que confluíam com os objetivos e projetos da Ditadura. A produção científica nacional consolidada seria de grande consonância com o projeto nacional-industrialista do governo militar e a projeção de tecnologias de origem brasileira poderiam ser bem úteis à defesa das megaobras e projetos de expansão do período militar, como a Ponte Rio-Niterói, as hidroelétricas mastodônticas e a ocupação da Amazônia.
Ao mesmo tempo em que o controle de epidemias era um dos princípios da Doutrina de Segurança Nacional. Porém, a única relação amigável que o governo federal tinha com os imunologistas e sanitaristas do IOC era as campanhas de vacinação fomentadas pelo governo e encabeçadas pelo Instituto.
Ao mesmo tempo, a desestabilização do IOC teve bases internas significativas. Isso porque o grupo referido de cientistas que foram perseguidos possuía uma rixa política e administrativa com o então diretor do Instituto Oswaldo Cruz, Francisco de Paula Rocha Lagoa (que sairá da diretoria em 1970 e assumirá o Ministério da Saúde do governo Médici).
Rocha Lagoa era diretor-interventor indicado pelo Presidente Humberto de Castelo Branco e era um típico reacionário, adepto ao anticomunista vigente nos anos 1960 e mantinha um profundo embate com os líderes dos laboratórios de pesquisa do Instituto em relação aos rumos que a instituição levaria.
Os pesquisadores defendiam a autonomização e o fomento à pesquisa experimental de doenças endêmicas e um projeto acessível e com metas de desenvolvimento científico, enquanto o diretor pretendia seguir a cartilha do governo de vacinações em massa, apoio aos produtos norte-americanos e a submissão da instituição ao governo federal e seu projeto ideológico anticomunista.
Por essa rixa, Lagoa abre um inquérito policial contra esses 10 cientistas apontando conspiração contra a administração pública e desenvolvimento interno de uma célula comunista.
O governo, tendo aval para essas perseguições devido o Ato Institucional número 5, declara a cassação dos cientistas e inicia um movimento de ordenamento ideológico no interior dos grupos de pesquisa científica. Começou-se um patrulhamento interno no IOC e muitas coleções de laboratórios, incluindo o Acervo Científico-Histórico do Laboratório de Entomologia, um dos mais ricos e completos da América Latina, foram desmantelados e dissolvidos pelos policiais intervencionistas.
Também se incentivou um cerceamento financeiro por parte da diretoria do IOC que fechou fluxos que financiavam diversas pesquisas do instituto e impediu as relações diplomáticas e financeiras traçadas por Walter Oswaldo Cruz (filho do Oswaldo Cruz) com grupos de financiamento, que adquiriu por influência pessoal. Isso leva à inviabilização de diversos trabalhos e o fechamento de diversos laboratórios.
Por último, o governo federal fundiu o Instituto Oswaldo Cruz com diversas instituições ligadas à saúde pública e a pesquisa médica, como a Escola Nacional de Saúde Pública, o Instituto de Produção de Medicamentos, o Instituto Fernandes Figueira, o Instituto de Endemias Rurais, o Instituto Evandro Chagas e o Instituto de Leprologia.
Nasce a Fundação do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz). Isso encerrará qualquer projeto de autonomização do IOC e criará um sistema descentralizado de pesquisa científica, fragilizando o Instituto em termos de capital político e capacidade de articulação.