A relação entre o passado e o presente daqueles que se veem obrigados a deixar seu país de origem
Em setembro de 2015, um menino sírio de origem curda, de 3 anos, foi encontrado morto em uma praia turca. Ele era um dos 16 passageiros de um bote que colapsou minutos após sair de Bodrum, na Turquia, em direção à ilha grega de Kos. Fugindo, Alan Kurdi e sua mãe acharam a morte não em sua cidade natal, Kobane – uma das mais devastadas pelo conflito sírio e centro da resistência ao governo Assad –, mas nas águas frias do Mar Mediterrâneo. A imagem marcou a compreensão sobre a questão do refúgio e sobre os dilemas que ela evoca.
Um primeiro elemento que chama a atenção diz respeito à nomenclatura dos fluxos de pessoas que circulam internacionalmente. Um estudo da Universidade de Sheffield mostrou que, após a morte de Kurdi, houve uma inflexão nos debates na mídia e nas redes sociais europeias. Até então, a percepção dos fluxos de estrangeiros que chegavam à Europa era interpretada sob a chave de uma “crise migratória”.
Com isso, interpelava-se essa circulação como voluntária, com motivações econômicas e laborais e, portanto, irregular. Após Kurdi, o termo “crise de refugiados” ganha tração, a situação dos deslocamentos para a Europa toma o centro das discussões sobre deslocamentos forçados e uma avalanche de mobilizações sociais altera o panorama político em torno da agenda migratória global.
Estima-se que de 1,5 a 2 milhões de pessoas chegaram à Europa entre 2014 e 2017. Só na Síria fala-se em 6 milhões forçados a abandonar o país. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, existem cerca de 60 milhões de pessoas forçosamente deslocadas. Apenas um terço delas estão protegidas internacionalmente pelo instituto do refúgio (das quais 25% são refugiadas palestinas residindo na Cisjordânia, Gaza e territórios ocupados). O restante permanece em seus países de origem por muitas razões: falta de recursos, situação familiar, medo.
Chama a atenção o fato de que apenas uma pequena parte das pessoas que deveriam receber a proteção internacional do refúgio consegue obtê-la. A origem do instituto do refúgio remonta às perseguições religiosas na França do século 17, quando protestantes fugiram do país com a revogação do Edito de Nantes por Luís XIV.
Chega ao século 20, regulamentado, no âmbito da Liga das Nações, em diversas convenções que previam a proteção a nacionalidades específicas, como os refugiados russos na década de 1930. Com o fim da Segunda Guerra, uma Europa dilacerada com mais de 40 milhões de pessoas deslocadas e a criação da Organização das Nações Unidas, o instituto do refúgio vira um dos pilares do direito internacional. O direito de sair de seu país e solicitar proteção em caso de perseguição está previsto nos artigos 13 e 14 da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Mas foi a Convenção das Nações Unidas de 1951 sobre o estatuto do refugiado que normatizou a questão como grande tema multilateral e intergovernamental.
A Convenção de 1951 estabelece que um refugiado tem que demonstrar fundado temor de perseguição em seu país, por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou pertencimento a grupo social e, em função disso, cruzar uma fronteira internacional e romper com o vínculo de proteção com seu país de origem. Originalmente, a aplicação da Convenção era restrita à Europa e a eventos anteriores a 1951 – demonstrando que fora pensada para a questão dos refugiados europeus do pós-Guerra. Essas restrições foram suprimidas pelo Protocolo de 1967, em resposta à experiência de assistência a populações deslocadas em outros continentes, dos eventos no Leste Europeu, passando por lutas anticoloniais na África e na Ásia.
A persistência do refúgio é sintomática das violências e das desigualdades constitutivas do sistema internacional moderno. De um lado, proliferam conflitos armados, financiados por interesses geopolíticos e econômicos dos mais diversos matizes. Do Congo a Cabinda, da Síria ao Iêmen, de Chiapas à Venezuela, vai se conformando a inevitabilidade de um mundo em que o deslocamento forçado passa a ser condição – e não exceção. De outro, recrudescem nacionalismos e xenofobia, produzindo um caldo ideológico, social e cultural de aversão a esses fluxos e de crescente controle e restrição.
É essa simbiose perversa entre violência armada e ódio ao estrangeiro que corrobora paradoxalmente para a persistência da demanda por proteção internacional e, ao mesmo tempo, a redução do espaço para sua aplicação. O Mediterrâneo é apenas o exemplo mais recente de uma política de controle e contenção dos fluxos que produz milhares de mortos na travessia, outros milhares em um limbo jurídico e sob esquemas precários e temporários de “proteção”, e a proliferação de campos de refugiados.
Isso leva a um segundo elemento: a política global do refúgio é profundamente desigual. 86% dos refugiados estão concentrados em países pobres e subdesenvolvidos. Alguns, como Turquia, Líbia e México, financiados por países ocidentais para exercer a função de tampões. Se a tragédia de Alan Kurdi trouxe à tona a problemática do refúgio para um público até então anestesiado, também contribuiu para acentuar a desigualdade entre fluxos e assistência.
Estima-se que os gastos per capita por refugiado na Europa são 14 vezes maiores do que no restante do mundo. Essa concentração dos recursos se evidenciou na pressão sobre as agências para reorientarem esforços para os países europeus e no crescimento das doações para organizações com atuação no continente. Os efeitos perversos reverberaram no Brasil: a maior parte das doações às organizações que aqui atuam passaram a ter como destinatários os sírios, não obstante a presença massiva de outras nacionalidades e a existência de vulnerabilidades mais expressivas e redes de apoio menos articuladas, por exemplo, entre grupos de mulheres e crianças de países africanos.
Se da tragédia em Kobrun veio esperança, pouco mudou. A política dos países centrais para com os refugiados caminha para uma política de rechaço com o recrudescimento de acordos de contenção extraterritorial e a demonização de nacionalidades com vedações legais e administrativas à possibilidade de recurso ao refúgio. Nas sociedades periféricas e nos países do Sul, como o Brasil, vemos a fragilização crescente do instituto do refúgio e do sistema de proteção a refugiados.
Milhares de pedidos pendentes, baixa eficiência e transparência decisória, inanição administrativa e ausência de política de acolhimento conformam elementos para os fazedores de tormenta transformarem, aqui como nas sociedades ditas democráticas e liberais do centro, seus ranços em xenofobia. O século 20 mostra a que isso pode levar. Um mundo de refugiados.
Por Carolina Moulin. Professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio