Apesar de estrangeiro, o vaidoso político ateniense conheceu de perto a glória, a inveja e o ostracismo
Quando questionado sobre o que queria ser quando crescesse, ainda na infância, Temístoclesrespondeu ao seu pai que desejava ser um político. Embora considerado estrangeiro pelos cidadãos de Atenas, chegou a ser um dos maiores estrategistas gregos. O historiador grego Plutarco, seu biógrafo, o descreveu como um homem “cheio de ímpeto, de natureza inteligente, capaz de grandes ações e inclinado à política”.
Hoje, a resposta que legiões de historiadores buscam é: como esse homem de sucesso, que chegou ao topo da carreira política e militar ateniense, sofreu tamanha derrocada, a ponto de ter que se humilhar e pedir asilo ao filho do seu antigo inimigo?
Nascido em 524 a.C. em Feriza, um anônimo vilarejo na periferia ateniense, Temístocles demonstrava uma astúcia fora do comum. Nos primeiros anos de vida, viveu em Cinosarges, distrito fora dos muros da cidade reservado aos imigrantes, o que limitava sua vida social. Um impedimento inaceitável para quem sempre almejou carreira política. Foi por isso que, ainda criança, conseguiu convencer os filhos de cidadãos atenienses proeminentes a se exercitarem com ele no templo de Hércules em Cinosarges, eliminando assim a distinção entre “estrangeiro e cidadão legítimo”, e já começando a se preparar para a vida pública.
Temístocles tinha a capacidade de decifrar rapidamente e com lucidez o cenário político local e internacional, arquitetando as melhores soluções para os problemas e os desafios, agindo de forma similar à do estadista ateniense e conterrâneo Péricles, arauto da democracia e seu futuro absolvidor.
A trajetória de ambos tinha muito em comum e se encontraria em alguns momentos, mas havia diferenças básicas entre eles: Péricles, que governaria Atenas entre 460 e o 429 a.C., era filho de família tradicional da cidade-estado grega, curiosamente apoiador da democracia, algo muito incomum entre os nobres atenienses da época.
Temístocles era um nòthos, homem de estirpe mista, filho de mulher não ateniense e homem que tinha enriquecido e conquistado posição social graças ao trabalho, o que não era muito bem-visto na sociedade grega da época, por ser tarefa relegada aos escravos. Péricles era tímido e pouco amante dos aplausos e das grandes multidões, enquanto Temístocles os adorava e os procurava, embora nunca tenha sido acusado de populismo em toda a sua carreira pública.
Depois de anos sombrios de tirania, em 508 a.C. Atenas foi investida de uma grande ebulição política, provocada pelas reformas de Clístenes, que deu aos cidadãos de todas as classes sociais um peso maior no governo da cidade . As pessoas comuns consideravam Temístocles, que fazia parte do grupo que defendia a democracia, um homem do povo, e foi assim que a ecclesia, a assembleia geral dos atenienses, o elegeu como arconte epônimo, o cargo mais importante entre os nove magistrados nomeados todos os anos para governar a cidade.
Como arconte, Temístocles estreou uma política marítima com a expansão do porto do Pireu, na convicção de que aquela baía com três angras fosse muito mais adequada para hospedar uma grande frota naval militar do que Falero, o porto até então utilizado pelos atenienses, que nada mais era do que uma pequena praia.
Atenas não possuir naquele momento uma frota militar era somente um detalhe que o audacioso jovem de 31 anos, em breve, resolveria. E para obtê-la ele estava disposto a tudo, até a colocar em risco a própria carreira desafiando a opinião pública.
Em 483 a.C. propôs que os atenienses utilizassem os ganhos das minas de prata recém-descobertas perto da cidade para construir navios de guerra. A proposta gerou um duríssimo conflito com Aristides, seu adversário político, que propunha dividir a prata entre os cidadãos. Muito persuasivo, sua justificativa era “Nossa cidade precisa da frota para derrotar os eginetos”. Embora ousada e arriscada, a manobra deu certo.
“Temístocles é sem dúvida o político que transformou Atenas de potência terrestre em uma potência naval, permitindo assim sua hegemonia nas décadas seguintes”, diz Anna Ramou-Hapsiadi, professora de História Antiga da Universidade de Atenas, em entrevista ao site da AH. Ele foi o homem que conseguiu fazer a cidade olhar em direção ao mar.
