Enquanto Kepler, um dos criadores da astronomia, acreditava no zodíaco, Newton, o fundador da física moderna, pensava na alquimia. E, assim, a ciência foi impregnada pelo misticismo
Hoje é comum pensar que a ciência nasceu na tranquilidade de uma universidade, em algum momento do século 16. Mas a verdade é bem diferente: a ciência não apenas surgiu fora das escolas como esteve quase sempre em confronto com elas. E não foi o resultado de uma sacada genial, mas uma obra coletiva, confusa, incerta e demorada.
No longo período de gestação do método científico, entre 1500 e 1700, magos e cientistas andaram juntos em sentido contrário da Igreja e das universidades, cujas ideias dominavam as sociedades daquela época. Parece chocante saber que os fundadores da ciência eram também alquimistas, animistas ou herméticos, entre outras variantes do pensamento místico que ressurgiram na Europa, em pleno século 15.
Mas é claro que, na época, eles não sabiam que estavam criando uma nova forma de conhecimento e não tinham certeza do seu valor ou da sua utilidade. Um exemplo da ambiguidade em que viviam esses homens é a história de um dos fundadores da astronomia contemporânea, o alemão Johannes Kepler.
Por volta de 1600, ele introduziu os preceitos que os astrônomos ainda seguem hoje em dia ao observar, durante meses a órbita de Marte. A partir daí, tirou uma conclusão — a de que a órbita dos planetas não era um círculo, como se pensava desde a Antiguidade, mas uma elipse. A marca da ciência, como hoje se sabe, era o rigor dos dados coletados por Kepler e a clareza com que os apresentou, permitindo que qualquer um refizesse as observações para checá-las.
Isso é bem diferente do conhecimento mágico ou hermético, que é obrigatoriamente misterioso: não pode ser obtido com base em observações ou de experiências práticas, porque advém de uma realidade transcendental, ou seja, que não pode ser percebida pelos sentidos, nem explicada pela razão.
Um estudioso da questão, o inglês Thomas Vaughn, escreveu em 1888, no livro 'Magia Adâmica', que o conhecimento místico é feito de visões e de revelações, e que o homem só pode chegar a uma compreensão total do universo mediante uma “iluminação”.
Ou seja, mais do que aprender ou descobrir os fatos, o que se buscava, nesse caso, era “entrar” nessa realidade oculta por meio de orações, rituais ou invocações secretas. As fórmulas mágicas não precisam fazer sentido para as pessoas comuns: ao contrário, vêm sempre em linguagem metafórica, que só os iniciados podem compreender.
Hoje, é fácil fazer essas distinções porque estamos acostumados com a ciência e, desde criança, aprendemos o valor das definições precisas, das experiências e das observações. Mas os fundadores da ciência tiveram de aprender à medida que avançavam e, a cada momento, tinham dúvidas, oscilando entre as diversas formas de conhecer o mundo.
O próprio Kepler, nas horas vagas, fazia previsões astrológicas para aumentar seu salário de matemático, e várias das suas teses tinham muito a ver com as ideias herméticas do filósofo grego Pitágoras, para quem a realidade que vemos não era o mundo verdadeiro.
A realidade autêntica, segundo Pitágoras, eram os números puros e as relações entre eles — assim, quem pensa que está ouvindo uma melodia, está apenas reconhecendo, mentalmente, as relações numéricas, abstratas entre as notas — que, no fundo, seriam inaudíveis, só uma “ilusão” dos ouvidos.
Kepler gastou um bom tempo tentando desvelar a harmonia oculta no movimento dos planetas, que os pitagóricos supunham formar um círculo perfeito. Mas acabou convencido de que estaria mais próximo da verdade se aceitasse a realidade que suas medidas lhe indicavam, mesmo que fosse a realidade “imperfeita” de um elipse.
A mesma ambiguidade marcou a vida do alquimista alemão Philipp von Hohenheim, mais conhecido como Paracelso. Ele era um defensor radical da magia como “a sabedoria secreta”, dizendo que a razão não passava de “uma loucura pública”.
Achava que as coisas inanimadas tinham espírito e estava convencido de que os astros exerciam influência direta na saúde das pessoas. Nada disso é compatível com o método científico. Mas Paracelso também fez observações do corpo humano e corrigiu diversos erros cometidos por Galeno de Pérgamo, um dos grandes médicos da Antiguidade.
