Em 1998, restos mortais de menino de 4 anos, enterrado 29 mil anos antes, surpreendeu pesquisadores
Publicado em 24/08/2023, às 17h28 - Atualizado em 20/09/2023, às 21h32
Há cerca de 29 mil anos, uma criança de 4 anos foi sepultada no que hoje é o Lagar Velho, no vale do Lapedo, cerca de 150 quilômetros de Lisboa, capital portuguesa. A causa da morte da vítima ainda é um mistério, visto que não há sinais de doença ou queda.
O menino pode ter comido um cogumelo venenoso ou pode ter se afogado", teoriza a arqueóloga Ana Cristina Araújo à BBC.
Mas o que tornou o cenário ainda mais misterioso foi outro ponto: quando o Menino de Lapedo — ainda que não exista certeza de que a criança era do sexo masculino, apenas indícios — foi encontrado, em 1998, seus restos mortais estavam praticamente intactos.
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Na época, o achado foi feito de forma repentina, mas ajudou a provocar uma revolução nos estudos sobre a evolução humana.
Em meados de 1998, os proprietários do terreno onde o corpo descansava começaram uma escavação para a construção de uma série de estruturas em terraços. Mas tudo mudou quando o esqueleto foi encontrado no local.
O que chamou a atenção, explicou João Zilhão, arqueólogo e líder da equipe responsável pela descoberta, foi a anatomia da criança: "Quando encontramos a mandíbula, sabíamos que seria um humano moderno, mas quando expusemos o esqueleto completo (...) vimos que tinha as proporções corporais de um Neandertal", disse à BBC.
O único ponto que poderia explicar tais características era simples: os neandertais e os humanos modernos haviam cruzado. Mas até o final daquela década, se pensava que as espécies eram diferentes. Ou seja, atos sexuais entre elas era um ponto totalmente descartado.
Ana Cristina ainda revelou detalhes sobre o enterro do Menino de Lapedo, que pertenceu a uma comunidade de caçadores-coletores nômade: quando a criança morreu, um buraco foi feito no chão. Na cavidade, galhos de pinheiro foram queimados, no qual o corpo foi depositado e envolto em uma mortalha tingida de ocre sobre as cinzas.
Após a descoberta no final do século passado, o Menino de Lapedo foi transferido para o Museu Nacional de Lisboa. Foi assim que um estudo mais aprofundado sobre a criança teve o seu ponto de partida.
Os ossos das pernas eram mais curtos do que o normal para uma criança da idade dele. Como as pernas poderiam parecer de um neandertal?", questiona o arqueólogo. "Alguns dentes também pareciam de um neandertal, enquanto outros pareciam de um humano moderno. Como explicar isso?".
Com tantas peguntas deixadas por uma criatura tão jovem, duas linhas de pensamento surgiram: a primeira era que a criança seria fruto da relação entre um neandertal e um humano moderno.
A hipótese, no entanto, não apeteceu Zilhão tanto assim. O pesquisador tinha uma grande descrença sobre a teoria. Afinal, se o ato foi um evento único, eventual e raro, a chance de encontrar evidências sobre a dúvida após tanto tempo assim era praticamente irreal.
A segunda possibilidade é que a relação sexual entre neandertais e Homo sapiens eram muito mais regulares. "Sabíamos que na Península Ibérica o momento do contato (entre os dois) foi há cerca de 37 mil anos", contextualiza o líder da descoberta.
Se o esqueleto pertencesse a essa época, a primeira teoria poderia funcionar. Mas se o menino era de um período muito mais tardio, as implicações tinham que ser que estávamos olhando para um processo em nível populacional, não um encontro casual entre dois indivíduos", explica.
Com a datação feita por rádio carbono, foi descoberto que o Menino de Lapedo tinha cerca de 29 mil anos — o que corrobora com a segunda hipótese. "Se tantos milênios após o tempo de contato, as pessoas que vivem nesta parte do mundo ainda apresentam evidências anatômicas dessa população ancestral de neandertais, deve ser porque o cruzamento não aconteceu apenas uma vez, foi a norma", reflete Zilhão.
Com todas as evidências apresentadas pela descoberta do Menino de Lapedo, a forma que os pesquisadores entendiam os neandertais teve de ser revista — passando a enxergá-los, não mais, como uma espécie diferente.
Nós superinterpretamos pequenas diferenças no esqueleto facial ou na robustez do esqueleto", explica o arqueólogo.
Além disso, posteriormente, repercute a BBC, outros fósseis com características semelhantes ao Menino de Lapedo foram encontrados — o que ajudou a reforçar ainda mais a hipótese do cruzamento com humanos modernos.
O achado feito em 1998 possibilitou descobrir que os europeus e os asiáticos possuem até 4% do DNA neandertal. "Isso não quer dizer que em cada um de nós 2% ou 4% seja (neandertal). Na verdade, se você juntar todas as partes do genoma neandertal que ainda persistem, isso é quase 50% ou 70% do que era especificamente neandertal. Portanto, o genoma neandertal persistiu quase em sua totalidade", informou Zilhão.
Por fim, João Zilhão aponta que o estudo possibilitado pela descoberta do Menino de Lapedo "enriquece a nossa compreensão da evolução humana".
"[Ao invés de] pensar que apenas descendemos de uma população muito pequena que viveu em algum lugar da África há 250 mil anos e que o resto das pessoas que viveram nessa época simplesmente desapareceram", finaliza.