Fraude fez a vida de Samuel Barrett Edes ir por água abaixo, mas P.T. Barnum tornou a bizarra 'sereia' uma lenda dos freak shows
Pamela Malva// Atualizado por Fabio Previdelli Publicado em 09/05/2020, às 08h00 - Atualizado em 31/08/2023, às 14h50
Durante quase todo o século 19, as pessoas eram profundamente atraídas por circos 'bizarros' e shows mórbidos. Naquela época, quanto mais esquisita e singular fosse a atração, maior era o entretenimento do público.
Assim, mulheres barbadas, pessoas fisicamente alteradas e super-humanos eram os queridinhos do show business. Ainda que fossem tratados como aberrações pela sociedade, tais artistas arrecadavam valores exorbitantes todas as noites.
Exposta em uma caixa de vidro grosso, a Sereia de Fiji foi uma das atrações mais conhecidas na época. Com diversos outros indivíduos semelhantes, ela atraiu a atenção de cidades inteiras ao redor do mundo — verdadeira ou não.
Reza a lenda que, logo no início dos anos 1800, a curiosa sereia foi encontrada perto das Ilhas de Fiji, no Pacífico Sul. Intrigados, marinheiros japoneses deram nome ao ser capturado e trouxeram-na para terra firme.
Naquela época, comerciantes holandeses possuíam certa ligação com o mercado japonês. Dessa forma, após algumas negociações amigáveis, a sereia foi comprada, em meados da década de 1810.
Por anos, o ser marítimo fez sucesso em terras holandesas até chamar atenção de Samuel Barrett Eades. Profundamente intrigado pela entidade mística, o capitão norte-americano arrematou a sereia por 5 mil dólares espanhóis, em 1822. O que equivaleria a cerca de 126 mil dólares atualmente (quase R$640 mil), aponta o Guinness Book.
Mas não foi só isso. Para arrecadar o dinheiro, Eades vendeu o navio mercante The Pickering, do qual ele tinha apenas um oitavo das ações. A embarcação foi arrematada por seis mil dólares espanhóis. Os mil dólares restantes ele usou para garantir uma passagem até a Inglaterra.
Com um tórax semelhante ao dos humanos e uma cauda grossa, a sereia foi exibida em Londres naquele mesmo ano. A atração foi divulgada em jornais, a fila da exposição estava sempre lotada e as opiniões sobre sua veracidade eram bastante divididas.
Eades, porém, não tinha dúvidas, estava convencido da existência dos tritões. Com todo o sucesso da exibição da sereia, a comunidade científica ficou maluca para desvendar a verdade sobre o ser.
O Guinness aponta, entretanto, que Stephen Ellery, dono dos outros sete oitavos do The Pickering, entrou com uma ação na Justiça contra a venda da embarcação. A vida de Eades foi por água abaixo quando a farsa da sereia foi comprovada e os tribunais decidiram que ele seria forçado a trabalhar o resto de sua vida para saldar sua dívida.
Em meados de 1840, Samuel Barrett Edes morreu e deixou seu bem mais precioso de herança para seu filho. Cansado da sereia, no entanto, o jovem vendeu o artefato para Moses Kimball, integrante do Museu de Boston. Aquela altura, apesar das declarações da sereia ser falsa, ela ainda gerava muita curiosidade.
Uma vez detentor do espécime, Moses imaginou que um amigo de Nova York saberia como proceder com a sereia. Assim, o famoso P. T. Barnum colocou os olhos no ser místico pela primeira vez em 1842.
Profundo apreciador do oculto, Barnum passou a alugar a sereia de Moses e expô-la no Museu Americano de Barnum, em Nova York. Pagando US $12,50 por semana, ele passou a ganhar milhares de dólares.
Percebendo a fama da criatura e a forma como ela conquistava o olhar dos curiosos, Barnum decidiu criar uma publicidade mais agressiva. Assim, enviou cartas anônimas para diversos veículos jornalísticos, apresentando a sereia.
Nos textos, explicava que um explorador havia capturado a criatura durante uma de suas viagens na América do Sul. Sob o nome de Dr. J. Griffin, então, um empregado de Barnum passou a viajar com a sereia, alegando tê-la encontrado.
O sucesso da peça era inegável e Barnum pensava ter tirado a sorte grande. Após um incêndio no Museu Americano de Barnum, entretanto, a sereia desapareceu em 1859. Seu paradeiro nunca mais foi encontrado e a memória ficou para as fotos e ilustrações.
O legado da suposta sereia se seguiu por anos, ainda mais quando outros espécimes parecidos apareceram. Especialistas, contudo, estavam determinados a desvendar a história por trás da criatura de Barnum.
Foi descoberto, então, que o ser místico, na verdade, era composto pelo tronco um macaco costurado à metade de um peixe. No caso da Sereia de Fiji, como repercutido pela LiveScience, o artefato poderia ser a junção de um orangotango com um salmão.
Segundo um artigo publicado pela revista Western Folklore na época, a sereia provavelmente foi criada por um pescador japonês, no início de 1800. Essa seria uma tradição asiática que, desconhecida pelo Ocidente, enganou desavisados e ainda garantiu um mundo de fama para aqueles que decidiram expô-la.
"Hoje em dia é difícil acreditar que Eades estava disposto a arriscar tudo na sereia, mas naquela época a existência de tritões ainda estava em debate. Realmente não se sabia se as sereias eram reais ou não. Eades pensou que sua sereia resolveria a questão e faria sua fortuna", explica Sarah Peverley, consultora especializada do Guinness em artigo publicado no site do Livro dos Recordes.
Embora outras chamadas sereias tenham sido exibidas em toda a Europa antes, nenhuma era como a dele. Isso porque veio do Japão, onde foi feito como um ícone religioso que representa um dos yokai ou espíritos da cultura japonesa", conta a especialista.
Acontece que, do século 17 até meados do século 19, o Japão tinha uma rígida política isolacionista, conhecida como Sakoku, que limitava o comércio e o contato com nações estrangeiras, sendo assim, tão pouco se sabia sobre sua cultura nos círculos europeus.
"Objetos como a sereia não eram compreendidos pelos forasteiros, então quando caíram nas mãos de marinheiros como Eades, eles trocaram de mãos por grandes somas de dinheiro e foram tirados do contexto", diz Sarah, que também é professora da Universidade de Liverpool.
"A sereia de Eades captura o quão espirituais, imaginativos, curiosos, otimistas e totalmente crédulos os humanos podem ser. É trágico que ele tenha perdido tudo, mas P. T Barnum fez fortuna com ela. Barnum era simplesmente melhor em lidar com as opiniões conflitantes que os sereia evocada nas pessoas. Ele deixou para o público decidir se ela era real ou não, ao invés de dizer a eles que ela era a resposta que a ciência estava procurando", finaliza.