Clássico de Josué Montello veste nova roupagem roteirizada pelo historiador e roteirista Iramir Araujo
Se há alguém de quem se pode falar que viveu muitas vidas, esse alguém foi Josué de Sousa Montello (São Luís, 1917 — Rio de Janeiro, 2006). E não apenas pelas inúmeras profissões e cargos que exerceu: de jornalista, teatrólogo, professor, reitor, diretor da Biblioteca Nacional, do Museu da República, do Serviço Nacional do Teatro, diretor do Museu Histórico Nacional.
Foi conselheiro cultural da Embaixada do Brasil em Paris, e embaixador do Brasil junto à Unesco; presidente da Academia Brasileira de Letras e membro de academias e instituições culturais no Brasil e no Exterior. Some-se a isso o fato de ter inaugurado e regido a cátedra de Estudos Brasileiros da Universidade Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, no Peru, na Universidade de Lisboa e na Universidade de Madri.
Essas vidas, ele as viveu no campo da realidade, no labor diário da existência. Mas há outras. Essas, inumeráveis, vividas por meio da extensa lista de personagens que criou em seus romances, novelas, textos teatrais, contos, fábulas. Também produziu ensaios e discursos em grande quantidade.
E no campo da imaginação, das narrativas, da meticulosa pesquisa histórica articulada à composição romanesca, foi que Josué Montello gravou seu nome no mundo das letras. E dentre seus 26 romances, há um que se destaca: "Os tambores de São Luís".
Considerado sua obra-prima, "Os tambores de São Luís" é um romance monumental escrito no decorrer de aproximadamente dois anos, ocupando, enquanto era gestado, dezenas de cadernos manuscritos e mais uma pilha de rascunhos em que o autor delineava seus personagens, cenários, situações.
De suas quase 500 páginas emergem várias histórias vividas por uma miríade de personagens, como uma dança coreografada com a maestria de quem não perde, por nenhum instante, o controle da narrativa.
Uma narrativa que atravessa toda a existência do personagem Damião, um negro que, de criança, livre no quilombo criado por seu pai, é capturado após a destruição do mundo que ele conhecia pela milícia mandada pelo dono da fazenda de onde fugiu com sua família, e para onde são levados de volta, até o ancião octogenário, que faz uma longa caminhada de sua casa no Largo do Santiago, à de sua bisneta, na Gamboa, onde vai acompanhar o nascimento do primeiro trineto.
Nesse lapso temporal cabem inúmeras vidas em que Montello, apoiado nas pesquisas em arquivos, jornais, mapas, e em sua própria e vasta biblioteca, insere sua multidão de personagens, uns apenas passageiros, de uma cena, um parágrafo, uma linha. Outros que percorrem grandes trechos do romance, influindo decisivamente no enredo. Outros, ainda, importados dos livros de História.
E essa obra paradigmática, lançada em 1975, completa neste ano a marca de 50 anos, ainda viva, ainda relevante. Ainda sendo objeto de estudos, de discussões, de adaptações. Neste ano do cinquentenário é lançada a adaptação para as histórias em quadrinhos feita por mim, Iramir Alves Araujo, historiador e escritor e ilustrada pelos artistas Rom Freire e Ronilson Freire.
Já há mais de 15 anos desenvolvo quadrinhos que apresentam a cultura do Maranhão em seus diversos aspectos: histórico, literário, mítico e ficcional. E o faço por entender que esta é uma linguagem que atrai um público bastante amplo e contribui enormemente para o letramento cultural.
A conversão do texto original de "Os tambores de São Luís" para os quadrinhos foi uma tarefa, ao mesmo tempo, prazerosa e desafiadora, entre outras coisas, pelo fato de o romance ser construído em dois tempos narrativos não delineados explicitamente. Então decidi construir o roteiro de modo a criar um ritmo que sugira essas fronteiras, sem, por óbvio, comprometer a narrativa montelliana. Por isso a decisão de chamar dois desenhistas diferentes para executar esses momentos.
É uma feliz coincidência que o lançamento da versão em quadrinhos se dê exatamente no ano em que o romance completa 50 anos de lançamento, sendo que comecei a planejá-lo em 2021.
Uma obra da importância de "Os Tambores de São Luís", que traça uma epopeia do negro no Maranhão, e se enraíza na História e no imaginário maranhenses, precisa ser mais conhecida por mais pessoas no estado e no país.
*Iramir Alves Araujo é historiador, mestre em História pela Universidade Federal do Maranhão, artista gráfico e roteirista, foi colaborador do jornal O Estado do Maranhão, onde publicou tiras diárias e manteve por vários anos, aos domingos, uma página sobre quadrinhos.
Recebeu a condecoração da Assembleia Legislativa do Maranhão por sua contribuição aos estudos da Balaiada, e a medalha “Maria Firmina dos Facebook Reis” pela Academia de Letras e Artes de Guimarães.