Além disso, foi um pioneiro no estudo da química médica e desenvolveu o conhecimento sobre diversas substâncias importantes, como o enxofre e o mercúrio. Paracelso nunca defendeu o método científico e não é reconhecido como um pai da ciência. Mas hoje já se admite que seu trabalho contribuiu para o avanço da pesquisa médica.
Segundo o historiador e filósofo italiano Paolo Rossi, um dos maiores especialistas do século 20 no estudo da origem da ciência, Paracelso “destruiu a medicina de Galeno e transformou a prática médica e o ensino universitário”. Tudo isso no bom sentido, eliminando concepções ultrapassadas e abrindo novas possibilidades de pesquisa.
Do ponto de vista científico, não teve papel inferior ao do alquimista belga Jean-Baptiste van Helmont, que também seguia ideias similares às de Paracelso e foi perseguido pela Igreja. Diversas vezes foi preso e teve de abjurar suas descobertas.
Em 1642, Helmontpublicou o livro 'Ortus Medicinae', cuja repercussão sobre o estudo dos gases foi extraordinária. O cientista, inclusive, foi um dos primeiros a ressaltar a importância do gás carbônico no corpo humano, especialmente na respiração. Também demonstrou que a digestão não é só uma trituração mecânica da comida, mas uma decomposição química por meio de ácidos.
Como se vê, não é fácil distinguir a ciência de outras formas de conhecimento. Mas o que agitava as mentes dos sábios e pensadores, a partir do século 15, era algo novo em todo os sentidos. Pela primeira vez admitiu-se que o aprendizado na prática também tinha valor — em alguns casos, era mais valioso que o conhecimento contido nos livros.
Essa nova forma de pensar não renegava os grandes ensinamentos da filosofia ou da religião, da lógica ou da intuição, mas determinava que todas as descobertas, além de serem coerentes com a razão, tinham de ser descritas em linguagem direta e demonstradas de maneira igualmente clara, de modo que outro estudioso pudesse repetir a demonstração e comprovar-lhe o resultado.
Esses requisitos eram incompatíveis com o pensamento religioso e teológico, que, apesar de aceitar o racionalismo lógico, também se baseava na existência de uma realidade transcendental relacionada à existência de Deus e à fé.
Nos dois casos, místicos e religiosos aceitavam a verdade obtida por meio de uma revelação que não podia ser demonstrada na prática. Imbatíveis durante a maior parte da história, durante a Idade Média eles passaram a ser colocados em dúvida.
Nesse período, a civilização havia crescido muito (e rapidamente) e, no século 11, a Europa movimentava uma riqueza dez vezes maior que a do Império Romano em seu ápice, no século 3, com uma população também dez vezes superior.
Tantas mudanças colocaram em xeque os conhecimentos que a Igreja havia sistematizado desde o século 5, e transformado no saber oficial da Europa. Nessa época, só os místicos faziam oposição à autoridade da Igreja. Era natural, portanto, que do meio deles nascesse o pensamento científico.
De acordo com Rossi, os místicos cresceram sob a influência de dois livros: o 'Secreta Secretorum', atribuído ao filósofo grego Aristóteles, no século 3 a.C., e o 'Corpus Hermeticum', supostamente de autoria do sábio Hermes Trimegisto, figura lendária do século 2. Esses dois textos foram editados por volta de 1460 e difundiram-se largamente pelo continente, influenciando muitos dos protagonistas da revolução científica.
O astrônomo polonês Nicolau Copérnico, em 1554, invocou a autoridade de Trimegisto para apoiar sua tese de que era o Sol, e não a Terra, o centro do universo. Na mesma época, o físico inglês William Gilbert, um dos pioneiros no estudo do magnetismo, achava que a força dos ímãs era reflexo do mundo transcendental, nos moldes do vitalismo.
O filósofo alemão William Leibniz e o francês Renê Descartes, estrelas do pensamento racional no século 17, eram adeptos do lulismo mágico, uma forma obscura de misticismo. A lógica de Leibniz também tem pitadas da cabala.
Já o físico inglês Isaac Newton teria dedicado mais de 1 milhão de palavras de sua obra para descrever processos alquímicos. Com as navegações, a Europa passou a concentrar as conquistas tecnológicas de outros povos.
Formaram-se centros de estudos nos quais se buscavam utilizações mais amplas e universais para o conhecimento de até então. Foram aprimorados o papel, a bússola, a pólvora e os foguetes chineses, e absorvidos dos árabes conceitos como o zero e a própria ideia de universidade, um local voltado exclusivamente para o saber.
