Ele acabou com a transmissão de poder hereditária e abriu o acesso aos altos cargos do governo para todos os cidadãos
Na Grécia antiga, os aristocratas tinham tanto orgulho de sua origem que se diziam descendentes dos deuses. Cada família recitava a longa lista de antepassados até chegar ao patriarca divino. Com Sólon (638-558 a.C.), não foi diferente: ele traçava sua origem até Poseidon, o deus grego dos mares. Mas, diferentemente dos outros nobres, Sólon se importava com os "reles mortais" e dedicou a vida a construir uma sociedade mais justa e igualitária. Tanto que os historiadores o consideram o pai da democracia ateniense.
"Sólon integra a lista dos Sete Sábios da Grécia ao lado de figuras como o matemático Tales de Mileto", diz o filósofo Ron Owens, da Universidade de Newcastle (Austrália), no livro Solon of Athens (Sólon de Atenas, inédito no Brasil). "Foram feitas várias listas dos sete sábios, e Sólon está em todas elas. Sua influência não era mesmo de desprezar: ao menos 115 autoridades do mundo antigo o mencionam em seus escritos, entre eles Aristóteles (384-322 a.C.)."
Apesar da glória entre seus pares, Sólon é hoje quase um ilustre desconhecido. Sempre que se fala em Atenas, vêm à mente filósofos e matemáticos, mas nunca um sujeito como ele - misto de mercador, poeta e legislador. Afinal, quem foi Sólon? E o que ele agregou à história das ideias?
Sólon nasceu provavelmente em 638 a.C., em Atenas, numa família nobre em decadência. A Grécia estava dividida em dezenas de cidades-estados (poleis, plural de pólis), com governos independentes e uma cultura religiosa comum. Em Atenas, mandava a aristocracia dos eupátridas (os "bem nascidos"), que nomeavam arcontes (magistrados) para legislar em causa própria. Os pobres não tinham acesso ao poder político e muitas vezes pagavam suas dívidas com escravidão.
Sólon presenciou essas injustiças ainda jovem, quando embarcou em viagens mercantes para tentar recompor a fortuna da família. Ele viu que artesãos e pequenos proprietários de terras eram alijados das decisões políticas e sempre perdiam para os nobres em disputas judiciais.
"A maioria dos camponeses era leal aos aristocratas porque dependia deles para se proteger dos inimigos de Atenas. Mas a população em geral estava cada vez mais insatisfeita", diz o historiador Bernard Randall no livro Solon: The Lawmaker of Athens (Sólon, o Legislador de Atenas, inédito no Brasil).
A oligarquia vetava até os mercadores que enriqueceram com o comércio entre a Grécia e o mundo mediterrâneo. Eles tinham dinheiro suficiente para adquirir armas e terras e por isso esperavam obter uma fatia do poder político. Mas continuaram fora do Areópago, o conselho que escolhia os magistrados. Sua única chance de ganhar uma causa na Justiça era molhando a mão do juiz.
"Com o tempo, mais mercadores se tornaram ricos e viram que a única forma de obter poder seria por meio da força", diz Randall. De fato, ao longo do século 7 a.C., vários tiranos deram golpes em oligarquias gregas com o apoio dos novos-ricos. Em 632 a.C., o nobre Cylon tentou usurpar o poder em Atenas com o respaldo da ilha vizinha de Megara, onde seu sogro governava com mão de ferro. Mas o plano falhou e Cylon deu no pé.
Em 621 a.C., para tentar botar ordem no caos, o arconte Drácon elaborou um código de leis duríssimas contra o crime. Um simples roubo era punido com a morte. Não é à toa que "draconiano" virou sinônimo de extrema rigidez. No entanto, nem mesmo as leis de Drácon acalmaram os ânimos.
Sólon foi o primeiro poeta ateniense cujos versos sobreviveram até nossos dias. Fragmentos de sua obra, citados por Plutarco (46-120) e outros filósofos, mostram que ele denunciava as iniquidades da época. E nem por isso ele deixou de ser respeitado pelos nobres. Aliás, sempre manteve a fama de sábio e justo.
