Pesquisadores alemães do 3º Reich cometeram atrocidades indizíveis — mas também fizeram marcantes descobertas
Muito se sabe sobre os dias de trabalho no projeto científico mais importante da Alemanha nazista: a fábrica subterrânea de mísseis Mittelrwerke (Fábrica Central). Lá se produzia o artefato bélico mais espetacular do planeta: o V2, foguete de 14 toneladas, capaz de chegar a 80 km de altitude e que causou pesados danos a Londres na Segunda Guerra.
O primeiro objeto a ir além da atmosfera terrestre era a menina dos olhos de Hitler. Tanto que, assim que a "bela adormecida" — apelido da antiga fábrica do V2 — foi bombardeada pelos aliados, o Führer não mediu esforços para transferi-la para baixo da terra, em 1943.
"Não deem atenção ao custo humano", disse o responsável pela obra, Hans Kammler. Mais de 20 mil prisioneiros morreram na fábrica – contra 7 mil baixas causadas pelo V2 na Inglaterra. A decisão de usar mão de obra escrava na construção como forma de reduzir custos foi aprovada por Wernher von Braun, criador e supervisor dos mísseis V2.
EUA, 15 de julho de 1969. Em uma entrevista sobre o lançamento da nave Apollo 11, um repórter pergunta a um dos responsáveis pelo projeto: "Você pode garantir que o foguete não vai cair em Londres?". Irritado com a ironia, o cientista abandona o evento. Tinham se passado 26 anos desde os mísseis de Nordhausen lançados sobre Londres. Ele trabalhava para os americanos desde 1945 (chegou à Nasa em 1960). Mas o fantasma do V2 ainda assombrava Von Braun.
Os americanos montaram o projeto Alsos para buscar reatores nucleares dentro da Alemanha em 1943. Ian Fleming, criador de James Bond e membro da Inteligência Naval britânica, tomou parte na T Force — seu grupo foi o primeiro a chegar à fábrica dos V2.
Mas como isso tudo começou? Como o ideal de superioridade da raça ariana se transformou em objeto — e objetivo — da ciência alemã? De que forma a guerra contribuiu para o avanço tecnológico? Para responder a essas perguntas, é necessário voltar no tempo.
"Os guardas nos tocam a uma velocidade infernal, gritando e despejando golpes sobre nós, ameaçando-nos com execução! O barulho vara o cérebro e rasga os nervos. O ritmo demente dura 15 horas. Bêbados de exaustão, desabamos nas pedras, no chão. Atrás, os guardas nos empurram.", disse Jean Michel, líder da Resistência Francesa preso pelos nazistas, trabalhador escravo em 1943 na fábrica subterrânea de foguetes V2.
Ideologia e ciência
Em 1932, um professor apelidado de Rassen-Günther (Günther-Raça) estreia na cadeira de antropologia da Universidade de Jena, na Alemanha. Ele explica as ideias do colega Alfred Plötz: "Os avanços da medicina encorajam a sobrevivência de cepas humanas degeneradas. Isso atrapalha o desenvolvimento natural das pessoas mais capazes e impede a supremacia do povo nórdico".
Na sala, um aluno ouve o professor com atenção. Em suas mãos, o livro que deu origem ao apelido de Günther: Rassenkunde des Deutschen Volkes (Higiene Racial do Povo Alemão, em português). Nome do aluno: Adolf Hitler.
A doutrina da higiene racial nasceu da eugenia, ciência que prega a seleção genética em seres humanos. Mas o berço do ideal de pureza racial não foi a Alemanha.
O primeiro Congresso Internacional de Eugenia aconteceu em 1912 na Inglaterra e contou com a presença de gente da estirpe do ex-primeiro ministro britânico Winston Churchill, o inventor Alexander Graham Bell e o filho de Charles Darwin, Leonard Darwin.
A nova ciência se espalhou rapidamente para os EUA, onde mais de 100 mil pessoas foram esterilizadas, no período de 1907 a 1960, com base nela. Naquela época, a eugenia não era vista como uma maluquice, mas como uma ciência respeitável, praticada internacionalmente. Nas mãos do futuro Führer, transformou-se em arma política.
O nazismo já tinha na ciência sua justificativa ideológica. E usou-a de novo com objetivo militar. Diante da restrição à produção de armamentos imposta pelo Tratado de Versalhes, após a 1ª Guerra, o Exército alemão concluiu que só existia uma saída: se não é possível vencer pela quantidade de armas, o jeito é investir na qualidade.
