A criatividade e determinação de Oscar Niemeyer, o arquiteto que rompeu padrões, criou um estilo e desafiou os limites da engenharia. Entre o belo e o funcional, optou pela surpresa e a invenção
Para o maior arquiteto brasileiro de todos os tempos a vida sempre foi mais importante do que a arte. A arte em que transformou cada pedaço de sua arquitetura, com uma dedicação de corajosa modernidade até a morte, aos 104 anos. Quando jovem foi boêmio incontrolável, adulto filiou-se ao Partido Comunista e criou espaços, formas e curvas domando o concreto, desafiando o cálculo e a lógica. Porém, em todas as suas empreitadas, o que mais o atraía eram os encontros, as conversas com os amigos, que colecionou com rara disponibilidade e com o peito - e bolso - abertos. "Sou simples, aberto para a vida, apto a aceitar todas as mudanças que os tempos estabelecem."
Rara figura como profissional e cidadão. Inconformado com as construções comerciais, acreditava que a arquitetura deveria provocar espanto, surpreender ao primeiro olhar, orgulhar pela ousadia. Inconformado com as injustiças, acreditou no comunismo até o fim, até mesmo depois que as estátuas de Lenin foram parar no chão e o Muro de Berlim desabou. Em 1990, desfiliou-se do Partidão, em solidariedade ao amigo, ex-presidente do PCB e ícone Luís Carlos Prestes (veja acima).
Seu nome virou sinônimo de sua arquitetura - assinada e convicta. O estilo espalhou-se pelo mundo, influenciou gerações, provocou ódios e paixões, mas cumpriu o propósito do autor: indiferente ninguém fica. Prolongou sua atividade profissional até os os últimos dias de vida. Viúvo desde 2004, anunciou que iria se casar novamente aos 98, surpreendendo a todos ao se unir a Vera Lucia, de 60, sua ex-secretária.
O superlativo se espalha pela linha do tempo dessa longa trajetória. Ela começa no Rio de Janeiro, em 15 de dezembro de 1907, numa casa assobradada em Laranjeiras. Ali, Oscar Niemeyer Soares Filho veio ao mundo, viveu, cresceu, se casou com Annita e também nasceu sua única filha, Anna Maria (1931-2012). Tinha seis janelas na fachada e, no frontispício, as iniciais RA, de seu avô Ribeiro de Almeida. "Meu nome deveria ser Oscar Ribeiro Soares ou Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares, mas prevaleceu o nome estrangeiro. Minhas origens são muitas, o que me agrada particularmente: Ribeiro e Soares, portugueses, Almeida, árabe, e Niemeyer, alemão. E isso sem levar em conta algum negro ou índio."
O primeiro Niemeyer chegou ao Brasil junto com dom João VI, em 1808. O pai do arquiteto, Oscar Niemeyer Soares, morreu aos 86 anos, em 1959. A rua onde nasceram seus filhos chamava-se Manoel Passos e o dono da casa era famoso: Ribeiro de Almeida foi conselheiro do Império e procurador da República, avô materno de Niemeyer. "Recebiam muitas visitas. Pessoas ilustres frequentavam a casa", disse o arquiteto. "Meu avô era um homem honesto. Morreu pobre, deixando para seus quatro filhos apenas a casa de Laranjeiras."
Responsabilidade
Casou-se em 1928, com Anna Elisa Baldo, Annita. "Uma moça bonita, modesta", filha de imigrantes italianos, da região de Pádua. Só depois de casado começou a compreender a responsabilidade que assumira e foi trabalhar na tipografia do pai, entrando então para a Escola Nacional de Belas Artes, em 1929. "Lembro dos primeiros tempos, Annita a me ajudar nos desenhos da escola e eu a dividir minha vida entre a arquitetura e a tipografia."
No terceiro ano da faculdade, sentiu a necessidade de procurar um emprego numa firma construtora. Escolheu a dedo o escritório de Lucio Costa, diretor da faculdade de Belas Artes e quem mais se aproximava do modo de pensar do jovem estudante: "Resisti, não queria, como a maioria dos meus colegas, me adaptar a essa arquitetura comercial que vemos por aí. E, apesar das minhas dificuldades financeiras, preferi trabalhar, de graça, no escritório de Lucio Costa". Em 1934, Niemeyer recebeu o diploma de engenheiro arquiteto. Estava na hora de deixar o casarão de Laranjeiras. A gráfica do pai não ia bem, sua mãe, Delfina, morrera, e um ar de decadência rondava a antiga moradia. Alugou uma casinha de vila no Leblon, com dois quartos. Num deles dormia sua tia Milota, no outro a filha Anna Maria e o casal, na sala. Viviam praticamente da pensão da tia. Mas tudo iria mudar.
