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Matérias / Hospital Colônia de Barbacena

Hospital Colônia de Barbacena: Do tratamento desumano ao silenciamento na ditadura

Em entrevista, Daniela Arbex, autora de 'Holocausto Brasileiro', relembra denúncias e tratamento subumano aos pacientes do Hospital Colônia de Barbacena

Paciente da Colônia de Barbacena - Divulgação / Luiz Alfredo / Revista O Cruzeiro
Paciente da Colônia de Barbacena - Divulgação / Luiz Alfredo / Revista O Cruzeiro

Situado numa região com clima de montanha, o Hospital Colônia de Barbacena foi fundado em 12 de outubro de 1903, como parte de um grupo de sete instituições psiquiátricas edificadas na cidade mineira de Barbacena. 

Antes de se tornar um antro de barbárie e desumanidade, o espaço, construído em terras da Fazenda da Caveira — propriedade de Joaquim Silvério dos Reis, segundo recorda o Centro Cultural do Ministério da Saúde —, serviu como um hospital para tuberculosos. A crença da época apontava que o clima das montanhas ajudava no tratamento da enfermidade.

Logo depois, o local passou a servir como sanatório para ricos, com telefone e talheres de prata, recorda o El País. Só então, no início do século 20, que virou o primeiro manicômio de Minas Gerais. 

Inicialmente, o Colônia tinha capacidade para cerca de 200 leitos, mas o centro operava muito acima de sua capacidade normal. Na década de 1950, por exemplo, o Hospital de Barbacena contava com, em média, 5 mil pacientes por internação. 

O Colônia, além disso, não dispunha de médicos ou enfermeiras, apenas guardas que vigiavam os 'pacientes'. O tratamento era tão simplista quanto, com os internos recebendo apenas comprimidos em função dos seus sintomas. Mas logo começaram os tratamentos com eletrochoque e lobotomia, tudo seguindo o que acreditava a medicina da época. 

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As condições também eram desumanas, com camas retiradas dos leitos para abrigarem um número cada vez maior de 'pacientes' — que se viam obrigados a dormirem amontoados no chão para se protegerem do frio da noite. Muitos, inclusive, morriam por conta das baixas temperaturas ou sufocados. 

Hospital Colônia de Barbacena - Divulgação / Luiz Alfredo / Revista O Cruzeiro
O modus operandi [do tratamento dos internos de Barbacena] era muito semelhante com o que acontecia nos campos de concentração nazista", explica a jornalista Daniela Arbex, autora do livro 'Holocausto Brasileiro', em entrevista exclusiva à equipe do Aventuras. 

"Os candidatos a serem mandados para o Colônia, que era também um local de 'limpeza da sociedade', que atendia uma cultura higienista de limpeza social, eram encaminhados para lá de trem, da mesma maneira que os judeus eram encaminhados para os campos de concentração nazistas: em vagões de carga", explica Arbex

Daniela também conta que quando os pacientes chegavam no Hospital de Barbacena, eles eram uniformizados, tinham suas cabeças raspadas e eram rebatizados. "Eles não recebiam um número, mas perdiam o seu nome. Os internos tinham sua dignidade confiscada". 

Denúncias silenciadas

Em 1961, o jornalista carioca Luiz Alfredo se mudou para Belo Horizonte para trabalhar na revista O Cruzeiro. Naquele mesmo ano, em abril, registrou a dura realidade do Hospital Colônia de Barbacena em reportagem denominada 'A sucursal do inferno'. Luiz fez 196 registros fotográficos da situação subumana vivida pelos internos. 

Um dos pacientes do Colônia - Divulgação/Luiz Alfredo/O Cruzeiro

"Na época, foi um imenso escândalo", aponta Daniela Arbex. "A revista O Cruzeiro tinha um alcance enorme e foi muito impactante. Até se discutiu a criação de uma CPI". 

Apesar do espanto, o grande escândalo do Colônia logo caiu no esquecimento. Arbex aponta que um fator ajudou nesse silenciamento: o golpe militar de 1964, que depôs o presidente João Goulart

As denúncias foram de 1961 e em 1964, com a ditadura, o hospital ficou blindado até 1979. Ninguém entrou no hospital até 1979 — 15 anos em que o hospital ficou em completo esquecimento", recorda. 

Em 1979, o assunto reacendeu. Em reportagem intitulada 'Nos porões da loucura', o jornalista Hiram Firmino denunciou a condição dos hospícios de Minas Gerais. No mesmo ano, o cineasta Helvécio Ratton fez um filme chamado 'Em Nome da Razão'. "É o único registro que tem imagens em vídeo do funcionamento do Colônia", pontua Daniela

"Essas denúncias do final da década de 1970 foram muito importantes para iniciar a reforma psiquiátrica no Brasil. Um movimento que começa em Minas Gerais e que mais tarde vai alcançar outros estados brasileiros. Foi um trabalho em conjunto com a imprensa da época, com as denúncias que começavam a surgir dos trabalhadores de saúde mental, com a ajuda do Helvécio Ratton… Foi um movimento coletivo naquele momento", prossegue.

