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Matérias / Personagem

Tarrare: O glutão francês que comia de tudo e não ficava satisfeito

No século 18, Tarrare chamou grande atenção por seus hábitos alimentares excessivos e incomuns, que incluíam até carne humana e animais vivos

Éric Moreira
por Éric Moreira

Publicado em 12/04/2025, às 13h00

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Pintura 'Der Völler', de Georg Emanuel Opitz - Domínio Público
Pintura 'Der Völler', de Georg Emanuel Opitz - Domínio Público

Era fim do século 18, quando um membro do Exército Revolucionário Francês ficou especialmente famoso por seu apetite desumano. Tarrare — como era conhecido — nasceu por volta de 1772, mas enquanto soldado precisou de tratamento especial: suas rações já eram quatro vezes a quantidade dos demais homens, e ainda assim ele vasculhava pilhas de lixo em busca de qualquer migalha que tenham jogado fora.

O mais curioso sobre seu caso é que ele estava sempre faminto. Quando jovem, pesava somente cerca de 45 quilos, e apresentava todos os sinais possíveis de desnutrição — o que intrigava qualquer um, visto que ele certamente comia muito mais que qualquer um. Conheça mais sobre a história de Tarrare, o insaciável glutão francês:

Apetite infinito

O apetite inusitado de Tarrare o acompanhou por toda a sua vida, como uma maldição desde a infância. Tanto que, quando adolescente, seus pais o expulsaram de casa, visto que eram incapazes de sustentar o necessário para alimentá-lo.

Então, ele seguiu seu próprio caminho, primeiro como artista itinerante. Ele se juntou a um grupo de prostitutas e ladrões que viajavam pela França, realizando encenações públicas e roubando o público. E ele certamente era uma atração chamativa: era um homem que conseguia comer qualquer coisa.

Com um maxilar enorme e deformado, dizem que ele era capaz de despejar uma cesta inteira de maçãs na boca, e ainda engolia rolhas, pedras, e até animais vivos inteiros. Há relatos de que ele já agarrou um gato vivo com os dentes, eviscerou-o, sugou seu sangue e o comeu, até que restassem apenas ossos. Segundo o All That's Interesting, ele também comia cães da mesma forma, e em uma ocasião ele até engoliu uma enguia viva inteira sem mastigar.

Os relatos também descrevem que, por onde passava, Tarrare chamava grande atenção — e também era sempre notado, muito devido ao fedor horrível que exalava —, e até "cães e gatos fugiram aterrorizados ao seu aparecimento, como se tivessem antecipado o tipo de destino que ele estava preparando para eles", segundo anotações do Barão Percy, figura que o acompanhou por algum tempo.

Gravura representando a gula, dos Sete Pecados Capitais, de James Ensor / Crédito: Domínio Público

Fedor

Embora o que fizesse para se alimentar fosse absurdo, médicos da época ficaram perplexos com Tarrare, visto que ele ainda parecia são. Parecia apenas um jovem com um estranho apetite insaciável.

Porém, com o passar dos anos, seu corpo inevitavelmente começou a transformar, e ele foi ganhando cada vez mais peso. Sua pele esticou a níveis impressionantes e, quando comia, diziam que ele inflava como um balão, em especial na região do estômago. Logo em seguida, ia ao banheiro, expelia tudo, e deixava para trás uma sujeita que cirurgiões descreveram como "extremamente fétida".

Por sua vez, quando seu estômago estava vazio, sua pele ficava flácida e caída, esticando como um elástico — e isso era o que permitia que ele enfiasse grandes quantidades de comida em suas bochechas enormes.

E esse consumo exagerado de comida também criava um cheiro horrível ao seu redor. "Ele frequentemente feria tanto que era impossível suportá-lo a uma distância de vinte passos", descreveram médicos da época em seus registros.

Também era descrito que ele estava sempre com o corpo quente, pingando suor e fedendo a água de esgoto. Relatos — possivelmente mais exagerados — diziam inclusive que subia dele um vapor pútrido quase visível, como em personagens de desenhos animados.

Missão secreta fracassada

Quando os médicos mencionados encontraram Tarrare, ele havia recém desistido de sua vida como artista de espetáculo, e buscou entrar para o Exército Revolucionário, para lutar pela liberdade da França.

Sua situação certamente chamou muita atenção. Tanto que ele foi retirado da linha de frente e enviado à sala de um cirurgião, onde conheceu o Barão Percy e o Dr. Courville, que fizeram vários testes tentando compreendê-lo.

Porém, o general Alexandre de Beauharnais viu em Tarrare uma oportunidade. Enquanto a França estava em guerra com a Prússia, ele convenceu-se de que o glutão poderia ser um mensageiro perfeito para transmitir informações secretas.