Quando a opinião dos militares caiu nos ouvidos de Hitler, a vida dos cientistas alemães mudou: o Führer meteu o bedelho na ciência. Que preparo tinha Hitler para lidar com cientistas? Nenhum. Mas isso não era problema.
"Hitler achava que tinha respostas para assuntos como munição, aeronaves, ciências naturais, engenharia. Era quem menos queria ouvir os especialistas. Não havia nada que você pudesse dizer a ele", diz o historiador Michael Kater, autor de Doctors Under Hitler (Médicos sob Hitler) e mais 7 livros sobre o nazismo.
Quanto mais conhecemos os mentores e o ideário por trás do projeto científico nazista, mais difícil entender como ele originou uma das principais revoluções científico-tecnológicas da História.
Segundo um dos historiadores mais respeitados no assunto, isso se deve a uma visão simplista: "Existe o mito de que a política é capaz de contaminar o desenvolvimento da ciência. Mas, na realidade, o fascismo pode ser um estímulo para a ciência de qualidade", afirma Robert Proctor, pesquisador da Universidade Stanford. Para Proctor. Algumas das descobertas mais significativas do período foram feitas não apesar dos objetivos raciais e militares dos nazistas, mas por causa deles.
"Os nazistas tinham objetivos malignos, mas não eram idiotas. Alguns desses objetivos, como a política racial, foram a fonte de grande parte da ciência de ponta." Entender o desenvolvimento da ciência nazista já é um desafio difícil, mas pode piorar. Como no caso dos médicos, que ao se formar juram viver para curar pessoas e se dedicaram a pesquisas sórdidas com seres humanos.
Médicos e monstros
Trancafiados em enfermarias e laboratórios nazistas, seres vivos passavam por atrocidades inimagináveis. Taxados de Lebensunwertes Leben (vidas indignas de serem vividas), eles eram mantidos em água gelada, obrigados a ingerir gás mostarda, usados como "viveiros" de bactérias, fuzilados com balas envenenadas, queimados com bombas incendiárias, amputados sem necessidade e torturados em câmaras de baixa pressão. Diante de tanto horror, é inevitável a pergunta: por que médicos fizeram isso?
A resposta está na situação em que se encontrava a medicina quando Hitler chegou a poder. Em 1933, os médicos formavam a profissão com maior filiação ao partido nazista: 44,8% deles tinham carteirinha.
Os advogados, em segundo lugar, não chegavam a 25% de adesão. Além do peso político do nazismo, outra situação ajudou a estimular a xenofobia entre os médicos: "Os judeus estavam super-representados na medicina. Em Viena, eles formavam 80% da categoria", afirma Kater.
Esses fatores catapultaram o fanatismo nazista, agravando ainda mais o racismo. E despertaram o interesse em defenestrar a "máfia judia" em busca de vantagens pessoais. O judeu inferior, que roubava o emprego dos arianos superiores, agora deveria ser exterminado feito um rato.
Com a demissão em massa de judeus e a demanda de profissionais para purificar a raça, não faltou mais trabalho para os médicos. Em 1939, eles examinaram 250 mil pacientes psiquiátricos e condenaram 75 mil à eutanásia.
Quando o programa de extermínio de doentes foi desaprovado publicamente em 1941, eles continuaram o trabalho. Em segredo, mataram mais 100 mil de fome. O know-how adquirido foi usado no projeto Solução Final, cujo objetivo máximo era o extermínio de 11 milhões de judeus em campos de concentração.
Ali, cientistas nazistas ponderaram: "Judeus são ratos. E ratos são cobaias. Logo, judeus são cobaias". É possível que um raciocínio simples como esse explique a conduta de muitos dos 350 médicos envolvidos em experiências que usaram humanos.
Cobaias humanas
Um desses 350 médicos teve atitudes que nem a fria lógica nazista justifica: jogou prisioneiros em caldeirões ferventes, injetou tinta em olhos de crianças, uniu gêmeos cirurgicamente e dissecou anões vivos.
Que explicação você daria para os atos do médico conhecido como o "anjo da morte" de Auschwitz, Josef Mengele? Para entender a mente de Mengele, o historiador Robert Lifton fez estudos biográficos minuciosos e realizou entrevistas com ex-médicos nazistas. "Eu não acho que a psicologia de Mengele esteja além da nossa compreensão", diz Lifton. "Mas ele é um caso extremo e é necessário se esforçar ao máximo para isso."
