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As incríveis chimbicas da Hungria comunista

Teve até carro de sangue de porco - tudo para escapar da proibição soviética de criar carros de verdade

Carlos Bighetti Publicado em 12/07/2017, às 13h30 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35

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Endre Suranyi, a esposa e seu veículo de 86 kg - Wikimedia Commons
Endre Suranyi, a esposa e seu veículo de 86 kg - Wikimedia Commons

O sonho da Hungria de produzir seu próprio carro parecia ter acabado. Em 1949, o país foi integrado ao Comecon (Conselho para Assistência Econômica Mútua) - um tipo de mercado comum liderado pela União Soviética. A essa altura, a metalúrgica Weiss Manfréd já tinha planos para fabricar o primeiro automóvel húngaro - o Pente, inspirado no Fusca. Mas a ordem de Moscou foi clara: "Carros, não!". Só restou então criar algo tão pequeno que, embora parecesse e funcionasse como carro, não poderia ser considerado como tal. Algo entre um automóvel e uma moto: o microcarro.

Seguindo a cartilha da planificação econômica soviética, o Comecon impõe regras para integrar, equilibrar e desenvolver seus membros, recém-destruídos pela Segunda Guerra. Parecia interessante, mas, para as indústrias locais, significou o fim da liberdade de determinar seu próprio rumo. E assim Stalin decidia quem poderia fabricar cada tipo de produto: aviões, ônibus, televisores, máquinas de lavar roupa e carros.

Tchecoslováquia, Polônia e Romênia recebem a autorização para produzi-los, mas a Hungria fica de fora - provavelmente porque ainda não os fabricava. "Carros de passeio nunca foram bem-sucedidos aqui porque o mercado era muito pequeno", diz o historiador húngaro Pál Négyesi, da Universidade de Budapeste, que pesquisa microcarros há duas décadas.

Já os veículos de carga e transporte de massa, comerciais, se saem melhor, mesmo nas décadas de 1910 e 20. Resta então aos magiares - que é como os húngaros chamam a si mesmos - a produção de motocicletas e caminhões Csepel e dos ônibus Ikarus, exportados para o bloco socialista e países em desenvolvimento. As motoquinhas Csepel desembarcam até no Brasil.

Jeitinho húngaro

Os magiares não se conformam com a proibição definida pela URSS. Para eles, um veículo nacional é um símbolo de orgulho patriótico - tal qual a Gurgel é para o Brasil dos anos 1980. Mas em 1953 morre Stalin, as regras do Comecon são afrouxadas e, enfim, surge a oportunidade de a Hungria resgatar um experimento que já tinha surgido em 1946. 


Onde tudo começou

O carro 'Pente' / jalopnik.com

A metalúrgica Weiss Manfréd era um dos maiores conglomerados industriais da Hungria. Na Segunda Guerra, fabricou de munição a scooters. Terminado o conflito, a intenção era fabricar sua versão de carro popular - o Pente, batizado em homenagem ao seu designer, János Pentelényi. Inspirada nos carros alemães anteriores à guerra, a primeira versão do Pente tinha motor de 500 cc e dois cilindros, custava a metade de um Fiat Topolino (o menor do mundo quando foi criado, em 1936) e levava até quatro passageiros. O plano de fabricação estava aprovado desde maio de 1946 e, em dezembro do mesmo ano, seu protótipo já estava nas ruas. Chegava a 60 km/h, e uma versão maior, com motor de 600 cc, estava a caminho. Mas em 1947 as reservas de petróleo húngaras se esvaziaram. No ano seguinte, as indústrias do país foram estatizadas. O governo barrou sua produção e o único sobrevivente, um Pente 600, está no Museu do Transporte de Budapeste.


➽ Foi naquele ano que o ex-motociclista profissional Endre Surányi tirou o motor de uma motoneta de 50 cilindradas e o instalou em um chassi no qual mal cabiam duas pessoas. De tão pequeno, o carrinho amador foi chamado de "sapato motorizado".

Desta vez, no entanto, a iniciativa é oficial. Em 1955, o Ministério da Metalurgia e Indústria convoca um time de engenheiros para projetar o tal microcarro numa antiga oficina de reparo de aviões na cidade de Székesfehérvár, nos subúrbios de Budapeste. (Entre eles, aliás, está Ernö Rubik, pai de Ernö Rubik Jr., que inventará o cubo mágico, em 1974.)

A inspiração são automóveis da Europa Ocidental, que, de tão pequenos, passaram a ser chamados de "carros-bolha": o Isetta (em 1956, este se tornaria o primeiro carro produzido no Brasil, sob licença para a Máquinas Agrícolas Romi) e o Messerschmitt Kabinenroller (que, como indica o pedigree Messerschmitt, descende do cockpit de um avião de guerra).

O carro 'Isetta' / Wikimedia Commons

Um modelo de cada é levado à Hungria para um estudo exaustivo, até a equipe chegar a dois protótipos: o Alba Regia e o Balaton. Paralelamente, é trazido um terceiro modelo - o Úttöro ("pioneiro", em húngaro), projetado pelo engenheiro János Schadek.

