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Matérias / Personagem

Nicolau II: A queda do czar incompetente

Em meio a uma crise sem paralelos, Nicolau II abdicou ao trono, abrindo caminho para os bolcheviques

Giovana Sanchez e Eduardo Lima Publicado em 26/10/2019, às 09h00

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Klimbim
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Em 15 de março de 1917, abandonado pelas elites e pele povo, o czar Nicolau II era forçado a abdicar do trono. A Rússia enfrentava um dos piores invernos da sua história. A temperatura chegava a 25 graus negativos e nevascas paralisavam as ferrovias, dificultando ainda mais a chegada de mantimentos para a população e de matéria-prima para as indústrias.

Fábricas fechavam e uma multidão de trabalhadores demitidos começava vagar pelas ruas das cidades. Mais de uma década se passara desde a onda de insatisfação popular que abalou o regime czarista em 1905. Assim como naquele ano, em 1917 os operários se organizavam para protestar contra o governo.

O principal motivo da revolta, desta vez, é a catastrófica entrada da Rússia em mais um conflito, que só traria dor e sofrimento para seu povo: a Primeira Guerra Mundial. O czar Nicolau II acreditava que a guerra faria despertar na população um fervoroso sentimento nacionalista, unindo-a em torno do czarismo e da defesa da pátria.

Essa avaliação era integralmente endossada pelos principais generais do Exército imperial, que apostavam em uma campanha militar curta e vitoriosa. Como de costume, o monarca e seus aliados estavam redondamente enganados.

Em 1915, com a Primeira Guerra apenas na sua fase inicial, o número de soldados russos mortos no front já beirava os 2 milhões. A maioria dos combatentes não passava de meros camponeses uniformizados, sem qualquer treinamento militar, que deixaram de produzir alimentos para empunhar baionetas e disparar canhões. “Começaram a faltar gêneros essenciais e a indústria, concentrada em atender às necessidades do Exército, não produzia bens de consumo corrente”, escreve o historiador Daniel Aarão Reis Filho, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em A Revolução Russa: 1917-1921.

Esse cenário era mais que propício para uma escalada inflacionária sem precedentes. Os salários dos trabalhadores, é óbvio, não acompanhavam a elevação dos preços. E o fantasma da fome voltava a assombrar diariamente as populações urbanas.

Crédito: Klimbim

Dois anos mais tarde, em 1917, o Império Russo apresentava o quadro mais sombrio e desanimador entre todas as potências engajadas na guerra. “Entre mortos, desaparecidos, feridos e prisioneiros, já haviam caído cerca de 5,5 milhões de soldados”, afirma o historiador da UFF.

ESTRELA SOLITÁRIA

Uma passeata feminina em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, em fevereiro de 1917, dá início a uma série de rebeliões. A manifestação rapidamente se transforma em uma greve, abraçada por mais de 100 mil trabalhadores. Os dias seguintes são marcados pela violência. Tropas ainda fiéis ao czar reprimem os manifestantes com extremo rigor.

A essa altura, as elites também estão cansadas da guerra e da permanente tensão social. Nada satisfeitas com as seguidas denúncias de corrupção no governo e com a influência cada vez maior que o místico Rasputin exerce sobre a família real, elas também já pensam em se livrar de Nicolau II. O czar está cada vez mais isolado e sua autoridade é questionada a todo momento. Até os soldados do Exército, pouco a pouco, passam a desacatar suas ordens, recusando-se a conter as manifestações de rua.

Em meio a tamanha agitação, Nicolau tenta dissolver a Duma – a assembléia legislativa eleita por voto popular. Mas os deputados resistem, em mais um desafio à autoridade do monarca. Enquanto isso, o Soviete de Petrogrado – em uma repetição da experiência de 1905 – volta à atividade com força total, inspirando a criação de mais e mais sovietes. De novo, eles funcionam como verdadeiros governos paralelos.

Em março de 1917, o czar já não encontra quem possa sustentá-lo no trono e é obrigado a abdicar. A Duma elege o chamado Governo Provisório, formado principalmente por liberais e socialistas moderados. Em tese, são esses os novos donos do poder, com atribuições constitucionais para tomar decisões. Mas eles não controlam as massas. O poder de fato, exatamente como tinha acontecido 12 anos antes, é exercido pelos sovietes, que reúnem deputados operários de cada fábrica e soldados de cada regimento do Exército.

EXPRESSO ALEMÃO

Percebendo que o caminho para uma revolução nunca esteve tão aberto, Lenin retorna do exílio na Suíça. Para chegar a Petrogrado, ele faz um acordo com o governo alemão, inimigo declarado da Rússia na guerra que está em curso. “Como os alemães esperavam que os revolucionários tirassem a Rússia da guerra, eles permitiram que Lenin e outros líderes cruzassem o país rumo ao território russo, em um trem fechado”, explica o historiador americano Philip Clark no livro A Revolução Russa.