Vida na arquitetura
O arquiteto e urbanista Lucio Costa, nascido em Toulon, França, em 1902, estava no comando da equipe responsável pelo projeto do Ministério da Educação e Saúde, hoje Palácio Gustavo Capanema, no Rio, em 1936. O ministro Gustavo Capanema encomendara o projeto para abrigar a nova sede da pasta recém-criada. Seu chefe de gabinete era Carlos Drummond de Andrade. Costa convidou Niemeyer para integrar a equipe. O rapaz sabia que pouca colaboração lhes poderia dar. Mesmo assim, sentiu que a arquitetura o convocara e aceitou o emprego. A visão do mestre o emocionava, pois o professor já namorava o movimento moderno da arquitetura, embora fosse um profundo conhecedor da arquitetura colonial. Foi ele quem sugeriu ao ministro que trouxesse ao Rio o arquiteto franco-suíço Charles-Édouard Jeanneret-Gris, mais conhecido como Le Corbusier.
Naquela época, duas frentes dominavam a arquitetura - a Bauhaus, que buscava o funcionalismo e a padronização, e Le Corbusier, admirador da beleza das formas, mas ainda recorrendo a estruturas pesadas, vãos curtos e linhas retas. Quando o convidado chegou ao Rio, Niemeyer foi escalado para ciceroneá-lo. Deveria assisti-lo como desenhista durante sua estada. "Pude, assim, desfrutar do privilégio de um contato cotidiano e inesperado, executando croquis e perspectivas que vi depois publicadas em seus livros - não sem uma ponta de orgulho".
Le Corbusier propôs duas soluções para o prédio, mas deixou o Brasil sem que nenhuma tivesse sido escolhida. Niemeyer resolveu rascunhar um novo projeto, em cima do primeiro feito por Le Corbusier. Propunha, porém, pilotis mais altos - de 4 para 10 m. Ele jamais reivindicou a autoria: "O fundamental foi e continua sendo o desenho de Le Corbusier".
Durante as obras, Niemeyer trabalhou em outras ideias. A primeira foi a sede da Obra do Berço, que oferecia serviço ambulatorial de pré-natal e puericultura. Era sua estreia individual. Em 1938, inaugurou sede própria na Lagoa Rodrigo de Freitas, onde ainda está. No projeto original, Niemeyer previa a utilização de brise-soleil, solução proposta por Le Corbusier como proteção térmica - um sistema de placas que, colocadas junto à fachada, evitam a incidência dos raios solares. A obra foi concluída sem os brise-soleil e o arquiteto pagou do bolso para que a recomendação original fosse obedecida. Depois, fez o projeto da casa de Oswald de Andrade, em São Paulo e, ao lado de Lucio Costa, o projeto para o Pavilhão Brasileiro na Feira Internacional de Nova York, em 1939.
No ano seguinte, Niemeyer recebeu uma chamada do governador de Minas Gerais Benedito Valadares, que queria construir um cassino em Belo Horizonte. Em BH, o arquiteto conheceu Juscelino Kubitschek, candidato a prefeito da cidade. O projeto de Valadares não vingou, mas JK, eleito, chamou Niemeyer para uma outra conversa. "Quero criar um bairro de lazer na Pampulha, com cassino, clube, igreja e restaurante e preciso do projeto para amanhã!"
O arquiteto virou a noite para atender JK. Para ajudá-lo, convocou artistas plásticos, a quem encomendou o mural de Portinari, as cerâmicas de Ceschiatti, os mosaicos de Paulo Werneck, as esculturas de José Pedroso, Zamowsky e Ceschiatti. Além dos jardins de Burle Marx. A igreja tinha formas cheias de curvas. A Igreja Católica se recusou a reconhecê-la, o que veio a acontecer somente em 1959, 15 anos depois de inaugurada. "Pampulha foi a contestação do que existia de funcionalismo ortodoxo que impedia a imaginação do arquiteto. Quando comecei, senti que era preciso ter coragem."
