Livro de 1405 faz da escritora Christine de Pizan a primeira ativista conhecida na história dedicada às causas em defesa das mulheres por meio da literatura
A Idade Média não foi marcada apenas pelas trevas. Em meio à escuridão científica, cultural e social geralmente associada à era medieval na Europa, importantes pontos de luz lutaram contra esse apagão humanístico e foram precursores de movimentos que perduram até hoje, como o feminismo e os direitos das mulheres na sociedade.
Um desses pontos iluminados é a robusta obra da escritora franco-italiana Christine de Pizan que, no período compreendido entre o final do século 14 e começo do 15, foi a responsável por levantar e discutir questões muito atuais, como a violência sexual contra as mulheres, o combate à misoginia praticada pelos homens e a igualdade de gênero masculino e feminino.
Nascida em 1364, na italiana Veneza, Christine mudou-se ainda na infância para Paris, na França. Seu pai, o bolonhês Tomazzo di Benvenutto da Pizzano, era um avançado homem de ciências para sua época e tornou-se físico e médico, trabalhando como secretário e astrólogo, além de médico na corte do rei Carlos V, o Sábio.
A vivência familiar em um meio esclarecido do ponto de vista intelectual e rodeado de conhecimento por todos os lados certamente pesou muito na formação da pequena, já que naquele tempo o simples fato de uma mulher saber ler e escrever já era um feito de enormes proporções.
Quando a filha completou 15 anos, Tomazzo di Benvenutto escolheu para esposo dela o jovem Étienne du Castel, estudante de família nobre e secretário do rei. Apesar do costume dos casamentos arranjados entre praticamente dois adolescentes, foi uma união feliz, embora curta, como declarou a própria Christine em diversas ocasiões. Um marido que, segundo a esposa, “era uma pessoa bondosa, leal, doce e amorosa”.
O destino, porém, pregou-lhe uma peça com a morte precoce de Étienne, em 1389, vítima de uma epidemia quando cumpria uma missão longe de Paris. Viúva com apenas 25 anos e três filhos para criar, além da mãe idosa e de uma sobrinha, Christine recusou o caminho tradicional que a levaria a um segundo casamento e passou a escrever e vender seus escritos para garantir o sustento da família — algo já bastante revolucionário na época.
Para dar vazão ao negócio editorial, montou um pequeno ateliê na capital francesa, com um grupo de copistas e encadernadores, sob sua supervisão. Cuidando pessoalmente da produção com dedicação e capricho, a escritora exerceu um papel importante na elaboração e distribuição de livros manuscritos, que circulavam na corte francesa e outras casas imperiais europeias.
Seus primeiros escritos eram poesias trovadorescas editadas e distribuídas no próprio ateliê mantido por Christine em Paris. Com o tempo, a autora, historiadora, filósofa e editora começou a tecer reflexões mais profundas sobre filosofia, política, moral, costumes e o papel das mulheres à época. Trata-se de um trabalho que a tornou precursora do feminismo e a primeira ativista conhecida na História dedicada às causas em defesa das mulheres, por meio da literatura.
Com boa circulação na sociedade parisiense, a escritora ganhou notoriedade em 1401, ao iniciar uma polêmica em torno de um poema muito difundido na época, Roman de la Rose, de Jean de Meung.
Na ocasião, Christine acusou o autor de misoginia e de perpetuar estereótipos negativos contra as mulheres em uma disputa que ficou conhecida como “Querelle du Roman de la Rose” (querelle, em francês, é “briga”). Nesse caso, uma batalha intelectual.
Entre as obras de Christine, a principal, com título traduzido para A Cidade das Mulheres, foi relançada no Brasil recentemente pela editora 34. Oriundo de 1405, o livro pode ser considerado o primeiro tratado em defesa da causa feminista, tendo em vista sua produção feita muito antes de os movimentos sufragistas europeus darem corpo às primeiras causas feministas, nos séculos 18 e 19.
Em um mundo atormentado pelas pestes e onde as mulheres não exerciam qualquer papel diferente da servidão aos pais, maridos e filhos, ou ficavam trancafiadas em algum convento, Christine desafiou o sistema e trouxe luz à importância da presença feminina na sociedade.
Embora fosse uma mulher cristã privilegiada por sua classe e pelos estudos que pôde fazer em casa, percebeu como poucas as injustiças das quais as mulheres eram vítimas. E a tal ponto percebeu que essa questão se tornou para ela uma questão teológica”, afirma Ivone Gebara, em texto de apresentação da obra.
Em uma linguagem simples, quando comparada ao estilo mais rebuscado das escrituras medievais, a publicação faz um contraponto ao domínio masculino e descreve uma cidade utópica construída, administrada e habitada exclusivamente pelas mulheres.
