Quando a corte portuguesa desembarcou em Salvador, teve início uma festa de “arromba” que durou mais de um mês
Depois de tanto tempo navegando sobre o mar, finalmente - terra a vista: estava alí ao alcance dos olhos a baía de Salvador. A visão de uma natureza exótica e única que nasceu naquele momento para os nobres e coitados portugueses. Mesmo descontando o efeito de uma certa fome de terra firme pelo qual passava o pessoal a bordo, a paisagem encantava: de um lado e de outro, ilhas de vários tamanhos e praias virgens encimadas por uma coroa verdejante; à frente, as cintilantes construções brancas no alto de um morro, emolduradas por uma mata luxuriante. Na chegada à Bahia, dia 22 de janeiro de 1808, a colônia parecia bem melhor que a encomenda.
A única peça fora do lugar naquele primeiro contato era o estranho vazio no cais da cidade. Postado nas docas, havia apenas a figura do governador da província, João Saldanha da Gama. Logo apareceu também o arcebispo dom José da Santa Escolástica. Dom João estranhou tanta calmaria. E o governador apressou-se em explicar que preferia, primeiro, receber o príncipe, para depois levá-lo ao povo. O monarca português, então, retrucou: “Deixe o povo vir como quiser, porque deseja ver-me”.
Dom João e a corte decidiram esperar que toda a arrumação fosse providenciada. O desembarque ocorreu um dia depois, sob um autêntico carnaval baiano – com direito a tiros de canhão, sinos repicando nas muitas igrejas de Salvador e uma imensa multidão aglomerada no cais da Ribeira. Era a primeira vez que um monarca europeu pisava numa de suas colônias.
Ao pisar em terra, a comitiva real deparou-se com um cenário muito diferente do paraíso que Salvador parecia quando vista do mar. A cidade era suja, miserável e de um mau cheiro exasperador. Fezes eram jogadas na rua, havia lojas barulhentas e animais soltos. Esse era o retrato da área baixa, onde se concentrava a população mais pobre.
Mas festa é festa, e os portugueses tinham todos os motivos para mergulhar naquele autêntico carnaval baiano. Dom João e comitiva seguiram pela rua da Preguiça até a Ladeira da Gameleira, chegando ao largo do Theatro (atual Praça Castro Alves). Depois, todos se dirigiram à Igreja da Sé, onde o arcebispo celebrou um Te Deum Laudamus, em agradecimento pelo sucesso da viagem. No dia 24 de janeiro, houve o desembarque definitivo de toda a corte. A exceção foi Carlota Joaquina – ela só desceu do navio no dia 28. Dom João ficou hospedado na melhor casa da cidade, o Palácio do Governador, enquanto a comitiva foi para a Casa de Relação, uma espécie de Palácio da Justiça.
Os detalhes que cercam a chegada da corte a Salvador são bem conhecidos. Mas um mistério ainda suscita debates: por que dom João decidiu passar pela Bahia antes de se instalar no Rio de Janeiro? Para muitos pesquisadores, a mudança de rumo se deveu às fortes tempestades que avariaram alguns navios da frota. Mas o historiador inglês Kenneth Light, que pesquisou durante anos os diários de bordo dos navios britânicos que acompanharam a esquadra portuguesa, apresenta uma versão mais plausível.
Light reforça a tese de que a visão política de dom João predominou, contrariando a imagem de um monarca indolente e obtuso. Segundo o historiador, as embarcações não ficaram à deriva e o príncipe teria comunicado a decisão da mudança de rota no dia 21 de dezembro de 1807 – 11 dias após a terrível tormenta. Salvador tinha sido a primeira capital da colônia e ainda era um importante centro de decisões. Havia um grande ressentimento dos moradores com a mudança da capital para o Rio, em 1763, e o grande receio do governante português era que esse sentimento provocasse algum tipo de insurreição.
Durante sua estada na Bahia, dom João tomou decisões importantes, como a criação da escola médico-cirúrgica (o primeiro curso de nível superior do país e que iria se transformar na Faculdade de Medicina) e da primeira companhia de seguros do Brasil. Também tratou de garantir a simpatia do povão. Mandou reduzir a pena daqueles que estavam presos. E chegou a distribuir moedas de prata na rua, num dia de efusiva manifestação popular.
Apesar da insistência das autoridades locais, que queriam até construir um palácio para dom João, o príncipe-regente finalmente embarcou para o Rio de Janeiro no dia 26 de fevereiro, argumentando que Salvador era mais vulnerável a um ataque francês. Mas designou, em 1810, dom Marcos de Noronha e Brito – conde dos Arcos e último vice-rei do Brasil – para governar a Bahia.