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Matérias / Escravidão

Passado e presente: Os reflexos da escravidão nos dias atuais

Para aproximar a história do Brasil da nova geração, Laurentino Gomes inicia obra ilustrada pelo tempo atual, mostrando os ecos do escravagismo

Marcus Lopes Publicado em 16/03/2025, às 20h00

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Pintura registra o interior de um navio negreiro - Domínio Público via Wikimedia Commons
Pintura registra o interior de um navio negreiro - Domínio Público via Wikimedia Commons

Nas primeiras horas do dia 8 de agosto de 1444, os moradores de Lagos, vilarejo localizado na região do Algarve, ao sul de Portugal, despertaram com uma cena inédita na pequena localidade lusitana.

Meia dúzia de caravelas aportou no cais da cidade. Dos porões das embarcações, saiu uma carga jamais vista ou ao menos imaginada naquela região: 235 homens, mulheres e crianças, todos negros, em fila, atados ou acorrentados, uns aos outros. Eles haviam sido capturados na costa da África e logo seriam vendidos na praça pública, em leilão, como escravizados.

O episódio ocorrido em Lagos deu início a um dos episódios mais tristes da História do Brasil e da humanidade: a escravidão e o tráfico de negros africanos praticados pelos portugueses.

Durante mais de quatro séculos, o comércio de gente não apenas foi praticado, como era incentivado pelos governantes de diversos países em diversos continentes, movimentando economias inteiras e atendendo a interesses de empresários, pessoas da alta sociedade e até da Igreja Católica.

Os portugueses e brasileiros foram os maiores traficantes de escravizados africanos, seguidos pelos ingleses, que só mudaram de postura, a partir do século 18, por pressão da opinião pública.

Família brasileira do século XIX sendo servida por escravizados, pintado por Jean-Baptiste Debret - Domínio Público

Em 1660, foi criada em Londres a empresa conhecida por Royal African Company (RAC). Era uma companhia privada, com autorização da Coroa, que detinha o monopólio do tráfico de pessoas escravizadas por mil anos — ou seja, até 2660. Entre os acionistas da RAC estava o próprio rei Charles II, antepassado do atual rei Charles III.

Até o final do século 19, a escravidão era o maior negócio do planeta. Quase todos os homens de negócios do mundo se envolveram, participaram ou lucraram com o tráfico negreiro, incluindo reis e chefes africanos, que forneciam cativos para seus parceiros europeus”, diz o escritor e jornalista Laurentino Gomes.

Em determinados momentos, o lucrativo comércio de pessoas atendeu a diretrizes de Estado e financiou episódios marcantes, como as grandes navegações ibéricas rumo à América.

“O comércio de pessoas escravizadas seria crucial para financiar as também chamadas viagens de descobrimentos, que incluíram a chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500”, explica Laurentino, autor da premiada trilogia Escravidão (Globo Livros), que conta em detalhes, em mais de mil páginas distribuídas por três volumes, como foi o escravismo no Brasil e as consequências negativas para o país que persistem até hoje, como o racismo estrutural e a dificuldade dos negros em ocuparem lugar de destaque na sociedade.

Versão jovem

Após o sucesso da empreitada, com o primeiro volume lançado em 2019, o autor aproveitou para lançar uma única edição juvenil e ilustrada de Escravidão. Em uma linguagem fácil e acessível, marca registrada do autor de best-sellers como 1808, 1822 e 1889, que também abordam episódios marcantes da História do Brasil, a versão condensada percorre desde o primeiro leilão de africanos em Portugal, em 1444, até a assinatura da Lei Áurea de libertação definitiva dos escravizados, assinada pela princesa Isabel, em 1888.

Nesse período, mais de 12,5 milhões de negros escravizados foram embarcados para as Américas, dos quais cerca de 40% — em torno de 5 milhões — desembarcaram no Brasil, último país a abolir o cativeiro humano.

Para efeitos de comparação, é mais do que a soma das populações das cidades de Salvador (BA) e Belo Horizonte (MG), de acordo com o Censo 2022 do IBGE. Em alguns países africanos, mais de 80% da população foi capturada pelo tráfico negreiro, o que, em parte, explica o precário desenvolvimento econômico e social que se consolidaria nos séculos seguintes.

