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StandWithUs Brasil / Jogos Olímpicos

Os bastidores do documentário que registrou os Jogos Olímpicos em solo nazista

Em 1936, o Comitê Olímpico Internacional encomendou um documentário à cineasta predileta de Hitler: Leni Riefenstahl

Luiz Nazario* Publicado em 01/08/2024, às 11h36

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Os bastidores da gravação do documentário - Getty Images
Os bastidores da gravação do documentário - Getty Images

Berlim foi designada em 1931 a cidade anfitriã dos XI Jogos Olímpicos. Com Hitler já no poder, o Estádio Olímpia de Berlim começou a ser construído em 1934 com capacidade para 100 mil espectadores, o maior do mundo até então.

O hino olímpico foi recuperado e regido na cerimônia inaugural por Richard Strauss. Um documentário especial foi encomendado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) à cineasta predileta de Hitler, Leni Riefenstahl, após o sucesso de sua propaganda nazista O triunfo da vontade (1934).

Os Jogos foram transmitidos em caráter experimental em 25 salas de TV montadas em vários pontos da Alemanha e 100 mil pessoas assistiram ao vivo às competições em imagens granuladas que encantaram e frustraram os torcedores.

O documentário encomendado a Leni Riefenstahl foi financiado pelo Ministério da Propaganda Nazista (2.200.000 RM) e a Filmkredit-Bank (550.000 RM), totalizando 2.750.000 RM. Para gerenciar a enorme soma, Leni criou a empresa Leni Riefenstahl Produktionen.

O documentário

Com uma fortuna a esbanjar, Leni contratou 23 cinegrafistas entre os melhores da Alemanha, e munida de equipamentos de última geração e acesso sem precedentes aos eventos, viajou até o Mar Báltico e a Grécia com seus cinegrafistas prediletos para rodar a abertura do filme: após um prólogo que plasma o ideário nazista da “raça ariana” herdeira dos padrões estéticos da estatuária greco-romana, 3.000 esportistas revezaram-se levando a “chama sagrada” da cidade de Olímpia ao Estádio Olímpia, atravessando Grécia, Bulgária, Iugoslávia, Hungria, Áustria, Tchecoslováquia e Alemanha.

A ideia de transportar a tocha da “Antiga Grécia” ao mundo moderno, coerente com o ideal neoclássico do nazismo, foi desde então incorporada aos rituais das Olimpíadas.

Leni Riefenstahl animou o enfadonho registro das competições com trucagens: na regata, a montagem acelerada confere maior dramaticidade à competição; o uso da teleobjetiva para os primeiros planos dos atletas (permissão inédita que lhe concedeu a Associação Olímpica) coloca o espectador do lado deles, a contemplar seu esforço no ato de quebrar os recordes: contração dos músculos, distorção das máscaras faciais, suor escorrendo por todos os poros.

Leni Riefenstahl durante as gravações - Getty Images

Os atletas esfalfam-se em primeiro plano enquanto ao fundo a torcida se retorce e grita histericamente. “A massa aprecia o esforço, ela bebe o suor”: a observação de Baudelaire ganhava uma ilustração eloquente. A vitória é o apanágio de quem se sacrifica, e seu sofrimento é recompensado com coroa de louros e hino entoado pelos fracos.

Manipulação

A manipulação das imagens desempenhou papel importante no drama: Leni intercalou cenas ensaiadas com os atletas com as cenas ao vivo das provas, fazendo o público acreditar que tudo ocorrera tal como visto na tela.

Leni ainda fugiu da reportagem filmando as sombras dos esgrimistas e maratonistas de preferência à competição, extrapolando a realidade que deveria supostamente documentar. Neste sentido, a montagem mais brilhante é reservada para o final, quando as câmaras enfocam os nadadores saltando dos trampolins em ângulos inusitados, em ritmo mais lento que o normal, até que os saltos são interrompidos no seu vértice, sem que a queda seja mostrada; um salto seguido de outro, sem mergulhos, como se os nadadores se transformassem no ar em pássaros humanos a voar em direção ao sol, desafiando a lei da gravidade. Alguns historiadores atribuíram, sem provas, essa montagem a Walter Ruttmann.

Creio que Leni copiou a sequência dos saltos dos esquiadores nos Jogos Olímpicos de Inverno (cuja abertura ela acompanhou ao lado do Führer) do curta-metragem Juventude do mundo (Jugend der Welt, 1936), de Hans Weidemann, Carl Junghans e Herbert Brieger, editada da mesma forma: foi um plágio, sem dúvida.

Sob a justificativa de não poder saber de antemão quais esportes se destacariam pelos recordes, Leni fez seus cinegrafistas filmarem todas as 136 modalidades esportivas da competição, gastando 400 km de película, perfazendo 250 horas de projeção. Somente para ver todo esse material ela levou 10 semanas.

18 meses de trabalho

A montagem custou-lhe 18 meses de trabalho, com dedicação de 10 a 20 horas por dia, até reduzir os 400 km de copiões a 6.151 metros, somando quatro horas de filme, dividido, para exibição, em duas partes: Olimpíadas, Parte I: Festa dos Povos e Olimpíadas, Parte II: Festa da Beleza. Leni escolheu para o lançamento o dia do aniversário de Hitler: 20 de abril de 1938. O Führer não se furtou a receber seu presente comparecendo à gala no Ufa-Palast de Berlim.

