Autobiografia escrita por Adolf Hitler caiu em domínio público em 2016 e, desde então, editoras vivem um verdadeiro dilema
Como noticiado pela equipe do site do Aventuras na História, a editora Fayard anunciou no mês de maio que publicaria uma “edição crítica” do livro Mein Kampf, a autobiografia de Adolf Hitler.
Intitulado “Historicizar o mal, a edição crítica de Mein Kampf”, a obra passou a estar disponível no início desse mês, porém, as livrarias que quisessem comerciá-lo, precisariam fazer encomenda com a editora — que desde o início optou por uma distribuição restrita.
Além disso, a Fayard também anunciou que a Fundação Auschwitz-Birkenau, encarregada de preservar a memória do célebre complexo de extermínio, vai receber parte do valor das vendas.
Ao todo, a edição crítica possui cerca de mil páginas, das quais um terço é o texto original escrito pelo ditador alemão e o restante são análises de uma equipe liderada pelo renomado historiador Florent Brayard.
Diante dos horrores que marcam a história do nazismo, a notícia passou a ser alvo de polêmicas por dois pensamentos distintos: daqueles que acreditam que o Mein Kampf é um importante livro histórico e, sendo assim, fundamental ser estudado; e outros que acreditam que o escrito de Hitler possa ser, ainda hoje, usado como propaganda antissemita.
Para Silvia Bittencourt, jornalista, tradutora e autora de “A Cozinha Venenosa – Um Jornal contra Hitler” (Três Estrelas), um estigma em volta do Mein Kampf precisa ser quebrado. “Escrito em meados dos anos 20, antes de Hitler subir ao poder, o livro mostra que ele defendia, desde o início de sua carreira política, ideias antissemitas, racistas e expansionistas. Por isso o livro é uma fonte histórica muito importante para quem estuda o nazismo”, explica.
“Por outro lado, é um livro mal escrito, repetitivo e cheio de erros factuais. Acho então importantíssimas as chamadas 'edições críticas', completa a historiadora. A visão é compartilhada por Carlos Reiss, Coordenador-Geral do Museu do Holocausto de Curitiba, que defende que, em pleno século 21, “a obra só é capaz de convencer àqueles predispostos”.
“De acordo com muitos historiadores e autoridades alemãs, os neonazistas encontram nessas páginas poucos elementos com os quais se identificam”, completa.
Em 2016, o Mein Kampf caiu em domínio público — até então, os direitos da autobiografia do Führer pertenciam ao estado da Baviera, que sempre se recusou em republicá-lo.
Segundo explica Carlos, “o governo inclusive defendia que, excepcionalmente, os direitos não caíssem em domínio público, pois temiam uma onda de edições que poderia provocar um crescimento de grupos nacionalistas de extrema-direita com ideias neonazistas”.
Pensamentos semelhantes foram debatidos por aqui nesse mesmo ano. Como explica o PublishNews, portal dedicado a cobrir o mercado literário nacional, ao menos três editoras planejavam lançar uma edição traduzida da obra em 2016.
Porém, parte da comunidade judaica, que temia que obras ‘cruas’ do livro fossem publicadas, entrou com um pedido na Justiça para que isso não ocorresse.
“Existe no Brasil uma legislação que veda a divulgação de temas racistas e antissemitas. Estamos estudando maneiras de garantir isso’’, declarou Paulo Maltz, presidente da Federação Israelita do Rio de Janeiro (Fierj) e vice-presidente da Confederação Israelita Brasileira (Conib), ao periódico alemão Deutsch Welle.
Destas, apenas a Geração Editorial decidiu seguir com o lançamento que, além da íntegra do texto traduzida direto do alemão por William Lagos, incluiria 305 notas e apêndices originalmente publicados na edição norte-americana de 1939.
Além disso, comentários críticos de Luiz Fernando Emediato, publisher da Geração Editorial, e dos professores Nelson Jahar Garcia e Eliane Hatherly Paz também seriam incluídos. Mesmo assim, a Justiça proibiu sua comercialização.
Mas, afinal, lançamentos críticos não podem se tornar importantes objetos de estudo? Sílvia acredita que sim, mas faz um adendo: “Se as edições forem comentadas, certamente ajudam a enquadrar o Mein Kampf dentro de um contexto e, assim, compreender melhor o nazismo”.
A historiadora relembra que, ainda em 2016, uma edição de duas mil páginas e 3.700 notas de rodapé foi publicada na Alemanha. Com o preço de 60 euros, a edição se tornou um best-seller. “Mas certamente não foi comprada ou usada como propaganda por neonazistas”.
Outro ponto levantando é que as proibições não garantem que o livro não será lido por quem deseja consumi-lo. “O livro pode ser encontrado, sem muitas dificuldades, em edições antigas ou na internet, em qualquer idioma”, diz Reiss. “Por isso, historiadores concordam que a estratégia de silenciá-lo não faz sentido”.
Bittencourt concorda que fazer qualquer discurso de ódio deve ser proibido e criminalizado — o que vale para declarações antissemitas, racistas, homofóbicas, entre outros. Porém, no caso do Mein Kampf, um livro escrito há quase um século, isso já não faz muito sentido em sua visão. "A proibição só ajuda a chamar a atenção".
“Inúmeros documentos e discursos (sejam de Hitler ou de outros membros do alto escalão nazista, como Himmler, Göring e Goebbels), até mais veementes e incitadores da discriminação, da violência e do extermínio do povo judeu, são publicados livremente e usados como fonte de pesquisa e estudo em todo o mundo. E não são censurados. Porque só o ‘Mein Kampf’ seria?”, questiona o Coordenador-Geral do Museu do Holocausto de Curitiba.
A escritora acredita que a história não se repete e que os crimes cometidos por Hitler são únicos, mas entende que é sempre fundamental ficarmos em alerta. “O nazismo sempre renderá estudos, o que é muito bom para compreendermos suas origens, sua evolução e a monstruosidade daquele regime. E nesses estudos incluo as edições comentadas do Mein Kampf, que vieram esclarecer ainda mais o que está por trás deste texto panfletário”.
Carlos também crê nisso, que a autobiografia do ditador alemão não pode ser vista apenas como um texto racista, preconceituoso e discriminatório — o que ele definitivamente é —, mas também como um documento histórico para as novas gerações.
“Fala-se tanto em ‘lembrar’, ‘não esquecer’, ‘Holocausto nunca mais’... e isso só será possível se realmente lembrarmos. O livro é uma forma eficiente de lidar com o nazismo de forma racional — e não sentimental —, de educar e de mostrar o quão absurdas eram essas ideias. Ele precisa ser estudado e comentado de forma metodologicamente séria; enfim, lembrado. Assim se educa”, diz.
Para Reiss, o clamor pela censura só se justifica por uma visão limitada da História. “Não se cura ódio com ódio. Se cura com educação, com ciência, com transmissão de lições morais e éticas. Defender a censura é uma jogada política equivocada”.
Por fim, justifica que o fim dos direitos autorais do ‘Mein Kampf’, mais do que a possibilidade de ser publicado, é uma oportunidade para que esse texto seja difundido legalmente, estudado, compreendido e usado na luta contra o racismo e o antissemitismo.
“O historiador Nélson Jahr Garcia disse que o Mein Kampf foi a melhor obra já escrita contra o próprio Nazismo: ‘quanto mais se conhecer, maior se tornará o repúdio e aversão’”.
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