Analisado por diversos estudiosos da política, o conceito está presente em nossa sociedade desde Atenas até os debates atuais
Autor: Fabio Marton | Reportagem: Thiago Lincolins, Letícia Yazbek e Lucas Vasconcellos Publicado em 27/09/2019, às 10h00 - Atualizado em 13/08/2021, às 10h00
Entre os muitos termos usados em uma discussão entre adversários políticos, o que um dos mais polêmicos provavelmente é 'populista'. Com ele, vem a acusação de que o rival estaria mentindo deliberadamente, fazendo promessas que sabe ser irresponsáveis, apelando aos sentimentos primitivos do eleitorado.
Assim como ocorre com o palavrão político número 1, 'fascista', disparado à esquerda e à direita, antes de conversar sobre populismo é preciso chegar a uma definição mais exigente. O que, afinal, as pessoas querem dizer quando atribuem o mesmo termo a gente tão ideologicamente distante quanto Donald Trump e Nicolás Maduro? Ou figuras históricas como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek? Sequer existe populismo?
Existe. Mas há duas coisas muito diferentes aqui que atendem pelo mesmo nome. Uma é rifar o futuro para manter o poder no presente. Outra é rejeitar o jogo político tradicional, transformar a oposição em inimigos do povo e da pátria e adotar planos em conflito com os direitos e a forma de atuar do Estado estabelecida na Constituição — e mesmo nas leis comuns. As duas costumam andar juntas, mas não sempre.
Na literatura especializada há a diferença entre populismo econômico e político”, afirma Pedro César Dutra Correa, professor da UFRGS e autor de 'O Mito do Populismo Econômico de Vargas'.
“O político foi o primeiro que surgiu — era associado a um líder carismático, que distribuía benefícios para as massas e é associado, principalmente, ao século 20, já que houve a chegada do rádio e da TV. O populista, na fala típica, cria um partido para ele, governa com sindicatos ou até com um Congresso fechado", pontua o especialista.
“O termo populismo econômico”, continua, “veio depois: sugere o governante que adota medidas como aumento de salário mínimo, valoriza a moeda do país — o que consequentemente faz tudo ficar mais barato, as pessoas podem viajar para o exterior com mais facilidade, por exemplo. Ele gasta mais, sem se preocupar efetivamente com o depois — mas uma hora essa conta chega ou no seu governo ou nos seguintes”.
Cristóbal Rovira Kaltwasser, coautor do livro 'Populism: A Very Short Introduction' (ou Populismo: Uma Muito Breve Introdução), tem uma definição um pouco mais específica da versão política:
O populismo é uma ideologia política que não apenas afirma que a sociedade é dividida entre o povo puro e a elite corrupta mas também defende que a política é defender a soberania popular a qualquer custo. Isso significa que o populismo é, antes de mais nada, uma visão de mundo moral, na qual o povo é descrito como bom, enquanto a elite é retratada como ruim”.
Populismo também exige um populista: o grande líder que encarna a vontade do povo. Quase inevitavelmente um homem, com a capacidade de denunciar em palavras suficientemente agressivas os inimigos do povo.
Com ou sem a ajuda do Estado, um culto à personalidade existe em torno do líder. Os ataques à oposição podem ficar só no verbal ou passar a diversos abusos ilegais, entre fechar meios de comunicação, fraudar eleições, até assassinatos. As eleições continuam, mas a distinção entre uma democracia dominada por populismo e um regime autoritário pode se tornar nebulosa.
O fenômeno não é privilégio de esquerda ou direita. E, por diferentes que sejam os populistas nesses dois campos e suas propostas, eles seguem os mesmos princípios básicos.
Quando Maduro e Trump falam em povo, querem dizer a maioria. “Simplesmente declarado, o populismo é uma forma de extremo majoritarismo, que rejeita os direitos das minorias”, define Clas Mudde, coautor de 'Populism: A Very Short Introduction'.
A maioria de Maduro é a camada mais pobre da população, majoritariamente não branca (56,4% da população). A elite de Maduro são as classes média e alta, majoritariamente brancas e onde está a maioria da oposição.
Trump governa num país em que a tradicional maioria de brancos já é quase minoria — segundo a última estatística do Departamento de Censo, os brancos não latinos eram 60% em 2017. Entre os brancos, conseguiu 58% dos votos (não ganhou entre nenhuma minoria, mas fez 33% entre os latinos).
A elite de Trump é econômica, mas também cultural: a população em média mais próspera, educada, multiétnica e socialmente liberal das regiões costeiras, acusada de desprezar com arrogância o “real” americano, o do interior, cristão, conservador (e frequentemente racista).
O populismo é um fenômeno da democracia. E nasce com ela. “Na teoria política antiga (filosofia), a demagogia era considerada a degradação da democracia, de modo que demagogos (hoje, populistas) falavam o que os mais pobres queriam ouvir, para obter o seu apoio. Esse conceito era usado em Atenas e, com probabilidade, em outras cidades democráticas, para rotular os líderes carismáticos, que prometiam coisas desejadas mas impossíveis para os mais pobres”, diz o professor do Departamento de História da Unicamp, Pedro Paulo A. Funari, em entrevista à AH.
A democracia ateniense teve suas bases lançadas com as reformas de Solon (638-558 a.C.), que, em 594 a.C., abriu a Eclésia, a assembleia dos cidadãos, às classes mais baixas, diminuindo o controle absoluto da nobreza. Essas reformas foram logo revertidas.
Foi quase um século depois, em 508 a.C., que Clístenes extinguiu a estrutura tradicional dos clãs, que ditavam quem podia ascender a quais posições, fundando dez novas tribos baseadas não na origem, mas no demos, a região em que viviam. Era o começo da democracia.
Considera-se que o auge da democracia ateniense veio durante o período de Péricles (495 429 a.C.). Após ele, outro político ascendeu como força dominante: Cléon (?-422), primeiro representante notável da classe comercial e opositor de Péricles.
Altamente carismático, ele introduziu um novo estilo de discurso. De acordo com Aristóteles, que viveu um século depois, Cléon foi “o homem que, com seus ataques, corrompeu os atenienses mais do que qualquer outro. Embora outros oradores tenham se comportado com decência, Cléon foi o primeiro a gritar durante um discurso na Assembleia, usando linguagem abusiva enquanto se dirigia ao povo e levantava as saias”.
Cléon concedeu vários benefícios populares, como um aumento no valor pago pelo trabalho de júri, do qual vários pobres passaram a depender. E iniciou outra marca dos populistas: a perseguição aos adversários.
Por meio de falsas acusações, removeu todos os opositores que pudessem colocar sua posição em risco. Aristóteles, em seus escritos políticos, considerava a democracia uma forma deturpada da politia, a república. No lugar de um governo de pobres ou ricos, sugeria o de uma classe média numerosa.
Cléon inaugurou o estilo. Benjamin Moffitt, da Universidade de Uppsala, explica que outra característica dos populistas é “não ter bons modos” ou não ter o comportamento típico dos políticos.
4 de julho de 1776. Nessa data, um documento foi assinado por um grupo de revolucionários, contendo as belas palavras:
Temos estas verdades por autoevidentes: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, e que entre esses estão a Vida, a Liberdade e a busca pela Felicidade."
A declaração de Independência dos Estados Unidos foi o ápice da redescoberta de ideais democráticos que haviam ficado mais ou menos dormentes por mais de um milênio.
Havia coisas como os conclaves para eleger os papas (a partir de 1275) ou monarquias eletivas (o Sacro Império Romano-Germânico), mas eram votações entre parcelas minúsculas da população. No século 17, o poder real, antes dividido, havia evoluído para o absolutismo, fundado na ideia de que Deus apontava os monarcas.
Então uma ideia radical começou a tomar forma: a do indivíduo como soberano. A de que todos nascemos iguais, e as diferenças são uma criação da sociedade, não Deus ou o sangue, como chamavam à genética. E que, sendo assim, nascemos livres e iguais.
O liberalismo, como seria chamado, começou por Thomas Hobbes (1588-1679), que definiu a ideia de contrato social: a decisão racional dos indivíduos em estabelecer um Estado.
Que, para ele, teria a melhor forma no absolutismo, mas pouco importava: havia quebrado com a ideia de direito divino. O gênio havia saído da garrafa. Gente como John Locke (1632-1704) tomaria a tocha e a carregaria pelo século 18, no que foi chamado de Iluminismo.
Não necessariamente o liberalismo era democrático. Alguns liberais, como Voltaire, defenderam a ação de déspotas esclarecidos, monarcas absolutos que implementariam o programa liberal.
Mas a forma democrática era particularmente atraente para uma classe cada dia mais economicamente poderosa, mas sem direitos políticos: a burguesia. Comerciantes e industriais, plebeus de nascença, entraram na — e financiaram a — luta para encerrar os privilégios da nobreza e criar um governo no qual teriam voz. E, séculos depois, a acusação dos populistas contra a democracia liberal continua a ser que é um sistema que serve a essa classe.
Duas grandes revoluções liberais democráticas aconteceriam em cada lado do Atlântico. A francesa, que, em nome da razão, mudou até o número de horas do relógio para 10, terminaria em Napoleão. A americana, bem menos ambiciosa, está aí até hoje.
A democracia liberal tem eleitores escolhendo representantes em um ambiente de liberdade política, de expressão e associação. Num ambiente de separação dos poderes, o Executivo é limitado por leis aprovadas pelo Legislativo, que também são limitadas pelos princípios e direitos estabelecidos na Constituição.
Classes sociais, em repúblicas liberais, não são estabelecidas por lei. Mas existem. Igualdade política e jurídica, não é mistério, não passa nem perto de igualdade material. Não tardariam a surgir detratores a notar essa falha.
Chegado o século 20, o liberalismo parecia uma ideia de gerações passadas. O sucesso da Revolução Russa apontou para um caminho radical e antiliberal para o futuro. E a resposta mais decisiva foi também furiosamente antiliberal.
Primeiro Mussolini, depois Hitler ascenderam ao poder prometendo acabar com o comunismo, mas também pôr rédeas no capitalismo. Diziam ter a chave para extinguir a luta de classes, unindo a nação, ricos e pobres, em um ideal compartilhado.
Seus inimigos, liberais e comunistas, eram os traidores, inimigos da nação, da decência, da raça. Hitler identificava tanto Moscou quanto Wall Street como resultado de conspirações dos judeus.
O populismo de ultradireita vinha na garupa de novas tecnologias. “As práticas de campanha que permitiram aos populistas conquistar novos eleitores incluíram novos meios de comunicação, como rádio, jornais de circulação massiva, e transporte moderno (avião, ônibus), que facilitaram contatos quase diretos entre os líderes e o povo”, afirma o historiador americano Michael Coniff, especialista em América Latina.
Os populistas gozavam de carisma, ou a percepção pelos seguidores que eles possuíam qualidades especiais, como honestidade, dedicação ao povo, inteligência, nacionalismo, e poderes de comunicação excepcionais.”
Se os jornais foram os pilares sobre os quais foi construído o edifício da democracia liberal e seu frio racionalismo, a voz permitia emoção.
Como Cléon de Atenas, os populistas puderam gritar e esmurrar diante de uma plateia massiva. Tanto Hitler quanto Mussolini souberam falar com as massas, fabricar suas próprias verdades e confundir a opinião pública, sempre apelando à emoção. Ambos ascenderam por meios constitucionais (ainda que não por voto direto). E ambos transformaram suas democracias em ditaduras, com o apoio da maioria da população.