“Seu projeto político apontava para a grandeza de Atenas, e ele o perseguiu com uma lúcida inteligência. Acreditava que os persas tentariam novamente invadir a Grécia, e dessa vez com uma frota muito mais poderosa. Por isso sempre lutou para que Atenas se tornasse uma grande potência naval. Nesse caso não somente demonstrou ser um gênio da estratégia, que podia prever o futuro, mas também posicionou as bases para a formação do império naval ateniense nos anos seguintes”, explica o professor Barry Strauss, chefe do Departamento de História da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, e autor do livro 'A Batalha de Salamina', publicado no Brasil pela Editora Record.
Construir mais navios significava também criar mais trabalhos para carpinteiros, marinheiros e remadores, recrutados entre as fileiras dos tètes, que formavam a classe social mais baixa e colocada às margens da vida política de Atenas. Graças a Temístocles, os tètes conquistaram uma relevância jamais vista na História da cidade, o que ajudou na ascensão popular de Temístocles.
Logo, os tètes começaram a reivindicar um maior peso político na cidade, colaborando para que Atenas se tornasse uma verdadeira democracia inclusiva. Essa dialética social provocou a evolução do sistema político ateniense, até então dominado pela oligarquia, através das sucessivas reformas de Efialtes e de Péricles.
Foi Péricles que concretizou a participação direta na administração da cidade para todos os cidadãos atenienses, estabelecendo, por exemplo, que a atividade política fosse retribuída com um salário mínimo, e permitindo assim a ascensão de classes mais humildes para cargos públicos mais altos. Mas as raízes profundas dessa mudança estão na política levada adiante por Temístocles anos antes.
Alguns contemporâneos do general ateniense, como Platão, condenaram a mudança por ser excessivamente revolucionária. Plutarco, mais pragmático, reconheceu que a medida que salvou Atenas, a Grécia e, portanto, o Ocidente inteiro, da invasão persa foi construir mais navios militares, envolvendo todas as camadas da população da cidade. Uma decisão pela qual Temístocles lutou intensamente.
“Temístocles era um grande estrategista e tinha visão revolucionária. Sua convicção de que Atenas teria que se tornar uma grande potência naval e que o porto do Pireu tinha que ser potenciado provocaram uma verdadeira transformação social na cidade-estado grega. Entretanto, não é possível afirmar que o objetivo dele fosse prioritariamente melhorar as condições do povo. Ele simplesmente usou os cidadãos mais humildes e Atenas para realizar concretamente seu grande projeto político e militar”, relata P. J. Rhodes, professor emérito de História Antiga da Universidade Durham, no Reino Unido, e autor de várias obras sobre o tema.
Em 481 a.C. o soberano persa Xerxes atravessou o Estreito de Dardanelos com 1,7 milhão de homens e 80 mil cavaleiros, começando a Segunda Guerra Greco-Persa. Seguia os passos de seu pai, Dario, o Grande, que nove anos antes ameaçou a Grécia inteira após ter derrotado as cidades gregas da Ásia Menor.
Naquela ocasião, as forças de Dario arrefeceram na Batalha de Maratona, em 490 a.C., derrotadas pelas tropas atenienses lideradas por Milcíades. Essa grande vitória militar infligiu um golpe histórico não somente nas ambições de conquista da Pérsia mas também no orgulho de Temístocles. “O troféu de Milcíades não me deixa dormir”, respondia a quem lhe pedia explicações sobre seu mau humor.
Mas dessa vez, com a segunda tentativa de invasão persa, ele não deixaria escapar sua fatia de glória. “Somente um muro de madeira permanecerá de pé”, havia previsto a sacerdotisa do Oráculo de Delfos aos atenienses que a questionaram sobre o destino da cidade ameaçada por Xerxes. Temístocles usou mais uma vez sua proverbial astúcia e convenceu os compatriotas de que o muro de madeira citado pela sacerdotisa era uma metáfora dos navios atenienses que ele comandava. Assim, aumentou a frota e ordenou que todos os atenienses hábeis para a luta embarcassem. A realidade dos fatos, entretanto, parecia remar contra o estratego (designação dos generais gregos).
Aproveitando a falta de defesas na cidade, em setembro de 480 a.C., os persas conquistaram Atenas e chegaram a queimar a Acrópole. Naquele momento o desespero tomou conta dos comandantes das frotas helênicas. A destruição da cidade líder da aliança antipersa quase levou ao fim da união das forças gregas e à derrota total. Mais uma vez, a habilidade de Temístocles salvou a situação. Os gregos foram convencidos a não abandonar suas posições em frente à ilha de Salamina.