O uso de cobaias humanas podia não ter justificativa ética, mas tinha razão prática: ajudar o Exército alemão. Pilotos e soldados passavam por situações-limite, como exposição a mudanças bruscas de pressão, imersão em água gelada, queimaduras e infecções.
Estudar essas condições implicava aumentar a chance de sobrevivência dos militares. Mas como fazer isso? Se o limite das experiências era a morte, os prisioneiros nos campos de concentração forneciam material farto como nunca antes e, claro, depois, como cadáveres. Os experimentos eram cruéis, mas alguns produziam resultados significativos. Um exemplo: Uma das técnicas de aquecimento em casos de hipotermia é baseada em dados obtidos nessas experiências.
Resultados como os das pesquisas de hipotermia contestam a visão de que os experimentos nazistas não passavam de pseudociência. Segundo um estudo da Sociedade Max Planck que durou 6 anos e custou US$ 5 milhões, pode haver valor científico até nas atrocidades de Mengele.
Segundo a líder do estudo, Susanne Heim, os experimentos dele, no contexto científico da época, não eram totalmente implausíveis. Obsessões, como as que Mengele tinha com gêmeos em seus estudos, podem ter impulsionado até a busca por conhecimento científico de vanguarda.
Um exemplo é o pioneirismo dos nazistas na produção de estudos sobre a relação entre o hábito de fumar e o câncer de pulmão. Segundo o historiador Robert Proctor, isso ocorreu por uma característica nazista conhecida como paranoia homeopática: a fixação por pureza e o temor de conviver com toxinas presentes na comida e no ar.
É incontestável que os experimentos com humanos foram antiéticos. Mas, dos 350 médicos envolvidos nessas experiências, poucos foram julgados. Entre os 23 réus do tribunal especial para médicos em Nuremberg, incluindo Karl Brandt, líder do programa de eutanásia e clínico pessoal de Hitler, 7 foram absolvidos, 7 condenados à morte e o restante foi para a prisão.
Mengele não estava entre eles. Livre, teria passado seus últimos dias no Brasil. Mas o destino de muitos cientistas nazistas capturados foi bem diferente do banco dos réus: laboratórios de instituições científicas dos países aliados.
A hora da pilhagem
"Se os americanos têm mesmo a bomba de urânio, vocês são todos cientistas de segunda categoria!", afirmou o físico Otto Hahn a seus colegas de cativeiro semanas antes da explosão em Hiroshima.
O descobridor do princípio por trás do funcionamento da bomba atômica e mais 9 cientistas de elite alemães estavam presos em um lugar nada convencional: uma casa de tijolos vermelhos em estilo georgiano na periferia de Godmanchester. Farm Hall, perto de Cambridge, no leste da Inglaterra, era o endereço em que o governo britânico mantinha o maior tesouro intelectual que conquistou no fim da guerra: a nata da física quântica alemã.
A ideia era convencê-los a trabalhar para o país. Mas, se dependesse do líder do projeto nuclear alemão, Werner Heisenberg, não seria tarefa fácil. "Nós vamos recusar os 50 mil rublos (oferecidos pela URSS) porque estamos satisfeitos e agradecidos em permanecer do lado dos ingleses?" Mal sabia ele que, em comparação com um lugar para onde os soviéticos mandavam nazistas, Farm Hall era um paraíso.
Para cooptar cientistas alemães, a URSS acenava com a possibilidade de eles trabalharem na Alemanha Oriental. Os que aceitaram se deram mal: era uma pegadinha de Stalin. Muitos dos que negaram receberam uma proposta ainda mais persuasiva: não ser fuzilado imediatamente.
Forçados a viver por 6 anos em Gorodmila - uma ilha cercada de arame farpado a meio caminho entre Moscou e Leningrado (hoje São Petersburgo) —, os cientistas moraram em cabanas no meio da floresta e fizeram ciência apenas com um material de ponta: o lápis.
A cobiça dos aliados por cérebros alemães era justificada: além dos foguetes V2, eles desenvolveram a física nuclear, o motor a jato e até a transmissão de TV. A bomba atômica nazista tinha tudo para dar certo, mas esbarrou em alguns problemas: a falta de interesse de Hitler — que privilegiava o V2 — e um erro de cálculo: Heisenberg acreditava que seriam necessários 2 toneladas de urânio 235 para fazê-la.