Há muito o que discutir o quanto o Estado Novo se assemelhava aos governos da Itália e da Alemanha. Até chegar à presidência, Getúlio Vargas era um político bem mainstream: ele chegou a ser ministro da Fazenda na República Velha. Fora içado ao poder por uma ação militar, no intuito de criar uma democracia liberal, com voto secreto e universal. Tanto que sua coligação partidária era a chamada Aliança Liberal.
A República Velha fora fundada no liberalismo. Mas a parte da democracia deixava muito a desejar. Apenas homens maiores e alfabetizados podiam votar, frequentemente com o presidente escolhido por menos de 5% da população. E não era um voto sincero: como não era secreto, as urnas eram facilmente manipuladas por intimidação. Era o famoso voto do cabresto.
A democracia liberal da Aliança Liberal durou três anos, entre a Constituição de 1934 e o autogolpe do Estado Novo, no final de 1937. Nesse curto período, nasceu o populismo tupiniquim.
“O que chamamos de populismo clássico brasileiro foi pelo prefeito Pedro Ernesto Batista no Rio de Janeiro”, afirma Michael Coniff. “Durante essa pequena abertura que precedeu o Estado Novo, vários políticos se impressionaram com o êxito de Pedro Ernesto, como o próprio Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Ademar de Barros. Viram como, em condições democráticas, poderiam replicar as técnicas de mobilização de votos e construção de partidos modernos.”
Vargas, como ditador, criou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), responsável por iniciar um culto à personalidade a ele. Dando origem à expressão Pai dos Pobres. E, com seu nome cravado na memória popular, o ditador, deposto pelo Exército em 1945, voltaria pelas mãos do eleitor em 1951. Era um mundo (e um Vargas) bem diferente do da década de 1930.
Desta vez, Vargas aceitou governar sob cerrada oposição, muitos membros da qual eram os mesmos que o haviam levado ao poder 21 anos antes. O Vargas democrático foi uma figura extremamente divisiva. Não faziam seu estilo, porém, os gritos e ofensas pessoais.
Por exemplo, na celebração do 7 de setembro de 1953: “A fonte legítima do poder é a vontade do Povo, expressa nas urnas. Não se iludam os aventureiros da política ou os profissionais da desordem: já passou a época em que o veredicto popular era fraudado pelo recurso solerte das atas falsas ou violentado pelos golpes de força.”
No sentido econômico, defende Pedro Cezar Dutra Fonseca, autor de 'O Mito do Populismo Econômico de Vargas' e professor da UFRGS, o presidente também não foi tipicamente populista: “Entregou o governo com baixa inflação e sem problemas financeiros para seus sucessores”, afirma. “Embora ele tenha um discurso político populista, a forma de governar mostra o contrário.”
O Vargas democrático parece ter perdido por não conseguir ser populista. Completamente acuado pela imprensa, não tinha apoio dos militares para tentar qualquer saída inconstitucional (se é que queria isso). Decidiu por uma solução dramática, na ponta de um revólver.
E sua carta-testamento é uma poética lição em populismo:
“Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. [...] Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.[...] Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. [...] Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo, de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém”
O populismo político de Vargas daria espaço ao econômico. Seu sucessor eleito, o centrista Juscelino Kubitschek, era um conciliador nato. Mas também um demagogo que fazia promessas de ficção científica: 50 anos em cinco. E ele entregou uma cidade de ficção científica: Brasília, a capital planejada, com arquitetura de vanguarda — e um custo exorbitante, que deixou um rombo nos cofres públicos e uma inflação de 30,5%, que só aumentaria.
Na ressaca do otimismo, outro populista o sucedeu, esse atirando para outros sentimentos: o moralismo. O outsider Jânio Quadros tinha como símbolo uma vassoura, devidamente explicada em seu jingle: “Varre, varre, vassourinha, varre a corrupção”. Jânio se apresentava como um homem do povo.
