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Matérias / Mulheres no cangaço

Maria e o Cangaço: O cruel código dos cangaceiros contra as mulheres

Mesmo sem permissão para participar das batalhas, cangaceiras como Maria Bonita eram submetidas a um código rígido e implacável

Felipe Sales Gomes, sob supervisão de Fabio Previdelli Publicado em 07/04/2025, às 16h00 - Atualizado em 08/04/2025, às 17h49

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Maria Bonita (realidade X série) - Domínio Público; Divulgação
Maria Bonita (realidade X série) - Domínio Público; Divulgação

A minissérie brasileira que resgata a história de Maria Bonita, que ao lado de seu marido, Lampião, se tornou lenda no sertão nordestino, 'Maria e o Cangaço' chegou ao catálogo do Disney+ mostrando uma nova perspectiva da figura: Maria Bonita como mãe e mulher. 

Adaptação do livro 'Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço', da jornalista Adriana Negreiros, 'Maria e o Cangaço' mostra os dilemas da personagem entre seguir com a vida de uma fora da lei e a vontade de construir uma família após descobrir sua gravidez. O código do cangaço contra a mulher, não era nada fácil. Entenda!

De Maria da Déa para Maria Bonita

Na paisagem árida e brutal dos anos 1920, no sertão nordestino, quando mulheres não podiam votar, tampouco se divorciar, Maria Bonita rompeu as amarras sociais com a força de um trovão fora de hora.

Em uma época em que a infidelidade masculina era naturalizada — e doenças venéreas, inclusive, tidas como sinal de virilidade —, bastava uma mulher levantar a voz ou rir alto para ser tachada de vulgar. No código do cangaço, ainda mais cruel, uma traição feminina podia terminar em apedrejamento.

Foi nesse cenário que Maria Alves de Lima, conhecida como Maria da Déa, escreveu sua própria história — à margem das regras e à revelia dos homens. Nascida em Paulo Afonso (BA), filha de pequenos agricultores, Maria se casou jovem com o sapateiro Zé de Neném.

Mas não era mulher de aceitar calada a infidelidade do marido: quando ele a traía, ela se refugiava na casa dos pais e dançava forró como quem reivindica alegria por direito. O casamento não a satisfazia — nem sexual, nem emocionalmente — e, com o tempo, passou a expressar abertamente sua fascinação por Lampião, o cangaceiro mais temido e procurado do Nordeste.

Lampião e Maria Bonita - domínio público

A chance de mudar de vida chegou como uma faísca. E ela não hesitou. Quando Virgulino Ferreira da Silva, o lendário Lampião, a quis em seu bando, Maria foi. Deixou para trás o nome de batismo e passou a ser chamada, com reverência e temor, de Maria Bonita.

Tornou-se a primeira mulher a integrar o cangaço por vontade própria — e símbolo da insurgência feminina num universo moldado pela violência e pelo silêncio das mulheres.

Biografia

Essa trajetória rica e complexa é o foco da obra Maria Bonita – Sexo, violência e mulheres no cangaço (Editora Objetiva), da jornalista Adriana Negreiros.

O livro reconstrói, com fôlego jornalístico e densidade histórica, a vida de Maria Bonita e das demais mulheres que viveram e sobreviveram ao cangaço — ora como cúmplices, ora como vítimas de um sistema em que o poder era sempre masculino e a brutalidade, cotidiana.

"Foram os homens basicamente que escreveram sobre o cangaço e, quando o fizeram, foi olhando muito para os personagens masculinos, que eram aqueles tidos como os mais importantes", diz Adriana em entrevista exclusiva à equipe do Aventuras na História.

Trabalho imersivo

A autora mergulhou em documentos raros, edições antigas de jornais, relatos de memorialistas, acervos particulares e depoimentos colhidos ao longo das décadas.

Uma das vozes mais presentes na narrativa é a de Dadá — nome de batismo: Sérgia Ribeiro da Silva —, a única cangaceira que, depois do fim do bando, sobreviveu para contar, em entrevistas e depoimentos, como era realmente a vida das mulheres no cangaço.

Mas nem todas tiveram a escolha que Maria Bonita teve. Muitas das cangaceiras foram raptadas e estupradas ainda adolescentes. Foi o que aconteceu com a própria Dadá, levada aos 14 anos por Corisco — um dos homens de confiança de Lampião — e violentada repetidamente.

A romantização posterior dessas histórias escamoteia o terror: "As fontes da época eram majoritariamente policiais e a imprensa reproduzia esses relatos oficiais, muitas vezes distorcendo ou apagando completamente a experiência das mulheres. Elas passaram a ser vistas como tão criminosas quanto seus algozes", observa Adriana, desta vez ao ao portal Uai E+.

Ísis Valverde e Júlio Andrade como Lampião e Maria Bonita em 'Maria e o Cangaço' - Divulgação

O livro revela ainda o paradoxo cruel vivido pelas cangaceiras. Mesmo sem permissão para participar das batalhas — essa era uma tarefa exclusivamente masculina —, elas eram submetidas a um código rígido e implacável.

Sexo compulsório, punições violentas por traição, e uma rotina de fuga, medo e escassez eram parte do cotidiano. A gravidez, longe de representar um futuro, era uma sentença: as crianças eram abandonadas com famílias de coiteiros, e muitas morriam no parto, realizado sem qualquer assistência.

A narrativa costurada por Adriana se recusa a cair no maniqueísmo. Em vez disso, apresenta as mulheres do cangaço como figuras ambíguas: simultaneamente vítimas e agentes.

Ao contextualizar os acontecimentos com os marcos históricos da década de 1930, a autora constrói um retrato multifacetado da condição feminina num dos capítulos mais duros da história brasileira.

O livro nasceu de uma inquietação política e feminista. Comecei a me entender como feminista enquanto pesquisava essas mulheres. E entendi que não podia escrever essa história sem trazer a perspectiva delas. Era preciso romper com a tradição de narrativas centradas nos homens", afirma Adriana ao Uai E+.

Aos 43 anos, nascida em Mossoró (RN) e criada em Fortaleza (CE), a autora cresceu ouvindo histórias do cangaço — algumas contadas com orgulho regional, outras com medo ou fantasia.

Ao mergulhar nesse universo, ela não só resgata a voz de Maria Bonita, mas também denuncia o apagamento histórico de tantas outras mulheres que, silenciadas ou esquecidas, viveram entre a paixão, a violência e a rebeldia.

Maria Bonita emerge, enfim, não apenas como musa do cangaço, mas como símbolo da mulher que ousou quebrar as amarras de sua época. E que, ao fazê-lo, tornou-se mito. Um mito que agora, pelas mãos de Adriana Negreiros, ganha carne, contradição e verdade.