Durante a travessia do Oceano Atlântico, muitos aprisionados morriam — estimativas apontam a morte de mais de 20% do total dos embarcados — e os corpos eram simplesmente atirados no mar. O índice de mortalidade nos navios negreiros, também chamados de tumbeiros, era tão alto que as embarcações eram acompanhadas o tempo todo por cardumes de tubarões que se alimentavam dos corpos.

Retratação do Mercado de Escravos do Rio de Janeiro - Arquivo Nacional do Brasil / Domínio Público

Aqueles que não resistiam à viagem, por causa de doenças ou maus-tratos, eram considerados “perda de carga” e havia até apólices de seguros oferecidas por companhias para compensar os traficantes.

Após o desembarque, os escravizados eram comercializados e submetidos a todos os tipos de humilhações, trabalhos forçados e viviam muito pouco, em consequência das condições degradantes de vida. Eram comprados e vendidos como animais domésticos e nunca receberam qualquer tipo de compensação, ajuda ou auxílio antes ou após a Lei Áurea.

Segundo o autor do livro, o objetivo da nova edição, que também é uma boa opção para quem, independentemente da idade, pretende se dedicar a uma leitura mais ágil em relação ao tema, é esclarecer aos mais jovens que o escravismo no Brasil não foi mais brando do que em outros lugares e afastar a crença de que o país preza por uma “democracia racial”, em que todas as raças convivem de maneira igual e pacífica.

Mais ainda: afastar a versão de que a escravidão teria sido promovida pelos próprios africanos em disputas tribais e que os europeus não teriam culpa alguma.

Essa é a versão que convém a quem descende de escravizadores ou não se preocupa com a herança perversa do escravismo entre nós”, explica Gomes.

“Oficialmente, o Brasil aboliu o cativeiro com a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, mas seu legado está presente em diferentes formas da nossa sociedade, como na desigualdade, na pobreza, na falta de oportunidades e na violência que atingem a população negra e parda”, completa o autor, que também aborda nos capítulos a escravização e o extermínio dos indígenas.

A opinião é compartilhada com o escritor e roteirista Luiz Antonio Aguiar, responsável pela adaptação do conteúdo original aos leitores mais jovens. “Creio que a decisão de colocar essa releitura da História do Brasil acessível aos jovens é fundamental para que eles, assim como todos nós, possam refletir sobre a enormidade da tarefa de remover de nossa sociedade, em todos os níveis, as sequelas da escravidão, e possamos agir efetivamente nesse sentido”, diz Aguiar.

O eco do escravagismo

O trabalho de adaptação da obra foi feito em consonância com o autor. “Minha primeira preocupação foi iniciar pelo presente, por aquilo que é mais próximo do jovem. Ou seja, mostrar o escravagismo como algo que ainda ecoa e age à nossa volta”, diz Aguiar. Não à toa, o livro começa relembrando dois episódios que envolvem discussões raciais.

O primeiro ocorreu em 25 de maio de 2020, em Minneapolis, nos Estados Unidos, quando George Floyd, um homem negro, foi estrangulado até a morte por um policial branco que o imobilizava no chão.

A cena da morte de Floyd viralizou na internet e desencadeou uma série de protestos no mundo inteiro, dando força ao movimento “Vidas Negras Importam”, contra a violência da polícia norte-americana em relação aos negros.

Mural em homenagem a George Floyd nos Estados Unidos - Getty Images

O segundo episódio citado ocorreu no Brasil, em 6 de maio de 2021, na Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. A favela foi palco da ação policial mais letal já realizada no estado do Rio, resultando na morte de 28 pessoas. Parte das vítimas era de moradores sem antecedentes criminais, algumas executadas de forma sumária após se entregarem à polícia, sendo a maioria negra, entre homens e mulheres.

Outro alerta importante citado no livro é fornecido pela Anti-Slavery International, a mais antiga entidade de defesa dos direitos humanos, sucessora da British Anti-Slavery Society, fundada em 1823, para combater o tráfico negreiro.

Dados da organização mostram que existem hoje, em pleno século 21, mais pessoas escravizadas do que em qualquer período dos séculos de escravidão africana nas Américas.

“Seriam mais de 40 milhões de pessoas vivendo e trabalhando em condições análogas à escravidão, mais do que o triplo do total que foi traficado até meados do século 19.”