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Matérias / Indigenismo

Comissão Rondon: Nasce o indigenismo no Brasil

Ele desbravou a Amazônia para instalar milhares de fios de telégrafo. Acabou inaugurando o indigenismo no país e uma nova forma de estudar a floresta

Fernando Granato Publicado em 18/04/2019, às 14h00

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Acervo do Museu do Índio
Acervo do Museu do Índio

Era quase noite, naquele 29 de dezembro de 1909, quando o oficial do Exército Cândido Mariano da Silva Rondon e seus homens aproximaram-se, aliviados, da cabeceira do rio Jaciparaná, na região Amazônica. Havia seis meses, viajavam a pé, atravessando matas, enfrentando doenças tropicais e ataques de índios. Sua missão era instalar mais de 2 mil km de fios de telégrafo para ligar essa área, inabitada e distante, ao resto do país. Estavam perdidos e desesperados - a comida tinha acabado havia dias. O grupo de reabastecimento (e suas canoas carregadas) deveria aparecer nesse rio. Mas, mal se acomodaram às margens para descansar, encontraram um casal de seringueiros: "Esse não é o Jaciparaná. É o Jamari".

Por um erro na interpretação dos mapas, Rondon deslocara-se centenas de quilômetros ao norte do previsto. Nos últimos meses, a comitiva tinha vivido de caça e pesca. Comeram macacos, insetos, mel e peixes. Além da dificuldade em encontrar alimento, a malária castigava boa parte dos integrantes da expedição, inclusive o médico, Joaquim Tanajura. Vários doentes foram dispensados ao longo do caminho, aberto em picadas na floresta. "Ficaram comigo apenas seis praças, seis civis e os tenentes Lyra e Amarante; nossas mochilas não continham mais do que a roupa de dormir", anotou o oficial em seu diário, em dezembro.

Ao se dar conta do erro, Rondon resolveu não atravessar o território restante entre os rios Jamari e Madeira. Preferiu alimentar seus homens com o punhado de comida oferecido pelo casal de ribeirinhos e, depois, voltar ao Rio de Janeiro. Conformou-se em retomar a expedição no ano seguinte, com mais infraestrutura.

Preocupação

Essa era a quarta vez que a expedição interrompia seus trabalhos. A comissão fora criada em 1907, por determinação do presidente Afonso Pena, "para ligar os dois Brasis", como se dizia na época. Desde a Guerra do Paraguai (1865-1870), havia grande preocupação por parte dos dirigentes em integrar a nação. Durante o conflito, a nação inimiga invadiu o sul do Mato Grosso. As autoridades no Rio de Janeiro só ficaram sabendo seis semanas depois. Em 1889, na proclamação da República, outro fato confirmou a urgente necessidade de comunicação com essa área deserta do país: a notícia da derrubada da monarquia chegou à capital mato-grossense com um mês de atraso.

Afonso Pena recorreu então aos militares para promover a nova presença do Estado no sertão. O telégrafo, uma tecnologia relativamente recente, prometia fazer essa integração. Além de instalar a linha, a ideia era estudar a região ainda virgem, mapeá-la, fazer o levantamento topográfico, contatar populações indígenas e abri-la ao desenvolvimento. Rondon foi integrado à Comissão Construtora da Linha Telegráfica de Cuiabá ao Araguaia em 1889, como ajudante do major Antônio Ernesto Gomes Carneiro. "Nos tempos coloniais, os diversos tratados entre as duas coroas ibéricas acabaram garantindo a possessão do Centro-Oeste e da Amazônia por Portugal", diz Carlos de Almeida Prado Bacellar, professor de história na USP. "A partir de então, a questão do acesso e da segurança dos territórios incorporados atormentou sucessivos governantes. A construção de fortalezas e o esforço diplomático e militar para garantir a livre navegação da bacia do Prata foram cruciais para a consolidação do domínio da área."

Segundo Bacellar, a atuação de Rondon significa a continuidade no esforço de incorporar a região e o "primeiro passo para integrar as suas populações indígenas". Mas ele fez mais que isso. Aliou a questão militar à científica, abrindo as portas para os futuros estudos que se fariam sobre algumas das áreas mais remotas do país. Entre 1900 e 1906, Rondon chefiou a Comissão das Linhas Telegráficas em Mato Grosso. No ano seguinte, ele assumiu a Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas.

A primeira meta era conectar a região do Acre, Alto Purus e Alto Juruá, incorporada ao Brasil recentemente, após negociação com a Bolívia. Antes que a empreitada fosse concluída, em 1915, o militar ainda seria cicerone do ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt na chamada Expedição Científica Rondon-Roosevelt (que, aliás, quase matou o americano).

Ao lado de Roosevelt / Reprodução

"Na minha visão, essa capacidade em acoplar o pioneirismo desbravador com a ciência foi o grande mérito de Rondon", afirma Marcos Ximenes Ponte, diretor do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. "Pode-se dizer que a Comissão Rondon, ao fazer esse trabalho científico, trouxe um grande legado para aqueles que se seguiram nos estudos acerca da Amazônia."

Ataque

A primeira etapa da chamada Comissão Rondon, em 1907, começou em maio, na época seca, quando foi construído o ramal que ligava Cáceres à cidade de Mato Grosso, na fronteira com a Bolívia. Participaram nove oficiais, 160 praças e mais 50 trabalhadores civis. Em setembro, iniciou-se a segunda etapa, a parte mais difícil, quando se daria a travessia da porção amazônica, onde está hoje localizado o estado batizado em homenagem ao marechal.

