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Matérias / EUA

Neil Armstrong: O modesto pioneiro do espaço

A vida discreta do primeiro humano, que, após pisar na Lua há 50 anos, fugiu dos holofotes pelo resto da vida

Fernando Duarte Publicado em 20/07/2019, às 00h00 - Atualizado às 13h00

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Em 1969, posando para o photoshoot da missão - Getty Images
Em 1969, posando para o photoshoot da missão - Getty Images

Início da década passada, uma sorveteria de Yellow Springs, vilarejo do estado norte-americano de Ohio. Um septuagenário, acompanhado de um amigo um pouco mais novo, compra duas casquinhas e sai caminhando tranquilamente. Os outros clientes não se dão conta. Mas acabavam de dividir o balcão com uma das únicas pessoas capazes de dizer que viram outro mundo. Mais que isso, estiveram ao lado do primeiro homem a realizar o feito. Àquela altura da vida, passar despercebido era o sonho de Neil Armstrong, o astronauta que em 1969 pisou na Lua.

"Neil fez questão de viver o mais discretamente possível depois da missão. Diferentemente de outros astronautas de seu tempo, ele não se viu tentado a virar celebridade ou a explorar a fama", explica James Hansen, autor da biografia Armstron (O Primeiro Homem, de 2005) e que o acompanhava na ida à sorveteria, no intervalo de umas das sessões de entrevistas para o livro.

Praticamente do momento em que foi içado da cápsula Apollo 11 no Oceano Pacífico, em 1969, até sua morte, em 2012, Armstrong lutou para ter uma vida o mais ordinária possível diante do impacto de sua participação naquela experiência de uma vida humana num outro corpo celeste.

Durante a Apollo 11 / Crédito: Wikimedia Commons

E uma experiência que foi, a exemplo do já decoradíssimo pronunciamento feito por ele mesmo ao desembarcar na superfície lunar, um gigantesco passo para a humanidade. "Neil obviamente tinha ideia do furor que a missão teria junto ao público, mas acho que ainda assim ele se assustou um pouco com a intensidade da repercussão", diz Hansen em entrevista a Aventuras na História "O endeusamento dos astronautas era algo que ele considerava especialmente incômodo, por considerar injusto diante de todo o esforço coletivo no Projeto Apollo."

Ao contrário de seus dois companheiros de viagem, Michael Collins e Edwin Buzz Aldrin, Armstrong nunca pareceu atraído pelo lado heroico da empreitada. No início da década de 1960, enquanto os dois colegas mostraram-se obcecados com a chance de se juntar à então recém-fundada Nasa, o homem que se tornaria o comandante do mais famoso voo espacial se deu ao luxo de perder o prazo de inscrição para o programa de treinamento de astronautas - Dick Day, que trabalhava na agência espacial americana e tinha convivido com Armstrong na Força Aérea, foi quem misturou o formulário aos que chegaram dentro do prazo.

Corrida maluca

Sem a intervenção de Day, Armstrong poderia nem sequer ter servido à Nasa, muito menos pisado na Lua. Tentador, então, pensar em predestinação, mas o fato é que a trajetória entre o rigoroso exame médico de admissão e a entrada  no Apollo 11 foi tão imprevisível quanto o sucesso da missão interplanetária. Se em tempos mais recentes o programa espacial americano deixou claros os riscos envolvidos, esses eram ainda maiores numa década em que o auge da Guerra Fria detonara uma corrida entre e os Estados Unidos e União Soviética pela supremacia tecnológica e psicológica.

Armstrong e cia. vinham perdendo feio: os soviéticos não tinham lançado o primeiro satélite (o Sputnik, em 1957) e levado o primeiro homem (Yuri Gagarin, em 1961) e a primeira mulher (Valentina Tereshkova, 1963) ao espaço, como pousado a sonda Luna 9 na Lua em 1966. Garantir antes de Moscou a presença humana no satélite natural terrestre tinha virado questão de Estado para Washington, com direito a promessa, em 1962, do então presidente americano John F. Kennedy, que num de seus famosos discursos prometera colocar um homem na Lua até o final da década.

Não bastasse a pressão geopolítica, a Nasa enfrentava os obstáculos tecnológicos. O anúncio de Kennedy deu início a uma busca frenética por soluções. A complexidade da tarefa era assustadora, e cientistas passaram o ano inteiro discutindo a melhor forma de chegar ao satélite. Soluções como um voo à la Tintin, usando um imenso foguete para pousar, foram debatidas. Mas, mesmo quando se chegou à conclusão de que a solução mais viável era lançar módulo de comando e veículo de descida embalados juntos para uma desacoplagem em órbita lunar, havia a imensa questão de que tal operação jamais tinha sido realizada.

