Com uma ampla história de vitórias a serviço da Coroa Britânica e a Índia, a tropa de elite vive pelo lema: “Melhor morrer que acovardar-se”
Na primeira vez que estive em Pokhara, anos atrás, aquela era uma pitoresca cidadezinha espraiada pelas margens do Phewa Tal, o Lago Tal, tendo como pano de fundo as montanhas geladas da Cordilheira do Himalaia. Destino famoso no circuito turístico-mochileiro pela qualidade do haxixe local e por ser ponto de partida para excursões de alpinistas rumo aos picos acima de 8 mil metros de altitude do vizinho maciço Anapurna.
Pokhara era então a única cidade de expressão do Nepal, além de Katmadu, a capital. Periodicamente, rapazes vindos de todo o país eram reunidos ali, após rigorosa pré-seleção em suas aldeias de origem, empoleiradas pelas colinas no interior do país. Na primeira fase, com média de 30 candidatos por vaga, são escolhidos aqueles entre 17 e 22 anos, com no mínimo 1,57 metro de altura e 50 quilos, excelente saúde e certo conhecimento do idioma inglês. Durante as três semanas dessa segunda peneira no Centro de Seleção de Pokhara, os candidatos passam por provas de inglês e matemática, um teste de iniciativa e, claro, a notória “corrida doko”, em que é preciso correr durante 40 minutos montanha acima carregando nas costas uma cesta com pedras pesando quase 40 quilos. Os aprovados após uma entrevista final estão aptos a iniciar o treinamento de nove meses - três dedicados a aulas intensivas de inglês - aprendendo as tradicionais tarefas militares (uso de armas e explosivos, condicionamento disciplinar, etc.) e, principalmente, adaptando seu comportamento aos usos e costumes ocidentais. Quem tem sucesso nessa fase está pronto para juntar-se a uma das forças de elite mais peculiares e temidas do planeta: a Brigada dos Gurkhas.
Apesar do nome, a Brigada inclui integrantes dos vários grupos étnicos e culturais que compõem a população nepalesa, não se limitando aos gurkhas. Originários do norte da Índia, de onde emigraram há pelo menos cinco séculos para o leste, até fixar-se no que é hoje o Nepal, os gurkhas acreditam ter entre seus ancestrais o discípulo de um santo-guerreiro hindu. Ele teria dado ao povo a missão de deter o avanço dos muçulmanos, que naqueles dias invadiam parte do atual Afeganistão, então uma nação hindu-budista chamada Gandhar. De acordo com a lenda, os guerreiros conquistaram em seguida os atuais Irã e Iraque.
Tradições mitológicas à parte, a História registra que uma tropa de antepassados dos gurkhas liberou Gandhar e no século 8º conteve, pelo menos temporariamente, o ímpeto do Islã em sua expansão pelo subcontinente indiano. No início do século 16, alguns descendentes desses grupos migraram ainda mais para o leste e conquistaram um pequeno reino que denominaram Gorkha, em homenagem ao seu santo padroeiro, Guru Gorkhnat, que, ainda segundo a lenda, presenteou-os com o kukri, o punhal característico até hoje associado a esses guerreiros. Os primeiros gurkhas começaram a ser contratados como mercenários pelo Exército britânico logo depois de enfrentá-los no campo de batalha, e a partir de 1817 já serviam nas Forças da Companhia das Índias Orientais nas várias guerras pelo subcontinente. Durante o Grande Motim de 1857, a rebelião de indianos contra seus senhores coloniais, os gurkhas foram das poucas unidades nativas que permaneceram fiéis aos britânicos, sendo oficialmente incorporados ao Exército Britânico Indiano.
Como parte desse Exército, regimentos gurkhas lutaram na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais, em episódios que fizeram a fama de sua ferocidade. Após a independência da Índia, em 1947, seis regimentos gurkhas juntaram-se ao nascente Exército indiano, enquanto outros quatro foram incorporados ao Exército britânico em 1948, formando a Brigada dos Gurkhas, estacionada na Península Malaia (hoje parte da Malásia). Pouco depois, entravam em ação na chamada Emergência Malaia, insurreição liderada por guerrilheiros comunistas, na qual os gurkhas destacaram-se como eficazes combatentes na selva, particularmente em suas emboscadas contra a guerrilha.