Rondon planejava descobrir a nascente do rio Juruena e fazer contato com os índios nambiquaras. A viagem começou em 2 de setembro, com uma comitiva bem mais enxuta: apenas 16 homens, 34 cavalos e quatro bois. Seis semanas depois, a trupe chegou ao Juruena. E comemorou o feito com três tiros de espingarda. Os expedicionários se espantaram com a largura do rio: 90 metros, margeado por "matas altas, majestosas", como anotou Rondon em seu diário.

Os índios nambiquaras, uma das várias etnias "pacificadas" por Rondon durante suas expedições / Acervo do Museu do Índio

Todos aproveitaram para tomar banho no rio. Enquanto se secavam, aconteceu o inesperado: um bando de nambiquaras, atraído pelos tiros, avançou contra a comitiva. Rondon se deu conta do ataque quando ouviu um sopro, que lhe pareceu o voo de um pássaro. Olhou para baixo e viu uma flecha espetada em sua cartucheira. Sacou sua espingarda e fez vários disparos para o alto para espantar os nativos. (O que fazia jus a seu lema, inspirado no antigo chefe Gomes Carneiro: "Morrer se preciso for. Matar nunca!") Passado o susto, percebeu que seu querido cão de caça, Rio Negro, fora atingido por uma flecha e cambaleava ferido de morte.

Naquela noite, em sua barraca, enquanto tomava goles de mate, escreveu: "Longe estávamos de esperar essa traição que quase me trouxe a morte. Que felicidade. Escapei de morrer inglória e traiçoeiramente". Na manhã seguinte, entretanto, ordenou que seus homens não perseguissem os índios, que estariam apenas revidando constantes ataques que sofriam dos seringueiros. O episódio acabou abreviando a expedição. Com os homens maltratados pela malária e traumatizados com o ataque, Rondon resolveu voltar para Diamantino.

Problemas 

Em 1908, o oficial deu início à construção do trecho mais complicado da linha, entre os rios Juruena e Madeira. Uma gigantesca equipe com mais de 100 bois, 58 mulas e cerca de 6 mil kg de suprimentos partiu às 6h30 da manhã de 29 de julho. Ao longo do percurso, foram construídas pontes para a passagem das pesadas carroças e derrubados quilômetros de matas para abrir a trilha. Uma vez mais, problemas de logística atrapalharam os planos da comissão. Exaustos e famintos, muitos homens desertaram e inviabilizaram o avanço da linha.

O projeto só foi retomado um ano depois, em junho de 1909, dessa vez com uma nova estratégia de trabalho. Com as experiências anteriores, Rondon aprendeu que os bois não conseguiam sobreviver à viagem. Não havia pastagem suficiente para alimentá-los por causa do solo arenoso nessa região amazônica. Sobre isso, o cronista da expedição, Roquete Pinto, anotou: "Ao longo do caminho, caveiras e caveiras de cargueiros, mortos de fadiga e fome, ao volver do Norte".

Durante as expedições / Acervo do Museu do Índio

Era preciso, então, que um grupo seguisse em canoas, levando suprimentos, partindo do rio Madeira e depois pelo Jaciparaná. Mas a tática, como já se sabe, também fracassou e a comitiva viu-se perdida e sem suprimentos. Essa nova tentativa de avançar pelas matas começara em 2 de junho, quando a comitiva zarpou de Tapirapuã, com 43 integrantes, tendo como destino o acampamento de Juruena.

Dessa vez, iam junto um botânico e um zoólogo, com a função de fazer um levantamento completo de toda flora e fauna da região. Em setembro de 1909, os homens de Rondon estavam no centro das terras nambiquaras. O ataque de dois anos antes fez com que eles adotassem uma postura de precaução: em gesto de amizade, deixavam presentes, como ferramentas e tecidos aos índios. Anunciavam a presença da expedição fazendo o máximo de barulho possível na trilha durante o dia e no acampamento à noite. Explodiam dinamite, improvisavam concertos com instrumentos que levavam na bagagem e, com um gramofone, tocavam o Hino Nacional.

Elefante branco

Em outubro, o terreno acidentado da chapada dos Parecis foi o maior obstáculo. Dois meses depois, até Rondon foi acometido pela malária. Abatido pelas febres recorrentes, delirava na barraca em noites intermináveis. No fim de dezembro, depois da confusão em torno dos rios Jaciparaná e Jamari, ele viajou de barco até Manaus e lá seguiu num vapor com destino ao Rio de Janeiro. Estava 10 kg mais magro. Na capital, passou 14 meses se recuperando e preparando a continuidade de seu projeto.

Nesse meio tempo, virou diretor do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. Era o embrião centenário da futura Funai e a estreia formal do indigenismo brasileiro. A grande obra de construção da linha telegráfica continuou nos anos seguintes, sem a presença constante de seu mestre. Em 1 de janeiro de 1915, depois de oito anos de trabalho (e uma coleção incrível de contratempos), o país ganhou, enfim, aquilo que os militares acreditavam ser a porta de entrada para a desconhecida Amazônia. Mas a realidade uma vez mais atropelou as expectativas: após tanto tempo de construção, ao ser inaugurada, a linha já se mostrava obsoleta e desnecessária.

Poucas pessoas desejavam usar seus serviços. Além disso, os raros usuários que queriam mandar uma mensagem não obtinham sucesso. O aparato não funcionava direito. Fora inaugurado de modo precipitado, com constantes interrupções - e acabou deixado de lado. O país já vivia a transição do telégrafo (que operava aqui desde a metade do século 19) para novos meios de comunicação, como o rádio. A linha telegráfica de Rondon, quem diria, revelou-se um "elefante branco" em plena Amazônia.


Saiba mais

Rondon - A Construção do Brasil e a Causa Indígena, Carlos Augusto da Rocha Freire, 2009

Rondônia, Roquete Pinto, Companhia Editora Nacional, 1975