As Olimpíadas integraram uma vasta campanha da propaganda para que o mundo admirasse in loco os progressos da Alemanha sob a ditadura racista de Hitler. A grande indústria venceu o movimento internacional de boicote a Berlim com a Coca-Cola tornando-se patrocinadora oficial dos Jogos; a Ovomaltine ganhou o direito de ser chamada “bebida oficial” dos atletas; e o turismo mundial superou a solidariedade às vítimas presas nos KZs. Segundo o atleta suíço Paul Martin, a Gestapo concedera aos atletas brancos na Vila Olímpica o acesso sexual a mulheres “arianas”, com o Estado se comprometendo a cuidar das crianças resultantes.

Olympia obteve imediato reconhecimento do Estado nazista e seus simpatizantes: ganhou o Prêmio do Estado Alemão das mãos de Goebbels; a Copa de Ouro no Festival de Veneza; a Medalha de Ouro na Feira Mundial de Paris. Embriagada com o sucesso, e acreditando que a América também a receberia em triunfo, Leni foi a Hollywood vender Olympia.

Desembarcou em Nova York após o pogrom da Noite de Cristal. Ninguém podia ignorar esse terror e a imprensa quis saber por que Leni apoiava um regime antissemita. Riefenstahl ficou furiosa, queria falar da festa dos Povos e da Beleza e não de judeus. Negou o pogrom. Tudo não passava de propaganda contra Hitler. Chocada com a alienação da diretora, Hollywood fechou-lhe as portas.

Mas Leni continuou sendo bajulada pelo COI, que, em 10 de junho de 1939, concedeu à cineasta, em Londres, o Diploma Olímpico. Ocupada em preparar as filmagens de Pentesileia, ela não foi receber a homenagem. Em setembro, convocada por Hitler para uma missão secreta – filmar a invasão da Polônia – ela rapidamente formou seu Esquadrão Especial de Filmagem e, envergando um uniforme de repórter-soldada, aventurou-se na guerra com entusiasmo, documentando a entrada das tropas nazistas em Danzig.

Crime de guerra

Chegando a Kronskie, contudo, presenciou um dos primeiros crimes de guerra da Wehrmacht: o massacre de 31 civis judeus por soldados alemães. Leni afirmou ter prestado queixa ao general encarregado e deixado o front, chocada com a crueldade da guerra. Na verdade, ela cumpriu sua missão até o fim e dirigiu impávida, como o revelaram fotografias descobertas na Polônia, a filmagem do desfile triunfal das tropas alemãs pelas ruas de Varsóvia. Mais tarde, quando da Ocupação de Paris, Leni enviou a Hitler um telegrama exaltando a invasão da França como a mais espetacular de suas conquistas.

Leni Riefenstahl ao lado de Hitler - Getty Images

Leni não podia mais ir para Londres receber seu prêmio. Com seu irmão Heinz, Riefenstahl fundou em 1940 uma nova empresa, a Riefenstahl Film, para produzir Tiefland financiada diretamente por Hitler. Como a ação do filme se passava na Espanha, para dar uma “cor local” às cenas, Leni desejou contratar ciganos autênticos que estavam, como os judeus, nos KZs. Leni entrou em contato com seus amigos da Alta Cúpula Nazista para autorizá-la junto ao comandante do campo de Maxglan a retirar 60 ciganos para figurarem em seu filme.

Leni os selecionou pessoalmente e, após as cenas, devolveu-os ao campo. Durante as filmagens, Riefenstahl adoeceu e se afastou momentaneamente da produção. Em 1944, casou-se com o major da Wehrmacht Peter Jacob. Comemorou o evento com Hitler no Obersalzberg, mas ficou chocada com o estado físico e mental do Führer. Logo seu pai morreu e seu irmão Heinz, enviado ao front oriental, caiu em batalha na URSS. Deprimida, Leni voltou às filmagens de Tiefland nos Estúdios Barrandov de Praga e o finalizou no apocalipse do ‘Terceiro Reich’.

Deixando as ruínas da Alemanha, Leni refugiou-se em Kitzbühel, em sua villa austríaca desenhada pelo arquiteto expressionista Alfons Wakde, para onde levou seu acervo de filmes. Foi logo encontrada e presa, em maio de 1945, pelo exército americano, mas não por ser importante colaborada do nazismo, e sim pela suspeita improvável de ser amante de Hitler. Liberada em 3 de julho de 1945, retornou a Kitzbühel, onde terminou de editar Tiefland. Em abril de 1946, o governo militar francês, mais duro com os colaboradores do nazismo que o governo americano, expulsou Leni do Tirol.

No verão de 1946, Riefenstahl se divorciou de Peter Jacob. Julgada e inocentada em dois processos, Leni foi condenada num terceiro, como colaboradora do nazismo. Mesmo assim, em 1948, nas primeiras Olimpíadas do pós-guerra, em Lausanne, Leni pode receber em mãos, das autoridades do COI, sua Medalha de Ouro.


*Luiz Nazario, Professor Titular de História do Cinema na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. O texto foi proporcionado pela StandWithUs Brasil, instituição que trabalha para lembrar e conscientizar sobre o antissemitismo e o Holocausto, de maneira a usar suas lições para gerar reflexões sobre questões atuais.