Logo na abertura, Christine de Pizan indaga a Deus como podem os homens rebaixarem e desprezarem tanto as mulheres, já que elas também foram criadas à Sua semelhança e sabedoria? “Não consigo compreender tamanha aberração”, registra.
Escrito em primeira pessoa, a concepção da cidade das mulheres se dá a partir de visões da protagonista com três divindades que surgem, para ela, à semelhança dos anjos bíblicos, com a diferença de que, neste caso, são três damas divinas: Razão, Retidão e Justiça.
Por meio dos diálogos, são levantadas questões sobre o papel das mulheres na sociedade, seus direitos políticos e sociais e a submissão imposta pelos homens. Uma delas é a exclusão do poder feminino no sistema judiciário. Christine não entende o porquê de as mulheres serem impedidas de exercer um papel de protagonismo nas decisões judiciais.
“Os homens afirmam que a culpa é do mau governo de uma mulher perante a corte de Justiça. Contudo, se com tal premissa se queira pretender que as mulheres não são bastante inteligentes para estudar direito, a experiência demonstra o contrário”, diz trecho. “A História gerara muitas mulheres que foram grandes filósofas, suscetíveis de reger disciplinas muito mais complexas, requintadas e altivas que o direito escrito e os regulamentos estabelecidos pelos homens”, completa.
Depositários da palavra escrita em livros e textos, os homens, na visão de Christine, ocultaram e reprimiram a trajetória das mulheres ao longo da História, dando sempre a impressão de que elas “não são boas para nada além de afagar os homens, trazer filhos ao mundo e criá-los”.
Na cidade utópica, a palavra e as ações estavam, pela primeira vez, com as mulheres e Christine pretendia silenciar o partido da misoginia: “Que se calem, daqui por diante, esses clérigos que difamam as mulheres”, diz a autora, que procurou fazer um trabalho didático contra o domínio cultural machista imposto pelos homens ao longo do tempo, por meio de palavras e ações.
Em pleno século 15, as mulheres eram conclamadas a refletir, reivindicar e ocupar o papel que lhes pertence na sociedade, algo que, 500 anos mais tarde, seria resumido pela escritora, filósofa e ativista francesa Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.
Christine destaca a questão da educação escolar como fator de desigualdade entre homens e mulheres: “Se fosse costume enviar as meninas à escola e lhes ensinar metodicamente as ciências, como se faz com os meninos, elas aprenderiam e compreenderiam as dificuldades de todas as artes e ciências tão bem quanto eles”.
Em um dos pontos mais fortes da obra medieval, assustadoramente atual, a autora toca na questão do abuso sexual sofrido pelas mulheres. Christine se diz “desolada e indignada ao ouvir homens repetirem que as mulheres desejam ser estupradas e que não lhes desagrada nem um pouco serem forçadas, ainda que protestem em voz alta. Não posso acreditar que sintam prazer com algo tão abominável”.
Outras questões levantadas no texto são a revolta de Christine contra o sistema de dotes, casamentos entre meninas e homens muito mais velhos e a luta por desejo e prazer feminino — que, em sua visão, era um direito.
No último capítulo, Christine de Pizan dirige-se diretamente às mulheres. Aqui, pode parecer contraditório o fato de a autora defender o casamento — mesmo o seu, apesar de curto, era confessadamente feliz — e desestimular qualquer sublevação das esposas em relação aos seus esposos, independentemente de serem bons ou maus maridos.
A compensação por suportar um companheiro ruim ou até mesmo perverso, nas palavras de Christine, virá com a redenção da alma. De acordo com os estudiosos, é compreensível a posição da autora, dado o contexto da época em que vivia.
Ela sabe que a única escolha é entre um marido, o convento ou a rua, e sua própria vida lhe mostrou que a dependência, assim como a independência, pode acarretar muitos problemas”, explica a introdução da edição brasileira.
Para entender o que seria uma aparente contradição, basta comparar o mundo medieval com a situação de mulheres que vivem atualmente em estados teocráticos.
Christine viveu seus últimos anos em um convento nos arredores de Paris, onde continuou a produzir e divulgar seus escritos em defesa de ideias feministas, o que torna sua história símbolo de resistência das mulheres durante a Idade Média.
Em 1430, ela publicou o poema Ditié de Jeanne d´Arc, em homenagem à guerreira Joana d'Arc. Christine morreu no ano seguinte, em 1431, o mesmo em que a heroína francesa, com participação ativa na Guerra dos Cem Anos, foi condenada e morta na fogueira por heresia.