Andava com um terno desarranjado, com caspa caindo nos ombros. Falava abertamente em beber. Tirava pão com mortadela do bolso e punha-se a comê-lo em público. Eleito, tomou atitudes contraditórias. De um lado, adotou medidas folcloricamente reacionárias: proibiu o uso de biquínis e maiôs em concursos de misses.
Por outro, restabeleceu relações com a União Soviética e concedeu a Che Guevara Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Enviou seu vice, João Goulart, em uma controversa missão diplomática à China. E, enquanto esse estava fora, renunciou subitamente, acusando forças terríveis de o perseguirem.
Antes de voltar a pisar no Brasil, Goulart, o ministro varguista que prometera dobrar o salário mínimo, acirrando a crise que derrubaria Getúlio, se veria rebaixado a presidente de um país parlamentarista.
A votação às pressas, um golpe branco, foi um remendo provisório para evitar um populista político que muitos viam como nada menos que comunista. Ele reconquistaria o Poder Executivo em janeiro de 1963.
Governaria por menos de um ano. Seu programa político, as Reformas de Base, previa desapropriações rurais e urbanas, limites dos envios de lucros das multinacionais, concessão de votos a analfabetos e militares de alta patente, e a legalização do Partido Comunista.
Em 13 de março de 1964, o discurso na estação Central do Brasil, no Rio, diante de 150 mil pessoas e transmitido ao vivo pela televisão, soou a sirene de emergência de seus adversários. Era como uma declaração de guerra.
Palavras como... “Chegou-se a proclamar, até, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse a dona da democracia, e a proprietária das praças e das ruas. Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas”... soavam aos opositores como uma convocação à revolução.
Quando Jango pareceu apoiar uma revolta de sargentos, no final do mês, os militares botaram em ação um plano para derrubá-lo. Com ele, a democracia.
Quando o brasileiro finalmente pôde votar, em 1989, elegeu um segundo Jânio. O caçador de marajás Fernando Collor. Com o fracasso de suas medidas econômicas extremas (e um processo por corrupção), o primeiro presidente eleito da Sexta República do Brasil também seria o primeiro impeachment.
No final do século 20, o populismo parecia enterrado. Após a queda da União Soviética, a democracia liberal — e a economia neoliberal — parecia consolidada como a única opção viável. Era o “fim da História” apregoado pelo cientista político americano Francis Fukuyama.
A frase hoje soa ridícula. A História continuava a ser feita. Na América Latina, a esquerda se reorganizava em torno da ideia de uma revolução pelo voto, não pelas armas. E isso tomou a forma de uma nova geração de líderes carismáticos, que jogavam a oposição para o papel de inimigos do povo.
O que isso significou na prática vai de país a país. A Onda Rosa, como foi apelidada, reuniu figuras bem díspares.
O argentino Néstor Kirchner fez um governo tipicamente populista e de curto prazo na economia e causou inflação, sem conseguir grandes resultados. Chávez fez uma reforma radical em toda a sociedade venezuelana, que a oposição viu como a criação de um Estado autoritário — antes da catastrófica crise atual.
Evo continua na cadeira e, apesar do discurso anticapitalista, manteve o país aberto a investimentos do exterior, criando o conceito de Evonomics. O Brasil é uma história em aberto. Assim como o boom econômico do começo dos anos 2000 em que ela aconteceu, a Onda Rosa acabou ficando no passado. Hoje o populismo em ascensão veste outras cores.
Segundo Cas Mudde, “os populistas mais bem-sucedidos hoje estão na direita, especialmente na direita radical. Donald Trump, nos Estados Unidos, Vladimir Putin, na Rússia, Marine Le Pen, na França, e Rodrigo Duterte, nas Filipinas, combinam populismo com nacionalismo e autoritarismo, são considerados parte desse grupo.”
Para Jan-Werner Müller, professor de política da Universidade de Princeton e autor do livro 'What is Populism?' (O que é Populismo?), apesar das diferenças, Trump e Le Pen são inegavelmente populistas. “Os dois defendem que somente eles representam o povo, e qualquer um que não concorde com esse ponto não faz parte do povo.”