Sendo assim, não é exagero dizer que o desenvolvimento dos projetos rumo à Lua foi feito na marra, com imprevistos e acidentes. O mais famoso e terrível deles, o incêndio que em 1967 matou a tripulação da Apollo 1, da qual fazia parte Ed White - o mais próximo que Armstrong tinha de um amigo na Nasa e que três anos antes o havia ajudado a salvar mulher e filhos do fogo que destruíra a residência dos Armstrong, levando junto as fotos de Karen, a filha que o astronauta vira morrer em 1962, em decorrência de um tumor no cérebro.

E o próprio Armstrong seria o personagem de uma quase tragédia em 1966. A bordo de sua primeira missão, a Gemini 8 (precursora do Programa Apolloe que fez testes fundamentais sobre comportamento de máquinas e astronautas no espaço), ele precisou abortar um ensaio de acoplagem depois de uma falha no acelerador ter feito a espaçonave girar perigosamente a esmo. Na tentativa de reassumir o controle, Armstrong e o copiloto, David Scott, gastaram uma quantidade preciosa de combustível para o reentrada na atmosfera terrestre e tiveram que fazer um pouso de emergência nas imediações do arquipélago japonês de Okinawa.

Embora não tenha sido exonerado pelo alto comando da Nasa, Amstrong recebeu censuras veladas de colegas e temeu não ser mais mandado ao espaço. Walt Cunningham e Tom Stafford desaprovaram publicamente a maneira como ele lidara com a situação na Gemini 8.

Mas estudiosos discordaram da avaliação. "Controlar a espaçonave quando ela estava girando a ponto de fazer os pilotos desmaiarem foi heroico", afirma Ben Evans, historiador britânico e autor de diversos livros sobre o programa espacial americano. "Temos que lembrar também que os dois realizaram a primeira acoplagem espacial da história. E, se não tivesse abortado a missão, poderia ter-se chegado à conclusão errônea de que o uso de dois módulos era problemático por natureza. Isso teria atrasado o Programa Apollo em anos", ele avalia.

Armstrong não esperava que fosse fazer tanta história / Crédito: Wikimedia Commons

Armstrong já havia flertado com a morte outras vezes. Ainda como piloto da Marinha na Guerra da Coreia (1950-1953) precisou se ejetar durante uma das 78 missões de que participou no conflito, depois de ter seu caça avariado. Em testes da Força Aérea, envolveu-se numa série de incidentes em voos com os aviões-foguetes X15. E, em exercícios de simulação do pouso lunar, escapou ileso de um grave acidente.

Em todos esses episódios chamou atenção a calma demonstrada pelo piloto, e essa frieza sob pressão valeu a ele vantagem na hora de sua escolha como comandante da Apollo 11. Mas a decisão que lhe garantiu esse papel foi um pouco mais complicada. O protocolo de missões da Nasa até então determinava que o segundo em comando é quem realizava atividades como as caminhadas espaciais. Muita gente acreditava que Buzz Aldrin teria a honra de ser o primeiro homem a pisar na Lua. Incluindo o próprio tripulante da Apollo 11.

A escolha 

No entanto, Armstrong foi o escolhido pela Nasa, num anúncio oficial feito em março de 1969. Na época, a mídia americana imediatamente especulou que a decisão tinha base no fato de ele ser civil, enquanto Aldrin era formado na academia militar de West Point. Em termos de relações públicas, a troca de nomes marcaria pontos para a agência espacial em meio às desventuras americanas na Guerra do Vietnã (1959-1975).

"Buzz nunca escondeu de ninguém que queria ser o primeiro no solo lunar", escreveu em suas memórias Chris Kraft, um dos chefes de missão do Projeto Apollo. Não foi a primeira vez que Aldrin esperneou, reação nunca bem-vista pelos chefões da Nasa. Porém, além da aura de seriedade e tranquilidade irradiada por Armstrong, dois fatores pesaram decididamente a seu favor.