Alexandre de Beauharnais / Crédito: Domínio Público

Então o general o submeteu a um experimento: colocou um documento dentro de uma caixa de madeira, e pediu que Tarrare a engolisse. Algum tempo depois, pediu a um soldado que limpasse o banheiro após Tarrare fazer suas necessidades, para retirar a caixa e ver se o documento ainda podia ser lido — e, surpreendentemente, isso deu certo.

Foi então que Tarrare recebeu sua primeira missão: ele deveria se disfarçar como um camponês prussiano, passar furtivamente pelas linhas inimigas e entregar a um coronel francês capturado uma mensagem ultrassecreta, escondida dentro de uma caixa, guardada onde seus inimigos jamais poderiam prever: seu estômago.

No entanto, o glutão não conseguiu ir muito longe. Sua aparência certamente não passou despercebida pelos prussianos, e quando foi abordado por soldados, descobriram que ele não falava alemão; e seu disfarce foi derrubado.

Identificado como um espião francês, ele foi despido, revistado, chicoteado e torturado, até que cedeu e revelou que carregava uma mensagem secreta em seu estômago. Então acorrentaram-no a uma latrina e esperaram por horas, até que o intestino do glutão fizesse seu trabalho.

Porém, quando finalmente aconteceu, e o general prussiano encontrou a pequena caixa, ele descobriu que o bilhete ainda era apenas um teste: ele pedia ao seu destinatário que os informasse se Tarrare havia entregue a mensagem com sucesso. Em outras palavras, na prática, o general de Beauharnais ainda não confiava o suficiente em Tarrare ao ponto de enviá-lo com qualquer informação real.

Furioso, o general prussiano ordenou que seus soldados enforcassemTarrare, mas ele acabou se acalmando, inclusive sentindo pena do francês que soluçava abertamente em sua forca. Ele então mudou de ideia e permitiu que Tarrare retornasse às linhas francesas, alertando-o com uma última surra para nunca mais fazer uma façanha como aquela novamente.

'A Batalha de Valmy', travada entre a França e a Prússia em 1792, de Horace Vernet / Crédito: Domínio Público

Carne humana?

Quando retornou à França, já em segurança, Tarrare implorou para que o exército nunca mais o obrigasse a entregar outra mensagem secreta, e pediu ao Barão Percy que fizesse qualquer coisa para torná-lo igual aos outros.

O barão fez o que pôde, ao lado do dr. Courville: deu ao homem vinagre, pílulas de tabaco, láudano e quase todos os remédios conhecidos da época, mas nada conseguia mudar Tarrare. Pelo contrário, ele seguia mais faminto que nunca, e não se sentia saciado.

Desesperado, o glutão começou a buscar refeições nos lugares mais inapropriados possíveis. Certa vez, inclusive, ele foi flagrado bebendo o sangue que fora removido de pacientes do hospital, e até mesmo comendo corpos no necrotério.

Porém, depois que um bebê de apenas 14 meses desapareceu, começou a se espalhar rumores de que Tarrare estava por trás do caso. E isso enfureceu o Barão Percy, que expulsou Tarrare da cidade, e o forçou a se virar sozinho.

'Saturno devorando seu filho', de Giambattista Tiepolo / Crédito: Domínio Público

Autópsia

Somente quatro anos depois, o Barão Percy recebeu novas notícias sobre Tarrare: ele apareceu em um hospital em Versalhes, com tuberculose — uma sentença de morte na época. Então, Percy decidiu que o visitaria, para aproveitar a última oportunidade que teria de ver aquela anomalia médica. E naquele ano, 1798, Tarrare morreu.

Mas os horrores do glutão seguiam chocando: se o fedor que ele tinha quando vivo já incomodava, aquilo sequer comparava com quando ele morreu. Os médicos que o acompanhavam, e realizaram uma autópsia, lutaram para conseguir respirar enquanto o abriam.

"As entranhas estavam putrefatas, misturadas e imersas em pus; o fígado era excessivamente grande, sem consistência e em estado de putrefação; a vesícula biliar era de tamanho considerável; o estômago, em estado flácido e com manchas ulceradas espalhadas ao redor, cobria quase toda a região abdominal", descreveu a autópsia.

E tudo dentro de Tarrare surpreendia: seu estômago era tão grande que quase ocupava toda a sua cavidade abdominal; seu esôfago, era anormalmente largo; sua mandíbula era tão flexível, que até um cilindro de 30 centímetros de circunferência poderia ser introduzido, sem sequer tocar o palato.

A autópsia não foi sequer finalizada, visto que o fedor insuportável fez até o Barão Percy e os médicos desistirem. Porém, eles ainda aprenderam algo: a condição misteriosa de Tarrare certamente não estava em sua mente, e o que ele fazia realmente começava com uma necessidade biológica genuína de comer — maldição esta que definiu todos os rumos de sua vida.