A isso somaram-se as contribuições da Europa medieval: a grande produção de metais, vidros e tecidos. Foram as primeiras fábricas da história, tocadas pela força da água. A produção de vidro foi importante para a construção de novos instrumentos, como o telescópio e o microscópio. Além deles, surgiram o termômetro, o barômetro e o relógio.
A transformação foi enorme, mas não repentina. O mundo mudou nos séculos 16 e 18 e a ciência nasceu da adaptação do conhecimento a essas mudanças. Para se ter uma ideia, em 1680, enquanto Newton estudava o movimento dos corpos, ainda não havia eletricidade e ninguém sabia dizer as horas com precisão superior a 10 minutos.
Não chega a surpreender que o gênio que coroou a revolução científica acreditasse que a luz era “o espírito da matéria viva” e Deus, “o espírito da luz”. Para ele, a Terra estava viva, como um “vegetal inanimado”. No campo da biologia, desde 1555 o francês Pierre Belon havia notado semelhanças entre os esqueletos dos animais, abrindo caminho para a ideia da evolução das espécies.
Em 1628, o médico inglês William Harvey descobriu a circulação sanguínea. Em 1661, o holandês Franciscus Sylvius estabeleceu que a digestão exige tanto a trituração quanto a decomposição química dos alimentos. Em 1665, o físico inglês Robert Hooke fez os primeiros desenhos de células vistas ao microscópio, mil vezes menores que 1 milímetro.
Em 1676, o holandês Anton van Leeuwenhoek sugeriu que poderiam ser coisas vivas. Eram o que hoje chamamos de protozoários. Em 1597, o alemão Andreas Libau revisou todos os tratados de alquimia e separou o que se podia comprovar do que era obscuro, abrindo caminho para que, em 1661, o irlandês Robert Boyle, descobrisse as regras básicas de combinação dos elementos, tornando-se o fundador da química moderna.
No geral, as experiências envolviam elementos conhecidos desde a Antiguidade, como carbono, ouro, prata, cobre, enxofre, estanho, chumbo, mercúrio e ferro. Em 1669, o alemão Hennig Brand batizou o fósforo, o primeiro elemento químico a ter um descobridor oficial. Entre 1750 e 1800, surgiram platina, oxigênio, cloro, hidrogênio, potássio, cálcio e sódio.
Aos poucos, as personagens predominantes na sociedade europeia também começaram a mudar: até 1500, afirmava Rossi, as figuras centrais eram “o santo, o monge, o médico, o professor universitário, o militar, o artesão e o mágico”.
Nos séculos seguintes, surgem “o mecânico, o filósofo naturalista e os livres empreendedores”. Nessa última classe, inclui-se o alemão George Agrícola, que se tornou um ídolo da nova sociedade pela compilação que fez dos conhecimentos químicos práticos, extremamente úteis para a metalurgia.
O belga Simon Stevin fez algo parecido no campo da mecânica, por volta de 1585, ensinando, muito antes de Newton, regras claras para calcular as forças que atuam nas máquinas. Ele projetou e construiu uma carruagem a vela, com capacidade para 28 passageiros, aumentando a confiança na nova maneira de entender o conhecimento.
Esses criadores livres, às vezes amigos, àsvezes adversários dos místicos, foram aos poucos agrupando-se em associações aber tas a qualquer cidadão e a todo o tipo de pesquisa — desde que seguissem as normas da ciência.
Elas foram criadas, aprimoradas e disseminadas pelos pesquisadores de maneira coletiva, independentemente do que cada um pensava em particular. Como salienta o sociólogo israelense Joseph Ben-Davi no livro 'O Papel do Cientista na Sociedade', eles tiveram de organizar suas regras de conduta e seus critérios de verdade na prática, como um meio de se fortalecer ante os modelos antigos de conhecimento.
A luta da ciência, diz Ben-Davi “foi, em grande parte, uma luta pelo método exato, paulatino e operacional do cientista”. O resultado, dizia Rossi, é que as regras da ciência estão descritas nos estatutos de todas as instituições erigidas pelos novos pensadores, como as academias, os liceus e as sociedades científicas.
Assim, um texto da Sociedade Real de Ciência, inglesa, pedia que os membros da sociedade dessem “preferência à linguagem dos artesãos e dos comerciantes em lugar da linguagem dos filósofos”, e exigia “postura crítica em relação às afirmações de quem quer que seja”. Uma frase desse estatuto pode ser usada como definição histórica da ciência: “a verdade não está ligada à autoridade de quem a enuncia, somente à evidência dos experimentos e à força das demonstrações”.
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