O primeiro, a senioridade. Ele tinha entrado para a Nasa antes de Aldrin. A segunda foi bem mais mundana: o módulo lunar foi projetado de forma que sua escotilha abria para dentro, bloqueando a saída do piloto (Aldrin), que precisava esperar a passagem de quem viajava a seu lado. Armstrong também era um garoto- propaganda muito mais interessante para a Nasa. Sem o berço privilegiado de seu companheiro de voo, ele nasceu em 5 de agosto de 1930 em Wapakoneta, vilarejo de Ohio. Filho de Stephen Armstrong, um auditor do governo estadual, e de da dona de casa Viola, era o mais velho de três filhos.

A paixão de Armstrong pelos ares começou ainda aos 5 anos de idade, quando o pai o levou para dar uma volta num Ford Trimotor (aeronave conhecida como Ganso Metálico), numa feira aeronáutica. Aos 14 anos, Neil já tinha juntado dinheiro para as primeiras lições de pilotagem e, dois anos mais tarde, antes até de tirar carteira de motorista, já tinha feito voo solo.

Aos 17 anos, Armstrong iniciou os estudos em engenharia aeronáutica na Universidade de Purdue, depois de desistir de ingressar no renomado Massachusetts Institute of Technology (MIT), para não ter que viver muito longe de casa. Com uma bolsa de estudos oferecida pela Marinha, ele se comprometeu a três anos de serviço militar e precisou lutar na Guerra da Coreia antes de retomar os estudos.

Em maio de 1952 / Crédito: Wikimedia Commons

Depois de deixar a Marinha, em 1952, voltou a Purdue, onde conheceu Janet Shearon, uma estudante de economia doméstica. Casaram-se quatro anos mais tarde, quando Armstrong já trabalhava como piloto de testes para a Naca, agência que em 1958 se transformaria na Nasa. Selecionado para a segunda turma de astronautas, Os Novos Nove, como ficaram conhecidos pela mídia, Armstrong se tornou o primeiro civil americano a ir ao espaço quando voou com a Gemini 8. Ao contrário de Buzz Aldrin, chamava pouca atenção e era bem menos contestador que o futuro parceiro, o que agradava o comando da Nasa.

Armstrong, porém, tinha plena noção do significado do primeiro passo na Lua, tanto que não fez menção de declinar da chance de ser o primeiro a deixar o módulo. A atitude ajudou a esfriar sua relação com Buzz, e os dois raramente foram vistos juntos publicamente depois da missão. Ao comentar a morte de Armstrong, em 2012, numa entrevista ao jornal britânico Daily Telegraph, Aldrin deixou um alfinete em meio à seda rasgada. "Creio que éramos amigos. Neil foi um piloto fenomenal e fundamental para o sucesso da Apollo. Mas ele não era nada fácil de lidar", disse.

O fato, entretanto, é que Armstrong poderia até ter privado Aldrin da ida à Lua. Quando recebeu o convite para comandar a Apollo 11, numa reunião com Donald Deke Slayton, foi avisado pelo então diretor de Operações da Nasa de que ele tinha restrições à participação de Aldrin na missão. Na ocasião, a despeito da disputa, Armstrong declarou considerar a experiência do colega importante para o voo.

Medo do assédio

Curioso pensar como Aldrin teria reagido no retorno à Terra se tivesse sido ele o personagem principal de uma missão cujo sucesso ainda encanta cientistas e o público em geral. Para ter uma ideia do arrojo tecnológico, uma calculadora de bolso tinha capacidade de processamento maior que os computadores da Apollo 11, que mesmo assim foram capazes de guiar a espaçonave numa viagem de volta de mais de 700 mil quilômetros. Isso ainda que o talento humano tenha sido fundamental em momentos como o pouso lunar.

O primeiro homem a pisar em outro mundo encarou a enormidade de seu feito de uma maneira quase monástica. "Neil nunca se sentiu à vontade no papel de herói. Ele queria voltar a voar, mas de jeito nenhum a Nasa se arriscaria a ver algo acontecer com ele. Imagine a repercussão se Neil morresse numa das missões Apollo seguintes", explica Hansen.

Depois de participar de uma longa turnê de celebração e que incluiu uma visita à URSS, na qual foi recebido por autoridades e por colegas ilustres como Valentina Terechkova (Gagarin morrera em 1968, na queda de um avião de testes), Armstrong assumiu um cargo administrativo na Nasa. Mas deixou a agência de vez em 1971 para dar aulas de engenharia aeroespacial na Universidade de Cincinnati. Ficou lá por oito anos e, embora seu pedido de demissão em 1979 jamais tenha sido bem explicado, Hansen sugere que o astronauta tinha problemas para lidar com o assédio. "Ele se preocupava com o impacto da notoriedade também na vida de sua família. Temia pela segurança deles, pois houve ocasiões em que fãs apareceram na porta de sua casa ou espiavam pelas janelas", explica o biógrafo.