"O microcarro precisava atender a alguns requisitos: tinha de ter uma carroceria que protegesse os ocupantes, possuir quatro rodas e ter motor de motocicleta com potência suficiente para deslocar dois adultos, duas crianças e bagagem, ainda que reduzidíssima", diz Négyesi. Mas nem por isso todas as criações seguem as especificações oficiais.

Do papel à realidade

A hora de apresentar ao público esses carros chega no Primeiro de Maio de 1956. Durante o desfile do Dia dos Trabalhadores em Székesfehérvár, o Ministério da Metalurgia e Indústria mostra quatro microcarros: Balaton, Alba Regia, Úttöro e o italiano Iso Isetta. Enquanto isso, o Instituto de Pesquisas em Transporte Automotivo examina os modelos para endossar a fabricação de pelo menos um deles.

Para a frustração dos magiares, a entidade - que já tinha testado o protótipo Úttöro e os alemães ocidentais Messerschmitt e Goggomobil - não escolhe nenhum dos três projetos nacionais. O eleito "melhor microcarro" é o Goggomobil.

O carro 'Goggomobil' / Wikimedia Commons

Sem convencer-se do resultado, o ministro anuncia no verão de 1956 um novo concurso - agora privilegiando um projeto nacional. Se a Hungria conseguir fabricar seus próprios microcarros populares, talvez o automóvel deixe de ser um privilégio de altos funcionários do Partido Comunista.

Mas, durante o concurso, outro Davi resolve tentar vencer o Golias soviético no grito. No dia 23 de outubro, estoura a Revolução Húngara de 1956. O levante é iniciado pacificamente por estudantes, que marcham por Budapeste contra a política do governo local, determinada pela URSS. Eles exigem o fim da ocupação soviética e a implantação do "socialismo real".

Dois dias depois, tanques da URSS abrem fogo contra a multidão na praça do Parlamento. No dia 4 de novembro, o Exército Vermelho invade a capital do país e, após seis dias e um trágico banho de sangue, termina de esmagar os manifestantes. Estima-se que mais de 5 mil pessoas tenham morrido ou ficado feridas e cerca de 200 mil fugiram rumo ao Ocidente.

Acredita-se que, no meio de tanta confusão, o Alba Regia e o Balaton tenham sido destruídos, bem como o intruso Goggomobil. No ano seguinte, o ministro da metalurgia e indústria declara que o concurso não tem vencedores. Dos microcarros, sobram apenas relatos e fotografias.

Nos 40 anos em que a indústria húngara esteve sujeita às decisões do Comecon, de 1948 a 1988, esse foi o maior esforço oficial do governo para fabricar carros no país, com a exceção do microcarro Sigma, encomendado em 1987 pelo Ministério do Comércio. De resto, sobraram algumas tentativas individuais feitas em garagens, como o sedã Fesztivál.

Mas não importa tanto que os carrinhos tenham saído minúsculos e desconfortáveis ou que todo o esforço tenha sido destruído em uma revolução. A Hungria mostrou a capacidade e a criatividade de seus engenheiros, mesmo sob o controle de um gigante estrangeiro. "Sejam quais forem as circunstâncias, as pessoas sempre vão querer poder ter um transporte próprio, confortável e que possa protegê-las das intempéries", diz Négyesi.

Os microcarros húngaros teriam sido completamente esquecidos não fosse a busca individual de Négyesi para estudar seu paradeiro. Mesmo assim, as ideias nascidas com o Isetta e o Kabinenenroller - e, claro, os projetos de garagem dos perseverantes húngaros - foram a base de uma geração de minicarros elétricos.


Gambiarra patriótica 

Os húngaros que quase tomaram as ruas 

O pioneiro

Domínio publico 

O Úttöro (1954) foi construído pelo engenheiro János Schadek. Era movido por um motor de 250 cilindradas de motocicleta Csepel e a partida era no pedal. As rodas vieram de carrinhos de mão (desses de pedreiro mesmo) e a velocidade máxima era de 80 km/h.


Os gêmeos bivitelinos

Wikimedia Commons

O Balaton (esq.) e o Alba Regia (dir.), de 1956. tinham carroceria de alumínio, rodas de avião e motor traseiro de 250 cc, da motocicleta Pannónia. Para dar ré, o condutor desligava o motor e acionava uma chave o que o fazia girar ao contrário. Em vez de portas normais, o Balaton tem uma maçaneta no teto, aberto como um cockpit de avião.


O mais bizarro

Domínio publico 

O Fesztivál é um festival de exotismo criado em 1960 pelo artista Kálmán Szabadi. O design foi inspirado no Cadillac 1959, com rabo de peixe e portas asa de gaivota. A carroceria era feita de uma resina fedida, preparada com sangue de porco, penas de galinha e goma laca.


O mais micro

autoszektor.hu.com

Ainda em 1946, o piloto de moto e mecânico Endre Surányi concluiu o "Sapato", com motor de 50 cilindradas. Era tão fraco que foi substituído por um de 125 cc. O veículo tinha 2,30 m de comprimento, pesava 86 kg e tremia feito um liquidificador.


O esquecido

Pál Negyesi

Depois de ficar na geladeira, a tentativa de fazer um microcarro húngaro surgiu novamente em 1987. Desta vez, foi uma encomenda do Ministério do Comércio destinada aos deficientes físicos. Chamou-se Sigma e não foi comercializado.