Alimentos com índices preocupantes de radiação chegaram ao país pouco tempo depois do desastre
Em 26 de abril de 1986, um dos quatro reatores da Usina Nuclear Chernobyl, que geravam energia para a Ucrânia, explodiu repentinamente. Pouco tempo depois, uma nuvem radioativa atingiu países distantes como Itália e Finlândia. A cidade de Pripyat teve que ser evacuada e possui uma zona de exclusão que permanece até hoje.
O episódio chocou o mundo e causou mais consequências do que se pode imaginar. A contaminação chegou ao resto da Europa rapidamente e, mesmo que soubessem dos impactos disso, o governo brasileiro inclusive importou toneladas de alimentos radioativos do continente, contaminados por Chernobyl.
A BBC News Brasil foi responsável por coletar relatórios e documentos que mostravam o que realmente aconteceu naquele período. Em uma crise durante o governo de José Sarney, o Plano Cruzado foi apresentado, contendo medidas econômicas que tinham como objetivo conter a inflação.
A ideia era congelar preços e aumentar salários, mas isso não estava dando certo, gerando problemas e rumores em todo o país: faltavam alimentos nas prateleiras. Conforme repercutido pela BBC, o então secretário especial de Abastecimento, José Carlos Braga, explicou na época em entrevista: "O governo também poderá importar produtos necessários que faltarem no mercado".
E foi exatamente isso que ele fez. Com a crise de desabastecimento, o Brasil importou toneladas de alimentos da Europa. O único problema? Bom, a alta taxa de radioatividade.
Edital radioativo
Um dia depois da tragédia de Chernobyl ter sido noticiada para o mundo todo, a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal) divulgou um edital que listava a compra de alimentos da Europa. 43 mil toneladas de leite em pó e 2,5 mil toneladas de manteiga seriam adquiridos no mercado externo e poderiam ajudar na crise.
Como o acidente nuclear ainda estava muito próximo, as autoridades estavam receosas em comprar os alimentos, com medo de eles estarem contaminados. Mas isso não durou muito. Mais ou menos dois meses depois, em 12 de junho, um novo edital foi lançado, contendo algumas especificidades.
Agora, os produtos poderiam ser importados da Europa, porém deveriam conter documentos oficiais que garantissem sua não contaminação. A licitação afirmava ainda que os itens seriam analisados pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) nos portos brasileiros e poderiam ser vetados a depender do resultado.
Chernobyl em solo brasileiro
Isso não funcionou muito bem na prática. Um mês depois do edital, uma reportagem publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo revelou que produtos contaminados, como leite adquiridos na Irlanda, apresentavam índices de radiação.
De acordo com um exame realizado pelo Instituto de Radioproteção e Dosimetria (IRD), ligado à CNEN, 3 mil das 20 mil toneladas de leite em pó fornecidas pela licitação apresentavam dados alarmantes de contaminação. O índice de césio-137 era ainda mais elevado que "em diversos países do Hemisfério Norte".
Ainda assim, o documento que mostrava o perigo do consumo do leite atestava que ele estava "apropriado para o consumo humano". Essa resolução fez com que os produtos fossem parar nas prateleiras dos mercados brasileiros.
Carne contaminada
O leite em pó, porém, não foi o único alimento contaminado por Chernobyl que chegou em solo brasileiro. Por volta de um mês depois da polêmica com o leite, 100 mil toneladas de carne bovina e suína chegaram ao país — destas, sete mil apresentavam contaminação por radiação. Diante da gravidade, os itens acabaram sendo proibidos de entrar em circulação pela justiça. Tudo foi estocado em frigoríficos localizados em Canoas, RS.
Além da possibilidade de ser vendida no Rio Grande do Sul, mercados apresentariam cartazes que alertavam os consumidores quanto à radioatividade da carne, ela também seria distribuída no Rio de Janeiro e em São Paulo, estados que contavam com a falta do produto. Uma ação da Justiça acabou por barrar a venda do alimento no país.
Mas ela não desapareceu simplesmente. Durante anos, o alimento esteve guardado em frigoríficos em uma cidade no sul do país até empresas decidirem transformá-lo em comida embutida. O destino dos produtos contaminados? Bom, é indicado que países do Caribe e África pudessem ter recebido o produto.
Apenas quase trinta anos depois o governo brasileiro admitiu que os alimentos poderiam causar danos às pessoas que entrassem em contato com os produtos ou os consumissem. A Justiça brasileira ainda fez com que um ex-funcionário do frigorífico recebesse indenização da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).