Spike Lee reconta a guerra sem mexer nos fatos. Mas revela novos capítulos
"Lutamos uma guerra imoral que não era nossa, por direitos que nós não tínhamos." A fala do protagonista Paul (Delroy Lindo, numa performance digna de Oscar) se refere à participação dos negros na Guerra do Vietnã, a verdadeira pauta por trás do enredo deste filme de ação dramática de Spike Lee – que abriria o Festival de Cannes deste ano, se não fosse a pandemia.
Um grupo de quatro veteranos do combate decide retornar ao Sudeste Asiático, já velhinhos, para uma missão de acerto de contas, mas que também é uma caça ao tesouro: querem achar os restos mortais do líder que comandava seu pelotão (só de negros), e de quebra encontrar uma arca cheia de barras de ouro, que eles haviam escondido 50 anos atrás.
O que de início parece uma aventura pautada pela nostalgia e o sentimento de amizade logo muda de perspectiva: o retorno ao cenário da malfadada campanha militar serve de gatilho para reabrir feridas psíquicas. Os quatro escondem efeitos colaterais de sua experiência na guerra.
O mais evidente, desde o início da história, é o desequilíbrio psicológico de Paul. Mas é a cicatriz coletiva que permeia todo o filme: os negros mandados ao Vietnã se matavam por um país que os tratava como cidadãos de segunda classe.
O racismo se manifestava inclusive entre as tropas. Em 1968, quando o Exército dos EUA na Ásia recebeu a notícia do assassinato de Martin Luther King, soldados brancos – americanos! – chegaram a colocar fogo em cruzes no Vietnã, uma homenagem explícita à Ku Klux Klan.
Bandeiras dos confederados – o lado da Guerra Civil americana que queria a continuidade da escravidão – eram exibidas livremente. E a situação não mudou quando chegou a hora de voltar para casa.
Um estudo de 2006 revelou que, por causa do racismo militar e o preconceito no próprio país, os veteranos negros da Guerra do Vietnã nutrem sentimentos conflitantes sobre suas vivências durante o conflito e têm dificuldade de racionalizar a brutalidade contra os vietnamitas.
Por isso, sofrem de transtorno de estresse pós-traumático em uma taxa muito mais elevada do que os veteranos brancos. Enquanto Tarantino faz um tipo de revisionismo em seu cinema, mostrando, por exemplo, como a II Guerra deveria ter sido (com judeus dando uma lição ultraviolenta nos nazistas), Spike Lee vai no sentido inverso: ele reconta a guerra sem mexer nos fatos. Mas revela novos capítulos, expondo ao mundo o que a versão oficial, de filtro branco, sempre preferiu omitir.
Alexandre Carvalho é jornalista e criou, em 2005, a revista de cinema Paisà. é autor dos livros Inveja – Como Ela Mudou a História do Mundo (2015) e Freud – Para Entender de Uma Vez (2017)