Os alemães foram os primeiros a realizar um voo a jato, mas a pesquisa aeronáutica era tão cara que minou os recursos para produção de caças e bombardeiros padronizados. Para ter ideia do quão longe foi a tecnologia nazista, se um extraterrestre um dia for capaz de captar um sinal de TV, verá a primeira imagem transmitida na Terra: o discurso de Hitler nas olimpíadas de Berlim, em 1936. Todo esse potencial científico-tecnológico certamente não passou despercebido pelos EUA.
Ir à Lua com os nazistas
Os EUA contrataram o maior superstar da ciência nazista como CEO de seu programa espacial. E Von Braun, o inventor dos foguetes V2, escolheu a dedo 120 pesquisadores especializados em mísseis teleguiados para trabalhar em Fort Bliss, no Texas.
A equipe logo recebeu um upgrade: mais 380 cientistas alemães e uma nova base, em Huntsville, Alabama. Huntsville era tão cheia de nazistas que recebeu o apelido de Peenemünde do Sul, alusão à cidade alemã onde estava a "bela adormecida" de Hitler, a antiga fábrica dos V2, de que falamos no começo do texto.
A pilhagem desenfreada de ideias e cérebros alemães ficou muito mais acirrada depois de 1945, mas não foi aí que ela começou. Para entender a fuga de cientistas da Alemanha, é necessário analisar o que o nazismo produziu na ciência.
Apesar dos efeitos maléficos do nazismo no meio científico, a afirmação corrente de que Hitler destruiu a ciência alemã é bem difícil de sustentar. Só a dimensão do interesse suscitado pelo conhecimento produzido no período já indica que houve significativa produção de qualidade.
Caso contrário, um relatório de 600 páginas feito pelo Departamento de Justiça americano a respeito da migração nazista para os EUA — que veio a público apenas em 2010 — não chegaria à seguinte conclusão: "A América, que se orgulha de ser um porto seguro para os perseguidos, tornou-se, em alguma medida, porto seguro para os perseguidores". Entre os perseguidores que os EUA acolheram estava Hubertus Strughold.
De ratos e homens
Trabalhando para a Nasa, Hubertus Strughold ganhou a fama de pai da medicina espacial e escreveu livros a respeito do tema. Em um deles, explica o que acontece a uma tripulação em uma cabine despressurizada a 15 mil metros de altitude: "A menos que tivessem a proteção adicional de trajes pressurizados, eles precisariam recorrer a pequenas reservas de oxigênio do sangue e dos tecidos. Elas durariam cerca de 15 segundos. Depois disso, eles perderiam a consciência e capacidade de se salvarem".
Ao ler esse texto científico, objetivo, não dá para ter ideia de como Strughold pode ter chegado ao tempo de 15 segundos. Para isso, é preciso conhecer seu antigo assistente, Sigmund Rascher, responsável pelos experimentos no campo de concentração de Dachau: "Sou, sem dúvida, o único que conhece por completo a fisiologia humana, porque faço experiências em homens, e não em ratos".
E, sobretudo, o relato do prisioneiro Anton Pacholegg, assistente de Rascher nos experimentos na câmara de baixa pressão: "Vi um prisioneiro suportar o vácuo até que os pulmões rebentaram. Certas experiências provocaram tal pressão na cabeça dos pacientes que eles enlouqueceram, arrancando os cabelos no esforço para aliviar o tormento. Esses casos de vácuo absoluto terminavam geralmente com a morte do paciente."
Strughold é acusado de destruir os dados obtidos por Rascher para evitar ser condenado por crimes contra a humanidade. Nunca demonstrou arrependimento por seu envolvimento em Dachau.
A ciência nazista produziu atos tão desumanos que tendemos a colocar todos os cientistas alemães na mesma "cesta de maçãs podres". "Nós preferimos nos focar nas imagens em preto e branco de nazistas fanáticos marchando porque isso permite que nos distanciemos deles", afirma Robert Proctor.
Mas acontece que generalizar um julgamento — em relação a pessoas ou a dados científicos — é usar o mesmo raciocínio simplificador que levou os nazistas a cometerem tantas atrocidades. É um modo de se aproximar da atitude do ex-ministro da Defesa alemão Franz-Josef Strauss em 1957, ao julgar o físico Otto Hahn, que acabara de assinar um manifesto pacifista: "Velho imbecil. Não consegue dormir nem conter as lágrimas quando pensa em Hiroshima".
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