Niemeyer sabia que Pampulha representava o maior passo da arquitetura brasileira. Em 1947, o arquiteto americano Wallace Harrison convidou Niemeyer para fazer parte de um grupo de profissionais contratados para construir a futura sede da ONU, em Nova York. Logo ao chegar, Le Corbusier pediu o apoio do brasileiro para o seu projeto, que começava a ser criticado entre os colegas da comissão. Niemeyer disse sim. Mas Harrison o lembrou que ele estava ali para apresentar um projeto seu e não para apoiar Corbusier. "Em uma semana elaborei meu estudo. Confesso que não gostava do projeto de Le Corbusier." Oscar venceu. O franco-suíço, porém, pediu para que eles conversassem cedo, no dia seguinte. "Ele queria mudar a posição da Grande Assembleia, levando-a para o centro do terreno. Eu não estava de acordo. Liquidaria com a Praça das Nações Unidas, dividindo de novo o terreno."
Os marcos na capital paulista
O encontro de Niemeyer com São Paulo aconteceu no início dos anos 1950. Deixou 21 obras, algumas delas cartões-postais da cidade, como o Parque do Ibirapuera, o Memorial da América Latina, o Sambódromo e o Condomínio Copan. Niemeyer chegou a ter um escritório na Rua 24 de Maio. Ao mesmo tempo em que desenhou os edifícios, trabalhou nas obras do Ibirapuera, cujo projeto foi encomendado pelo governo e pela prefeitura de São Paulo para comemorar o quarto centenário da cidade.
Voltou a São Paulo nos anos 1980, para construir o Memorial da América Latina e o Parlatino. "O espaço faz parte da arquitetura, então, no caso do Memorial, eu queria o espaço maior para as peças aparecerem melhor". Em 2005, inaugurou o belíssimo Auditório Ibirapuera, cujo fundo do palco pode ser levantado para que a natureza do parque lhe sirva de cenário.
Brasília
Era setembro de 1956 quando o presidente Juscelino Kubitschek bateu na porta da Casa das Canoas, residência de Niemeyer construída em 1952, no Rio, com mais um desafio para o arquiteto. "Oscar, desta vez vamos construir a capital do Brasil. Uma capital moderna. A mais bela capital deste mundo!" Brasília o absorveu totalmente, a ponto de fechar o escritório do Rio. Ao contrário do que se pensa, não ficou milionário ao construir os prédios e palácios de Brasília. Era funcionário assalariado da Novacap.
Foi uma experiência rara e empolgante. Como disse o arquiteto Carlos Lemos para Nelson Werneck Sodré: "O concreto armado tornou-se dócil, maleável, plástico, digamos até temerário, graças à desenvoltura do cálculo de Joaquim Cardozo. O programa era livre, não se discutiam custos. As construções assemelhavam-se a esculturas semipousadas no solo".
Em 1964, veio a ditadura. Com ela, o inconformismo do arquiteto. Amigos presos, sumidos, interrogados. E ele decidiu aceitar os convites que recebia para projetos internacionais. Viajou para a Europa em junho de 1965. Em Paris, o Museu de Arte Decorativa do Louvre inaugurou uma exposição de seu trabalho. Ao entrar, leu no cartaz: "Niemeyer, o arquiteto de Brasília". Entrou e, no setor onde estavam as fotos da capital, escreveu em cima da imagem da Praça dos Três Poderes: "Não me importa dizerem que sou o arquiteto de Brasília se ao mesmo tempo disserem que Lucio Costa é o seu urbanista. A ele coube a tarefa principal: projetar a cidade, as ruas, as praças, os volumes e espaços livres. Não sou tampouco o construtor. Construíram-na o entusiasmo de Juscelino Kubitschek, a perseverança de Israel Pinheiro e milhares de operários que, anônimos, por ela se sacrificaram mais do que todos nós".