Lenin é recebido como herói. De volta à Rússia, defende a retirada imediata da guerra, a nacionalização de todas as terras, o controle da produção industrial pelos operários e a formação de um governo radical, sem a participação de liberais. São as famosas Teses de Abril – logo de cara, uma ruptura dos bolcheviques com o recém-instaurado Governo Provisório. “O governo demonstrava insensibilidade face às reivindicações populares”, escreve Reis Filho. “Ele recusara aos operários a jornada de trabalho de oito horas, considerara prematura a reforma agrária e não reconhecera aos não-russos o direito a uma pátria.”

Não tardaria para que as teses de Lenin se transformassem em ação. Entre os dias 16 e 18 de julho, trabalhadores e soldados liderados por ele tentam tomar o poder, em uma revolta que entraria para a história como as “Jornadas de Julho”. O problema é que Socialistas Revolucionários e mencheviques também exerciam influência sobre os sovietes. Ou seja: os bolcheviques ainda não contavam com as bases necessárias para uma revolução. O golpe fracassa. Acusado de ser um espião a serviço da Alemanha, Lenin volta para o exílio. Mas vários de seus camaradas acabam na cadeia.

REVOLUÇÃO À VISTA

À medida que o ano avança, a radicalização de operários, camponeses e soldados só aumenta. No campo, senhores de terras vinham sendo sumariamente expropriados e, em alguns casos, executados. Nas cidades, greves e mais greves sucedem-se. O príncipe George Lvov, um latifundiário, é substituído no comando do Governo Provisório por Alexander Kerenski, um socialista moderado. Kerenski acredita ser possível pacificar a Rússia por meio de negociações.

Crédito: Klimbim

Mas o comandante do Exército, general Kornilov, defende o uso enérgico da força. Sua intenção é aniquilar sovietes, comitês de fábrica ou qualquer outro instrumento de organização das massas. Na verdade, o que o general almeja é assumir o poder. Kerenski percebe que seu Governo Provisório está em risco e busca o apoio justamente dos bolcheviques, libertando presos políticos e entregando-lhes armas. “Com essa manobra, ele impede o golpe de Kornilov, mas praticamente entrega o poder aos camaradas de Lenin”, escreve Philip Clark.

No final de agosto, pela primeira vez, verifica-se maioria bolchevique no Soviete de Petrogrado. O mesmo acontece em Moscou, Baku e outras 50 cidades. O poder, mais uma vez, está dividido: de um lado, a Duma; do outro, os conselhos populares. Mas a palavra de ordem que mais ecoa por toda a Rússia antecipa o que virá pela frente – “Todo o poder aos sovietes!”. O cenário para o “Outubro Vermelho” finalmente está completo. A revolução bolchevique aproxima-se.

O BRUXO DA CORTE

Grigori Rasputin era um sujeito barbudo, malcheiroso e de comportamento estranho. Quando apareceu em Petrogrado, no ano de 1903, ninguém sabia muito a seu respeito. Dizia-se apenas que aquele era um homem dotado de poderes sobre-humanos, capaz de prever o futuro, entrar em contato com entidades do além e curar. Em uma sociedade tradicionalmente religiosa, apegada a superstições de todo tipo, o enigmático forasteiro tinha tudo para se dar bem. E foi exatamente o que aconteceu.

Em 1905, Rasputin foi apresentado ao czar Nicolau II. Na época, o monarca estava desolado com a doença de seu filho predileto. O pequeno Alexei, ainda um bebê, sofria de hemofilia, mal até então sem tratamento. Ao visitá-lo, Rasputin teria feito uso de uma força misteriosa, que conteve as hemorragias do menino. A partir daí, espalhou-se pelo Império a notícia de que o príncipe havia sido curado por um bruxo.

Com o tempo, a influência do místico sobre o czar e a czarina Alexandra converteu-se em poder político. Rasputin fazia e desfazia ministérios como bem entendia, articulava alianças e dava palpites nos mais variados assuntos de Estado. Mas sua ambição e seu estilo de vida nada ortodoxo acabariam por traí-lo. Histórias de subornos, noites de bebedeira, farras com prostitutas e orgias, além de denúncias de estupro, tornaram-se perigosamente freqüentes.

Sua reputação perante o povo foi ficando cada vez mais manchada. Até que o boato sobre um suposto envolvimento amoroso com a própria czarina arruinou de vez sua imagem. Em dezembro de 1916, Rasputin foi assassinado por um jovem integrante da aristocracia russa – o príncipe Felix Yusupov, com quem ele também teria mantido um romance secreto.


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