Em 7 de dezembro de 1962, integrantes da Brigada sediados na Inglaterra tiveram apenas um dia para preparar-se antes de ser aerotransportados ao Oriente Médio para intervir na Revolta de Brunei. Eles voltariam a atuar no outro lado do mundo, quando a Companhia Independente Gurkha de Pára-quedistas foi mobilizada em abril de 1963 em outro choque armado, o Confronto Indonésio. Depois do fim do conflito, os gurkhas foram transferidos para Hong Kong, onde serviram para proteger interesses britânicos, enquanto a vizinha China Continental era abalada pela Revolução Cultural. A guarnição de Hong Kong foi desativada em 1997, quando os britânicos devolveram o território à República Popular da China, e o contingente da Brigada dos Gurkhas sofreu drástica redução como parte de novo programa do governo de Londres para cortes no orçamento militar.
Mas, antes disso, em 1982, esses guerreiros de origem nepalesa já haviam semeado o terror entre o inimigo nas lutas corpo-a-corpo após desembarque na Baía de San Carlos, durante a Guerra das Malvinas. Naquela ocasião, soldados argentinos denunciaram a extrema brutalidade dos gurkhas, acusados de lutar sob efeito de drogas e assassinar prisioneiros a sangue-frio. As denúncias nunca foram apuradas, e não impediram que soldados e oficiais da Brigada fossem incorporados às forças da Otan (a aliança militar liderada pelos Estados Unidos) em operações militares no Kosovo ou em missões de paz das Nações Unidas em Serra Leoa, na Bósnia e no Timor Leste.
Hoje, batalhões gurkhas ainda fazem parte dos exércitos indiano e britânico. Neste, a Brigada continua em ação, adaptando-se aos novos tempos – em março passado, o ministro da Defesa Derek Twigg anunciou estudos para admitir pela primeira vez mulheres na unidade. O lema, porém, permanece o mesmo: “Melhor morrer que acovardar-se”. E há mais de meio século esse espírito marcial vem sendo aplicado além dos círculos militares. Desde 1949 a Força Policial de Cingapura conta com regimentos gurkhas. Eles também têm papel fundamental na prevenção de atentados e atos terroristas, atividade na qual usam armamento similar ao de forças equivalentes: escopetas calibre 12, submetralhadoras Heckler & Koch MP5, fuzis de assalto M16 calibre 5,56 mm.
Mas os gurkhas notabilizaram-se mesmo pela luta corporal com técnicas desenvolvidas ao longo de milênios pelas artes marciais, e também pela mortífera habilidade com que manuseiam seus punhais ancestrais, os kukri. Graças a essa fama sinistra, um terror paralisante costuma percorrer as fileiras adversárias quando ouvem ressoar o grito de guerra Jai Mahakali, Ayo Gorkhali – em tradução literal, “Glória à deusa da guerra, aqui vão os gurkhas”!
O kukri, misto de ferramenta e arma conhecido por muitos simplesmente como “faca gurkha”, é um pesado punhal de lâmina com até 38 centímetros de comprimento, curvada em ângulo de 20 graus, com largura variável de 3 a 10 centímetros. É usado como ferramenta e arma, um híbrido de machado e facão. Tem corte apenas de um lado (a parte de trás da lâmina pode ser bastante grossa), mas, quando bem afiado e manejado por guerreiro experiente, permite decapitar o adversário num só golpe – seu desenho a torna mais adequada a golpes de cima para baixo e pelas laterais do que a estocadas.
Na base da lâmina, perto do cabo, habitualmente há uma pequena depressão ou par delas, com significados tanto práticos quanto místicos. Nas cerimônias de sacrifício de animais, elas servem para fazer com que o sangue da vítima escorra pela lâmina sem sujar o punho. Mas, para os hindus, as depressões simbolizam a genitália de Kali, deusa da guerra, entre outros atributos. Já as ranhuras que atravessam a lâmina no sentido longitudinal simbolizariam a lança (ou o órgão viril) de Shiva, o deus criador/mantenedor/destruidor do panteão hinduísta.
Os kukris são diferenciados por seu uso, podendo ser de dois tipos, o Siropate, com lâmina mais delgada, usado na guerra, e o Budhuni, empregado para cortar madeira. Tradicionalmente, essas adagas costumavam ter punhos feitos com chifres de búfalo d’água ou latão e eram produzidas por mestres artesãos, em meio a rituais sigilosos e sangrentos sacrifícios de cabras e outros animais.
Livros
• The Gurkhas: The Inside Story of the World’s Most Feared Soldiers, John Parker , Headline Book Publishing, 2000
A história da unidade, contada por quem viveu no Nepal e conviveu com “os mais temidos soldados do mundo”.
• Gurkhas at War: In Their Own Words , John Cross, Greenhill Books, 2002
Pela primeira vez, os próprios protagonistas contam suas histórias de guerra no período entre 1939 e 1998.