Do lado esquerdo do peito
Em 1945, Niemeyer recebeu um telefonema de um amigo, lhe perguntando se poderia abrigar alguns companheiros do Partido Comunista. Ele os recebeu em seu escritório da Rua Conde Lage, 35, no Rio. Eram cerca de 15. Depois ligou para o secretário-geral do partido, Luís Carlos Prestes, e entregou a casa a ele, que ali instalou a sede do Comitê Metropolitano do PCB. Foi a fase de maior militância do arquiteto, que era visto em tarefas panfletárias, distribuindo mensagens pelas ruas. Fora isso, sua participação no PCB ficou restrita ao plano das ideias e ideais - por seis décadas. "Nunca me calei. Nunca escondi minha posição de comunista. Os governantes compreensivos que me convocam como arquiteto sabem de minha posição ideológica. Pensam que sou um equivocado e eu penso deles a mesma coisa."
"Não é o ângulo reto que me atrai. Nem a linha reta, dura, inflexível criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro no curso sinuoso dos nossos rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher preferida."
"Nunca me preocupei especialmente com o problema do dinheiro, adaptando-me tranquilamente às incertezas e aos imprevistos da vida."
Nos quatro cantos do mundo
O arquiteto brasileiro projetou obras em mais de 25 países
Só o trabalho de mestres pode ignorar fronteiras. Oscar Niemeyer criou um estilo praticamente universal. Para os edifícios que distribuiu pelo planeta, cerca de 20, o arquiteto carioca deixou um número três vezes maior de projetos não executados. Sua estreia no exterior ocorreu em 1939, na equipe que criou o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York. A produção internacional cresceu a partir dos anos 1960. O exílio durante o regime militar alimentou esse processo. Morou em Paris e Argel, entre temporadas em outras cidades.
Milão, itália
Sede da Editora Mondadori, 1968
"Recordo como fiquei satisfeito ao ver a fachada desenhada, ao sentir que naquele ritmo de arcos tão diferentes - de 3 a 15 m de vão - estava a minha contribuição de arquiteto". Ao lado da França, a Itália é sede da maioria dos projetos internacionais de Niemeyer.
Constantine, Argélia
Universidade Constantine, 1969
"A universidade que eu proponho é humana, lógica e compacta." Niemeyer passou uma boa temporada no país, onde fez vários projetos de universidade e o de uma bela mesquita, nunca construída, e o de um zoológico.
Nova York, EUA
Sede da ONU, 1947
Niemeyer participou da comissão formada por dez arquitetos, inclusive Le Corbusier. Os dois discordaram, o brasileiro cedeu, mas o resultado é fruto sobretudo de suas propostas. Tem projetos ainda de centros comerciais e residenciais no país.
Haifa, Israel
Universidade de Haifa, 1964
O projeto de Niemeyer propunha a centralização do campus em poucos edifícios. A ideia original do arquiteto não foi aplicada na íntegra. Tem outros projetos em Israel, como o plano da cidade de Neguev.
Análise
A marca do século
A criação de um estilo e sua influência na arquitetura brasileira e mundial
A obra de Oscar Niemeyer representa uma das mais fortes imagens do processo de modernização brasileira no século 20. Sedutoramente afirmativa e hedonista, sua arquitetura formulou a primeira realização de maturidade cultural do país com ampla difusão no exterior, em paralelo ao sucesso de Carmen Miranda nos EUA, no final dos anos 1930. É curioso como esses dois artistas parecem entender e encarnar, simultaneamente, o potencial icônico da cultura de massas, estilizando formas ao mesmo tempo tropicais e universais. Como deixou claro o crítico Mário Pedrosa, a arquitetura foi o carro chefe do processo de modernização no Brasil, devido, sobretudo, à ação de Niemeyer. A irrupção da bossa nova e das vertentes concretistas nas artes plásticas e na poesia, como marcas de um Brasil moderno, seguem a esteira da arquitetura, já mais do que consolidada no fim dos anos 1950, selada pela construção de Brasília. Explorando de modo radical a plasticidade escultórica do concreto armado, Niemeyer se contrapôs aos ditames do funcionalismo europeu mais estrito. A invenção formal é a marca da sua arquitetura. Niemeyer retira a impressão de peso e esforço estrutural de seus edifícios. Resultam daí formas inusitadas que parecem pousar no chão miraculosamente, atingindo um ideal de "graça" longamente perseguido na história da arquitetura: a associação entre leveza e gratuidade.
Saiba mais
LIVROS
As Curvas do Tempo, Oscar Niemeyer, Editora Revan, 1998
Minha Experiência em Brasília, Oscar Niemeyer, Editorial Vitória, 1961
Oscar Niemeyer, Nelson Werneck Sodré, Edições Graal, 1978