Ainda em 1979, o psiquiatra Franco Basaglia, promotor da reforma dos manicômios na Itália, visitou o Colônia e se espantou com o que viu: "Hoje estive em um campo de concentração nazista. Em nenhum lugar vi algo assim", declarou, recorda o El País.

Omissão coletiva 

Estima-se que cerca de 60 mil pacientes morreram no Hospital Colônia de Barbacena — dentre os quais 1.853 tiveram seus corpos vendidos para faculdades de medicina, explica o portal da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. 

Outro dado alarmante é que se acredita que 70% dos pacientes do Colônia não possuíam quaisquer diagnósticos de transtornos psicológicos. Muitos pacientes eram alcoólatras, sifilíticos, epiléticos, prostitutas, homossexuais, mães solteiras ou qualquer outro grupo de pessoas que não se adequavam ao padrão normativo da época. 

Internas do Colônia de Barbacena - Divulgação/Luiz Alfredo/O Cruzeiro

"Nenhuma omissão, nenhuma situação de violação de direito, ela perdura por tantas décadas se não existir uma conivência ou omissão coletiva, tanto das famílias, quanto dos funcionários, médicos… Muitas pessoas viam e fingiam que não viram", aponta Daniela Arbex sobre o motivo das barbáries no Colônia terem perdurado por tantos anos. 

O Hospital de Barbacena funcionou por cerca de nove décadas, até seu fechamento nos anos 1990. No entanto, a jornalista salienta que, ainda assim, existem diversas situações, como o caso de famílias que realmente enviavam seus parentes ao Colônia acreditando se tratar de um local de tratamento. 

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"Por serem muito pobres ou terem pouca instrução, algumas famílias perderam o contato com seus parentes", diz, recordando o caso de um paciente, chamado Luis. "Sua mãe morreu arrumando sua cama, pensando que ele fosse voltar". 

Luis foi enviado para Barbacena por ser tímido e sua mãe recebeu a falsa promessa de que o local poderia tratar o 'problema' do filho. "Ela era uma lavadeira, sem instrução formal. E ela perdeu o contato com esse filho". 

Mas tem famílias que despachavam as pessoas para lá e não voltavam mais. Então, quando você entrega alguém para algum lugar e não volta mais, você está sendo conivente com o destino dessa pessoa. E isso também aconteceu", contrapõe. 

As perseguições

Daniela Arbex aponta que no final da década de 1970, vieram a tona as denúncias de grupos de médicos e psiquiatras sobre as barbáries no Colônia. "Eu acho que até aquele momento, exatamente por essa cultura higienista, essa banalização do mal é muito comum". 

"Essas pessoas, ao serem desumanizadas, quem convivia naquele ambiente, a única maneira de conviver com aquilo era desumanizando aquelas pessoas. Porque você tolerava", explica. 

Muito dessa situação, contextualiza Arbex, é explicada pela história da saúde mental no Brasil. "Até década de 1950 não existiam psicofármacos no Brasil. A forma de tratar, existia uma dificuldade como tratar isso, era muito mais tentativa e erro, cirurgia de lobotomia que apareceu e é super condenada hoje, mas que naquele momento apareceu e era visto como algo super positivo. Em que você operava uma pessoa e ela ficava vegetando. Para curar a loucura, ela deixava de ser quem ela era".

Conforme recorda matéria da BBC, a leucotomia pré-frontal (mais tarde chamada de lobotomia), foi desenvolvida pelo neurologista português Egas Moniz. A técnica, mais tarde, possibilitou o surgimento da psicocirurgia. Por esse motivo, em 1949, Moniz chegou a ganhar o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina — compartilhado com o fisiologista suíço Walter Rudolf Hess

[A forma como os pacientes eram tratados] fazia parte de uma cultura da época, todo esse estado de coisas, esse abandono, essa banalização do mal", aponta Daniela
Pacientes da Colônia de Barbacena - Divulgação / Luiz Alfredo / Revista O Cruzeiro

Mas tudo passou a mudar com as denúncias no final dos anos 1970. No entanto, Arbex relembra que os profissionais que fizeram as acusações acabaram sofrendo retaliações, como o caso de Francisco Paes Barreto, que denunciou as atrocidades do Hospital Colônia de Barbacena ao Conselho Regional de Medicina (CRM). 

Ele foi perseguido pelo CRM, ele foi ameaçado de perder o seu diploma em função das denúncias que fez", recorda a jornalista.

Outra caso diz respeito ao psiquiatra Ronaldo Simões, que trabalhava no Departamento de Saúde do Estado de Minas Gerais. "Ele foi demitido porque ele fez uma denúncia pública do que viu". 

"Quem foi perseguido, na verdade, foi quem denunciou: os médicos, os profissionais da área da saúde e tudo mais. Por isso era tão difícil. Quando eles começaram a enxergar que aquilo não era normal, que aquilo era desumano e começaram a denunciar, ao invés de serem ouvidos primeiro, eles foram perseguidos", finaliza Daniela Arbex.


+ Confira abaixo a entrevista completa de Daniela Arbex, autora de Holocausto Brasileiro, à equipe do Aventuras na História!