Ironicamente (ou não), o mesmo fenômeno econômico que justificou a esquerda populista dos anos 2000 é o mote da direita hoje: a globalização. “Há um conflito entre aqueles que querem mais abertura e aceitam a transformação da cultura e da economia vinda da globalização e os que querem permanecer ou se tornar mais fechados. Esse é o tipo de disputa que alimenta o nacionalismo”, diz Müller.
Chegando aos finalmentes: o populismo, faz, enfim, jus à sua reputação de palavrão político? É uma doença da democracia, destinada a destruir a democracia?
Na minha opinião, o populismo não é mau nem bom”, afirma Michael Coniff. “Uma vez eleitos, os populistas podiam executar administrações boas ou más, dependendo das qualidades pessoais e morais de cada um e circunstâncias extrínsecas.”
“O populismo não é tanto uma ameaça à democracia, mas à democracia liberal”, afirma Cas Mudde. “A democracia é, em essência, uma combinação de soberania popular e governo da maioria. Em outras palavras, a maioria do povo elege seus líderes. O populismo apoia isso.”
“No entanto”, continua, “ao verem o povo como homogêneo e virtuoso, e oposto por uma elite igualmente homogênea, mas corrupta, eles têm problemas com a democracia liberal, que combina democracia com direitos das minorias, Estado de direito e separação de poderes. Simplesmente declarado, o populismo é uma forma de extremo majoritarismo, que rejeita os direitos das minorias”.
Se soa esquisito falarmos em populistas de esquerda rejeitando as minorias, pode-se ler minoria num sentido literal. Não um grupo necessariamente oprimido, mas quem ficou no lado minoritário diante da urna. Quem é escolhido para inimigo do povo pode ser tanto o refugiado miserável quanto o empresário dono de uma rede de televisão.
Assim como o populismo em si, a própria palavra já variou entre esquerda e direita. “Na América Latina começou a ser usado no século 20, principalmente nos anos 40 e 50. Quem utilizava essencialmente eram os sociólogos da esquerda marxista, que acreditavam que as classes trabalhadoras iam implantar o socialismo”, afirma Pedro Fonseca.
“Mas não foi assim. Na Argentina, por exemplo, os trabalhadores não votavam em partidos comunistas, mas sim no Perón. O mesmo aconteceu no Brasil: a esquerda não se conformava com os votos dos trabalhadores para Vargas, e não para os partidos ideologicamente marxistas.”
“Embora tenha sido usado essencialmente pela esquerda”, continua, “o termo, com o tempo, passou a ser mais difundido pelos liberais. Nos anos 90, ele foi apropriado por esses políticos, que usavam isso para fazer alusão a quem era contra as reformas que propunham. O termo passou a se referir ao seu adversário, de forma pejorativa”. Dito de outra forma, populista, então, era quem se colocava contra apertos orçamentários, privatizações, política anti inflacionária recessiva.
Hoje, falamos de algo diferente. “Populismo é o tema do momento”, afirma Cristóbal Kaltwasser. “O debate acadêmico e público está cheio de interpretações erradas sobre o que é o populismo e como deve ser analisado. Como efeito, a palavra ‘populismo’ é frequentemente usada como um conceito normativo para denunciar o que líderes e partidos em particular estão fazendo.”
Ele continua: “Quando defendese a democracia liberal de forças populistas, o que a maioria dos acadêmicos tende a esquecer é que liberalismo, se não mediado pela democracia, pode facilmente se deteriorar em oligarquia ou tecnocracia. De fato, o populismo é de muitas formas uma resposta iliberal ao liberalismo não democrático. Assim, mesmo que existam boas razões para se preocupar com a ascensão do populismo, não devemos nos esquecer que, frequentemente, existe uma verdade em suas críticas”.
Não a doença, mas um sintoma. O populismo é uma febre. Um aviso de que algo não está funcionando na democracia liberal. Uma força que pode ajudar a achar a cura. Ou matar o paciente.