Com os pés na Lua / Crédito: Wikimedia Commons

O comportamento arredio de Armstrong tinha explicação na história de seu ídolo, Charles Lindbergh, o primeiro homem a cruzar o Atlântico e cuja fama teve a consequência trágica do rapto e morte de seu filho, ainda bebê. Além de idolatrar Lindbergh quando criança, o astronauta encontrou o então recluso aviador em 1968, um ano antes da viagem lunar, e dali nasceu uma amizade que durou até a morte de Lindbergh, em 1974.

Embora tenha aceitado postos em diretorias de grandes empresas, incluindo a companhia aérea United, Armstrong nem de longe se aproveitou para lucrar com sua fama. Tampouco seguiu os passos de colegas como John Glenn e Harrison Smith, que se bandearam para a política e se tornaram senadores. Raríssimas aparições na mídia e mesmo nos encontros comemorativos da missão Apollo deram o tom de sua vida.

Entre as poucas situações em que esteve sob holofotes, ele fez parte da comissão que investigou a explosão do ônibus espacial Challenger, em 1986, a convite do então presidente dos EUA, Ronald Reagan. Sua relação com o público esfriou ainda mais em 1994: depois de descobrir que cópias de seus autógrafos estavam sendo vendidas, ele parou de distribuir assinaturas. Chegou ao ponto de processar seu barbeiro depois da notícia de que ele vendera mechas de seu cabelo por US$ 3 mil para um colecionador.

"Neil sempre foi um herói relutante. Ele permaneceu a mesma pessoa antes e depois da Apollo 11", disse John Glenn numa entrevista à CNN em 2012. Armstrong saiu da toca apenas para celebrações especiais da Nasa e para defender a manutenção de investimentos do governo americano no programa espacial. Em 2010, ele e dois ex-companheiros de empreitada, Jim Lovell (o comandante da Apollo 13) e Eugene Cernan, o 12º homem a pisar a superfície da Lua, protestaram contra a decisão do presidente Barack Obama de cancelar planos para um retorno ao satélite.

Se irritaram Buzz Aldrin a ponto de o astronauta uma vez agredir um entrevistador, as teorias em torno de uma imensa falsificação das missões lunares nunca pareceram mexer com Neil Armstrong. Em mais de 60 horas de conversas, Hansen lembra que o entrevistado deu de ombros quando o assunto veio à tona. O que o tirava do sério eram os rumores de que ele havia passado por uma epifania na Lua e se convertido ao islamismo. "Isso o incomodava particularmente, sobretudo porque nunca foi fervorosamente religioso. Ele acreditava numa entidade superior, mas foi muito mais um homem da ciência. Buzz Aldrin foi quem comungou no módulo lunar", pondera o biógrafo.

Da discreta vida pessoal de Armstrong, sabe-se que em 1994 ele se divorciou de Janet e se casou com Carol Knight. A união durou 18 anos: em 7 de agosto de 2012, ele se submeteu a uma cirurgia para o desbloqueio de coronárias e morreu duas semanas depois, aos 82 anos. Tributos emocionados de Aldrin e Collins e um festival de homenagens, que incluíram uma campanha no Twitter para que as pessoas piscassem para a Lua, marcaram as despedidas. Cremado, ele teve suas cinzas lançadas no mar.

Em sua última entrevista, gravada para o Instituto de Auditores da Austrália, em 2011 (um incrível furo de reportagem obtido por motivos sentimentais, já que o pai do astronauta era auditor), Armstrong discorreu durante 48 minutos sobre uma variedade de assuntos. Disponível na internet, a conversa é reveladora.

Ao comentar sobre suas lembranças da missão, ele diz apenas que foi uma experiência memorável, mas curta. "Não estávamos na Lua para meditar, mas para realizar experimentos. Então trabalhamos", resumiu o americano que passou cerca de 21 horas em solo lunar. Mas foi a esperança de que os cortes no programa espacial fossem revertidos num futuro próximo que fez a voz de Armstrong ecoar mais forte na conversa. "Eu sei que algum dia o homem vai voar de volta para a Lua. E, quem sabe, buscar a câmera que deixei lá."