O líder ateniense usou um estratagema para levar os persas a uma armadilha. Ordenou ao tutor de seus filhos ir até o acampamento de Xerxes passando-se por um traidor e mentisse para o soberano persa, dizendo que os gregos estavam fugindo aterrorizados e, portanto, era o momento certo para atacá-los. Os persas caíram em cheio na armadilha e atacaram a frota grega em frente à ilha de Salamina, mas não puderam fazer valer sua superioridade numérica, pois os gregos estavam prontos para o combate. Os persas foram derrotados.
“A batalha de Salamina foi uma vitória total para os helênicos, a mais importante para a Grécia e o Ocidente. Ainda hoje é lembrada como um dos confrontos militares que mudaram o rumo da História, pois foi o ponto de virada da guerra e forçou os persas a se retirarem. Não foi a batalha final da guerra — Plateia foi o último confronto, e o triunfo lá foi dos espartanos —, mas com certeza foi o símbolo da vitória grega e da potência ateniense”, salienta o professor Strauss.
Embora o êxito em Salamina tenha sido louvado em todo canto, em Atenas os cidadãos começaram a desconfiar de Temístocles. Os méritos da vitória — salientavam — eram da cidade inteira, não somente dele, que se gabava do feito, e na Grécia Antiga a vaidade não era apreciada. Ele passou, então, a gerar ciúme entre seus compatriotas. E os nobres consideravam suas reformas perigosas para a estabilidade social da cidade-estado.
Temístocles foi ignorado e tratado friamente por cerca de um ano, até que os atenienses precisaram dele novamente. Quando a reconstrução de Atenas começou, uma delegação espartana se apresentou para vetar a reedificação dos muros de proteção em volta da cidade. Se Atenas não obedecesse à ordem, seria atacada pelas poderosas forças espartanas, num momento de fragilidade, em que a cidade estava em ruínas e com poucos homens preparados para a luta, sem muros e sem defesa.
“Temístocles enviou embaixadores a Esparta com a missão de negociar. Foi uma forma de ganhar tempo, o suficiente para terminar a construção dos muros. Então decidiu reivindicar abertamente o direito de Atenas de ter o próprio sistema defensivo, desafiando a cidade rival”, diz a professora Ramou-Hapsiadi.
Temístocles aproveitou a ocasião também para completar definitivamente a fortificação em volta do porto do Pireu e de levar até o fim “ambiciosos projetos, que melhorassem a posição dominante de sua cidade”. Ele trabalhou para tirar de Esparta o papel de superpotência da Grécia antiga. Os espartanos não gostaram nada disso, e, para tentar eliminar sua incômoda figura política, apoiaram a carreira do nobre ateniense Címon, rival declarado de Temístocles, filoespartano e defensor de uma política de colaboração com a cidade rival.
Foi o começo do fim para Temístocles. Entre os anos 474 e 470 a.C. a assembleia popular ateniense, incitada por seus inimigos, mandou-o para o ostracismo, votando seu afastamento da cidade por uma década. Mas a perseguição não se limitou a isso. Entre 471 e 466 a.C. seus adversários políticos conseguiram processá-lo por medismo, ou seja, por colaborar com os persas. Uma acusação considerada falsa pela maioria dos historiadores modernos. Entretanto, Temístocles foi condenado e perseguido por atenienses e por espartanos. Foi obrigado a fugir e, para salvar sua vida, o estratego se refugiou no reino de seu inimigo número um: a Pérsia.
Artaxerxes, filho de Xerxes e seu sucessor ao trono, gostou de acolher Temístocles em seus domínios. Convencido de que este se tornaria útil no futuro, e provavelmente impressionado por suas capacidades políticas e militares, nomeou-o governador do distrito de Magnésia, na Ásia Menor, onde o ateniense distinguiu-se na administração. Ele não somente aprendeu a língua persa e os costumes locais como também recebeu uma rica pensão vitalícia do rei.
