Oficios diferentes e compromissos distintos desencadeiam múltiplas visões sobre o passado
Hoje fixo no Museu do Ipiranga, em São Paulo, o quadro O Grito do Ipiranga ou Independência ou Morte, pintado em 1888 por Pedro Américo, é um dos grandes clássicos que formam nosso imaginário sobre a História do país.
A maioria dos brasileiros, ao pensar o momento da declaração da independência, tem a imagem de Américo na cabeça. Isso acontece, principalmente, pois o artista, intencionalmente, retratou a declaração da independência de um modo a monumentalizar o evento. Torna-lo épico e grandioso.
Na época em que o quadro foi inaugurado, em Florença, com a presença de figuras como D. Pedro II e a Rainha Vitória do R.U., Pedro Américo gerou grande desconforto entre os historiadores, que, inspirados num método positivista, buscavam ao máximo a precisão histórica. Mesmo que o quadro não tivesse grande repercussão à época, entre os acadêmicos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) houve murmúrio. O pintor, mesmo tendo feito o quadro na Itália, veio à várzea do Ipiranga, no estado de São Paulo, para um estudo de topografia, hidrografia, os animais e outros aspectos para pintar uma obra gritante. Porém, muito do quadro em questão é extremamente inverossímil levando em conta a época:
- Na época, a região era uma ribanceira isolada sem praticamente nada;
- Não havia cavalos puros-sangues na região, que além de isolada é no topo de uma serra, que exige a tração por mula;
- O uniforme dos soldados que acompanham o imperador não existia. Hoje, os "Dragões da Independência" usam um uniforme inspirado na invenção de Pedro Américo;
- A comitiva que acompanhava D. Pedro I era bastante menor que a apresentada no quadro;
- O evento foi marcado pela indisposição e as dores intestinais de Pedro I, tornando impossível a posição sadia e eloquente do personagem.
Porém, esse tipo de crítica feita ao quadro, pintado 60 anos depois do evento acontecer, pouco abalou Pedro Américo. Numa carta aberta, o pintor expressou sua relação com a coerência histórica metódica para provar o ponto de que sua obra não se dedica à precisão metodológica.
Pedro Américo coloca aos historiadores que não há sentido em ser historicamente fiel em seu ofício: ao pintar os quadros-monumento para a História da Nação, ele não se dedicaria a criar quadros fiéis ao passado, que não passavam a ideia que ele achava essencial. O Grito do Ipiranga quer trazer a grandiosidade do evento para ensinar e convencer quem o vê de que o momento da independência por Pedro I deve ter uma relevância celebrável. O povo deve ver o quadro e sentir-se bem com a História do país e aprender sobre esses "grandes homens". Para isso, ele não poderia pintar um aristocrata mal vestido e com dor de barriga, montado numa mula na beira de um riacho.
Toda a configuração desse quadro tenta criar uma narrativa sobre o passado, uma versão do evento com seus próprios fins. Numa rápida análise, por exemplo, vemos que existe um centro no quadro, preenchido por militares em conjunto e em movimento, ativos, e uma periferia na imagem, em que aparecem membros da população comum, que observa passivamente o evento grandioso. Com isso, se apaga toda luta popular contra Portugal e se acentua a narrativa, errônea, de que a independência foi iniciativa única do filho do Imperador e que foi consumada com paz e negociata.
Os elementos do quadro criam significados que possuem um sentido ao mesmo tempo pedagógico e ufanista. É uma das características da pintura monumental histórica que, assim como funciona hoje o cinema e a televisão, era um dos principais veículos da época no quesito entretenimento educativo. Esse tipo de arte assumiu um papel de destaque no século XIX na formação política, artística e sobre a história entre os que tinham acesso a esse tipo de arte. Esse é um dos motivos do poder que a imagem de Pedro Américo tem até hoje na visão histórica dos brasileiros, até mais do que a visão dos historiadores sobre o evento.