Em tratado, de 1543, teólogo defende a perseguição de judeus; prática que serviu de 'inspiração' por nazistas durante a Segunda Guerra
No início de sua carreira, Martinho Lutero, cujo nascimento completa 539 anos neste 10 de novembro, era, aparentemente, solidário em relação à resistência judaica à Igreja Católica. No entanto, o religioso esperava que os judeus se convertessem ao movimento protestante. Como eles não fizeram, o monge agostiniano se voltou violentamente contra o povo.
A raiva e desgosto de uma das figuras centrais da Reforma Protestante foi registrada no livro 'Sobre os judeus e suas mentiras', tratado escrito pelo teólogo em janeiro de 1543. Na escrita, Martinho defende a perseguição de judeus; a queima de sinagogas e escolas judaicas; a destruição de bens religiosos; a proibição de rabinos pregarem e o confisco de dinheiro.
Esses vermes envenenados e venenosos devem ser recrutados para trabalhos forçados ou expulsos de uma vez por todas”. O religioso também parece incitar o assassinato dos judeus aos escrever: “temos culpa em não matá-los”.
No tratado, Lutero diz que aqueles que aderem ao judaísmo “devem ser considerados como sujos” e que eles são “cheios de fezes do diabo... que chafurdam como um porco”. O protestante também afirma que a sinagoga é um “prostíbulo incorrigível”.
“Queime suas sinagogas. Negue a eles o que disse anteriormente. Force-os a trabalhar e trate-os com toda sorte de severidade… são inúteis, devemos tratá-los como cachorros loucos, para não sermos parceiros em suas blasfêmias e vícios, e para que não recebamos a ira de Deus sobre nós. Eu estou fazendo a minha parte”, diz um trecho da obra.
“Resumindo, caros príncipes e nobres que têm judeus em seus domínios, se este meu conselho não vos serve, encontrai solução melhor, para que vós e nós possamos nos ver livres dessa insuportável carga infernal — os judeus”, vocifera em outra passagem.
O tratado de Lutero ainda gera inúmeras controversas, principalmente pelas influências antissemitas que ele, de certa forma, exerceu na doutrina racista do regime nazista de Adolf Hitler.
Durante a Segunda Guerra Mundial, cópias do livro foram exibidas pelos alemães em comícios e reuniões em Nuremberg, e o consenso acadêmico predominante é que o livro teve um impacto significativo no Holocausto. Julius Streicher, editor do jornal nazista Der Stürmer, descreve a obra como o tratado mais radicalmente antissemita já publicado.
“Embora [Lutero] se rebelasse contra a autoridade religiosa, poderia ser extremamente intolerante com quem dele discordasse em assuntos religiosos. Possivelmente foi devido em parte à sua intolerância o fato de as guerras religiosas terem sido mais ferozes e sangrentas na Alemanha do que, digamos, na Inglaterra. Além disso, Lutero era feroz antissemita, tendo, talvez, a extraordinária virulência de seus escritos sobre os judeus preparado o caminho para o advento de Hitler na Alemanha do século 20”, explica o historiador Michael H. Hart.
Lutero foi considero por Hitler, em seu Mein Kampf, como uma das três principais figuras da Alemanha — ao lado de Frederico, o Grande, e Richard Wagner.
Os escritos posteriores de Lutero, atacando os judeus, eram tão virulentos que os nazistas os citavam frequentemente”, explicam Dennis Prager e Joseph Telushkin no livro Why the Jews? (Por Que os Judeus?, em tradução livre).
Em contraponto a essa visão, o teólogo Johannes Wallmann escreve que o tratado não teve continuidade de influência na Alemanha e foi de fato amplamente ignorado durante os séculos 18 e 19.
Já Hans Hillerbrand corrobora ao argumentar que focar no papel de Lutero no desenvolvimento do antissemitismo alemão é subestimar “a mais grande peculiaridade da história alemã”.
Por fim, é certo explicar que, desde a década de 1980, alguns órgãos da Igreja Luterana denunciaram formalmente o escrito e buscaram dissociar o tratado de Lutero sobre os judeus de sua doutrina.
No 60º aniversário de Kristallnacht, a Igreja Luterana da Baviera, que ocorreu em novembro de 1998, a entidade emitiu uma nota afirmando que “é imperativo para a Igreja Luterana, que sabe que é endividada ao trabalho e a tradição de Martinho Lutero, de levar a sério também as suas declarações antijudaicas, reconhece a sua função teológica, e reflete nas suas consequências. Temos que nos distanciarmos de cada [expressão de] antissemitismo na teologia Luterana”.