“Pode parecer bizarro o fato de os persas acolherem um inimigo como Temístocles. Entretanto, uma das razões que os tornaram ‘imperialistas de sucesso’ foi a abertura das portas para os refugiados, especialmente os de alto nível. Temístocles não foi o primeiro grego a ser acolhido. Isso já havia acontecido, por exemplo, com o rei de Esparta Demarato. Mas Temístocles foi um caso extremo, pois era de longe o grego que mais trouxe prejuízos aos persas. A primeira reação, portanto, poderia ter sido eliminá-lo. Mas a boa relação que o ateniense manteve com os funcionários persas de alto escalão, mesmo durante a Segunda Guerra Greco-Persa, com certeza o salvaram”, explica o professor Strauss.
Temístocles morreu doente aos 65 anos. Fim da história, segundo alguns historiadores modernos. Entretanto, a versão mais épica de seu fim conta que o herói de Salamina se suicidou bebendo sangue de touro, considerado veneno letal pelos antigos. Ele teria escolhido a morte para não ser obrigado a trair seus compatriotas atenienses, que naquele momento apoiavam a rebelião do Egito contra a Pérsia.
Seus restos mortais voltaram à Ática, e, graças aos esforços retóricos de Péricles, Temístocles foi reabilitado como o “herói democrático” de Atenas, reconhecido como o homem que se opôs aos interesses oligárquicos da classe aristocrática, oferecendo pela primeira vez um papel social ativo aos mais pobres. Os mesmos que, depois de usufruírem de seus poderes, o abandonaram, como a carcaça de um barco velho.
Após a Segunda Guerra Greco-Persa, Atenas fundou em 478 a.C. a Liga Délio-Ática, ou Liga de Delos, uma aliança marítima liderada pela cidade-estado que unia as frotas militares das ilhas do Mar Egeu e das cidades litorâneas da Ásia Menor. A Liga, filha da política de Temístocles e de sua vontade de dar a Atenas maior poder no Hélade, surgiu com o objetivo explícito de eliminar as últimas ingerências persas na Grécia, e o velado de tirar de Esparta a liderança grega.
No começo, cada comunidade tinha que entregar um tributo para o tesouro federal, proporcional aos seus recursos. Depois as coisas mudaram. Após a vitória de Címon, filho de Milcíades, na batalha de Eurimedonte contra os persas, em 470 a.C., o tesouro e o conselho foram transferidos para Atenas. De aliança de cidades livres, a Liga se transformou em um império submisso à cidade de Temístocles. Os aliados se tornaram súditos e os tributos, uma pesada taxa. Mudou também o objetivo. Não era mais a guerra contra a Pérsia, mas contra Esparta. O conflito começou em 431 a.C., e quando terminou, em 404 a.C., com a derrota de Atenas, a Liga foi dissolvida.
Após o fim da tirania de Pisístrato e a caçada de seus dois filhos, Hípias e Hiparco, os atenienses rejeitaram o governo oligárquico de um pequeno número de aristocratas. Acolheram a reforma constitucional de Clístenes, membro da importante família dos Alcmeônidas, entre os primeiros a se posicionarem abertamente contra a tirania.
Todos iguais: o novo modelo de governo era baseado no princípio da isonomia, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, o direito de voto universal para todos os atenienses maiores de 18 anos e filhos de pai e mãe atenienses (mulheres, estrangeiros e escravos eram excluídos) e ocupação dos mais diversos cargos públicos por eleições e sorteios, independentemente do critério de renda.
Os cidadãos foram divididos territorialmente em dez tribos, cada uma formada por membros das montanhas, das colinas e do litoral. Esse sistema acabou com as divisões sociais e as lutas internas na cidade-estado, fortalecendo e compactando sua sociedade.
Clístenes revolucionou também o asseto constitucional, criando um novo órgão deliberativo, Bulé, ou “Conselho dos Quinhentos”, composto de 50 membros de cada tribo, extraídos à sorte, independentemente das condições econômicas.
Os cargos públicos eram também entregues na base das classes e do censo introduzido quase um século antes por Sólon. Mas agora era a Bulé que tinha a última palavra sobre o trabalho dos arcontes, os magistrados e Atenas.
Por suas amplas reformas políticas, Clístenes é considerado o pai da democracia ateniense. Entretanto, para proteger o novo regime, ele instaurou o ostracismo, o sistema que dava direito aos cidadãos de mandar para o exílio aqueles que colocassem a democracia em risco. E muitas vezes essa ferramenta acabou sendo manipulada e usada por resolver batalhas políticas de forma rápida e muito pouco democrática.