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Matérias / Dom Casmurro

125 anos depois, Dom Casmurro ainda levanta debates 'acalorados'

Desde sua publicação, em 1899, o romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, tem sido objeto de discussões e problematizações

Luiza Lopes Publicado em 29/09/2024, às 08h00

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Fotografia de Machado de Assis por Marc Ferrez, em 1890, e capa de "Dom Casmurro" - Wikimedia Commons via Marc Ferrez/Adam Cuerden
Fotografia de Machado de Assis por Marc Ferrez, em 1890, e capa de "Dom Casmurro" - Wikimedia Commons via Marc Ferrez/Adam Cuerden

Desde sua publicação, em 1899, o romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, tem sido um amplo objeto de discussões e problematizações. A obra é narrada por Bento Santiago, também conhecido como Dom Casmurro, que relembra sua vida marcada por um trágico romance.

A vida do protagonista foi marcada pela crescente desconfiança em relação à fidelidade de sua esposa, Capitu, especialmente em relação a seu amigo, Escobar.

Após o nascimento de seu filho Ezequiel, ele começou a acreditar que o menino se parecia mais com o amigo do que consigo, alimentando suas suspeitas de traição, levando-o a se afastar dela e enviar a esposa e o filho para a Suíça.

Anos depois, já solitário, Bento decide narrar suas memórias em uma tentativa de convencer a si mesmo e ao mundo de que não errou ao acusar Capitu.

Ambiguidade

A chave para as múltiplas interpretações reside na riqueza da escrita de Machado, repleta de intertextualidade e polissemia, que, em vez de fornecer respostas ao leitor, o envolve nas lacunas propositadamente deixadas na obra. Essas incompletudes, conscientemente inseridas, não oferecem soluções definitivas, mas abrem espaço para diversas possibilidades. 

“Um autor como Machado de Assis, dono de concepções filosóficas muito sofisticadas, investe na irônica dualidade do significado das coisas, evitando toda e qualquer assertividade, que resultaria no máximo em um moralismo de ocasião”, pontua Welington Andrade, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Língua Portuguesa do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, à Aventuras na História.  

No final do século XIX, o Brasil passava por profundas transformações, como a abolição da escravatura e a proclamação da República, o que gerava tensões sociais e mudanças nas estruturas tradicionais. A sociedade, naquele momento, lidava com a necessidade de adaptar-se às novas condições políticas e sociais, ao mesmo tempo que mantinha resquícios de um passado colonial conservador.

Para Andrade, enquanto “o leitor se distrai” com o dilema amoroso apresentado, “outras coisas talvez muito mais sérias vão sendo ditas no romance sem serem percebidas”. 

“Impossível, então, não concordar com Roberto Schwarz, que aponta, em seu célebre ensaio, para a singularidade da condição histórica brasileira de fins do século XIX: ‘engastada entre o lastro sufocante do colonialismo e da escravidão e as promessas inconsistentes da modernidade e do progresso’. Ou seja, enquanto perde tempo com uma questão da ordem da intimidade, o leitor não atenta para a dimensão pública com a qual o romance também trabalha”, afirma o professor. 

machado
Registro de Machado de Assis de 1896 / Crédito: Wikimedia Commons via Domínio Público

Traiu ou não traiu?

No romance, Capitu é uma criação “única e exclusiva” de Bentinho. Isso significa que não temos acesso a ela, a não ser pelas palavras dele. “Esse recurso – embora adotado às claras – nem sempre é percebido pelo leitor. Há um caráter metalinguístico aí muito interessante: o fato dela ser uma personagem criada pelo narrador. Uma figura da memória e da imaginação”, explica Andrade

Assim, a interpretação de que houve uma infidelidade, ou não, depende da experiência individual de leitura. Leitores de diferentes épocas, influenciados pelas ideologias sociais de seus tempos, tiveram percepções distintas sobre a obra, o que explica por que Capitu foi amplamente considerada culpada por tanto tempo após a publicação do livro. 

Dom Casmurro foi inicialmente lido por uma classe burguesa e patriarcal, num contexto em que, legalmente, apenas a mulher era considerada adúltera. O Código Penal de 1890 previa punição para a mulher casada que cometesse adultério, enquanto o homem só era punido se mantivesse uma concubina, o que revela o pensamento da época. 

Nesse cenário, a mulher era vista como responsável por suas funções domésticas e maternas, e qualquer comportamento contrário gerava julgamentos sociais. Leitores do final do século XIX e início do século XX, com uma visão patriarcal, exigiam uma conduta imaculada das mulheres, o que explica a aceitação quase unânime da traição de Capitu

Até a primeira metade do século XX, não havia publicações que considerassem sua possível inocência. Somente a partir da década de 1960, com a crítica de Helen Caldwell, surgiu a hipótese de que ela poderia ser vítima das acusações de Bentinho. Caldwell defende essa interpretação em seu livro "O Otelo brasileiro de Machado de Assis".

Com as conquistas feministas exercendo enorme e louvável pressão sobre a mentalidade patriarcal, Capitu está sendo alçada a outro patamar: a de uma figura que foi insidiosamente silenciada”, destaca o professor. 

Legado 

A escrita machadiana se destaca pela complexa construção narrativa de seus personagens, instigando o pensamento crítico dos leitores. “Machado ainda é um intérprete do Brasil, e suas criações continuam vivas em nossa sociedade. Também é um escritor que perscruta a interioridade de suas personagens, sem cair em esquematismos psicológicos. Por fim, fala da aventura humana em caráter mais amplo, examinando como o trágico se transforma no patético”, afirma Andrade.

As obras dele destoam dos movimentos literários de sua época pela originalidade e pela abordagem psicológica, que só seria explorada posteriormente.

“Com um jeito divertido, irônico e incisivo de escrever, Machado analisou a sociedade, as emoções humanas e a complexidade da mente de uma forma tão profunda que ele nem sequer poderia imaginar quantos conceitos citados por ele seriam descobertos anos depois por Sigmund Freud”, argumenta Adelmo Marcos Rossi, mestre em Filosofia e psicólogo, em seu livro “O Imortal Machado de Assis – Autor de Si Mesmo”.

"Desde muito cedo, Machado foi um escritor admirado, gozando de imenso prestígio no meio literário e entre o público leitor também. Entretanto, tal admiração não se converteu propriamente em um modelo, uma fórmula a ser seguida – ainda bem! –, graças à singularidade desse projeto literário. Um grande autor não pode ser imitado”, acrescenta o professor.