Sua entrada na política aconteceu durante uma guerra entre Atenas e Megara pela soberania da ilha de Salamina (onde nasceu). Não há registros precisos, mas estima-se que milhares de atenienses tenham morrido em combate. O governo teria até jogado a toalha, mas tudo mudou quando Sólon correu para a ágora (praça principal da pólis) e declamou uma ode a Salamina.
"Prefiro renunciar a minha cidade natal e me tornar cidadão de Folegandros (minúscula ilha grega no mar Egeu) a continuar sendo chamado de ateniense, marcado pela vergonha da rendição de Salamina!", teria dito, motivando os conterrâneos a retornar à batalha.
Segundo Plutarco, Sólon teve papel ativo na estratégia militar que debilitou o inimigo e levou Atenas à vitória. Foi assim que ganhou fama de soldado. Em 594 a.C., foi nomeado arconte e realizou reformas que ajudaram a cimentar o caminho ateniense rumo à democracia.
Sua primeira medida foi promulgar um código de leis escritas que aboliu a escravidão por dívida e proibiu os homens de vender filhas e irmãs. Também alterou o código penal de Drácon. Segundo a nova lei, o ladrão teria de compensar a vítima com o dobro do valor do produto roubado. Ao que tudo indica, o arconte poeta só manteve a pena capital para os homicidas.
Talvez a grande sacada de Sólon tenha sido substituir o sistema de poder hereditário por outro baseado no dinheiro. Parece injusto, mas foi uma forma de aproveitar a mobilidade social para ampliar o acesso ao poder político. Classificou os habitantes em 4 classes. No topo, estavam os pentacosiomedimnos, donos de terras. Abaixo vinham os hippeis, que tinham grana suficiente para manter um cavalo a serviço do Estado nas guerras - um luxo para poucos. Em seguida, estavam os zeugitas (a "classe média") e finalmente os tetes, os mais pobres.
Quanto mais rico o cidadão, maior o cargo público que ele podia ocupar. Para quem viveu nesse tempo, quando o poder se perpetuava entre os mesmos sobrenomes, essa foi uma bela mudança rumo à democracia. Como muita gente podia acumular certa riqueza - graças ao comércio crescente, por exemplo -, o novo sistema era mais igualitário que o anterior.
Os tetes não podiam disputar os cargos, pois temia-se que fossem mais propensos a receber propinas. Mas Sólon lhes deu o direito de se defender nos processos judiciais e integrar o júri. Mais importante: deu sinal verde para que o cidadão com mais de 18 anos participasse da Ekklesia (Assembleia), inclusive os tetes (mas não os escravos, pois eles não eram considerados cidadãos). A Assembleia promulgava leis e decretos, decidia a concessão de privilégios, servia de palco para debates políticos e influía na escolha de arcontes (magistrados). Portanto, quem diria, os mais pobres podiam influir na formação do temível Areópago.
A pauta da Ekklesia era definida pelo Conselho dos 400 (formado por 400 cidadãos de todas as classes, exceto os tetes). As mulheres não votavam, mas justiça seja feita: no Brasil, o voto feminino só foi instituído em 1934.
"Assim como o filósofo Sócrates (469-399 a.C.), Sólon tentou criar pontes entre os extremos da sociedade e uma nova unidade dentro do Estado", diz Victor Ehrenberg em From Solon to Socrates (De Sólon a Sócrates). "Ambos são símbolos da moderação e clareza mental que fizeram a grandeza de Atenas." Em 561 a.C., 30 anos depois das reformas, o tirano Psístrato usurpou o poder em Atenas - com a bênção do Conselho dos 400.
Ao saber da notícia, Sólon interrompeu uma longa viagem pelo Egito e Chipre e retornou a Atenas para tentar mobilizar a massa. Não conseguiu. Mas a democracia continuou evoluindo mesmo após sua morte (3 anos depois). Em 508 a.C., suas reformas foram levadas adiante pelo legislador grego Clístenes. E, no século 5 a.C., continuaram com Péricles e Efialtes.
"O principal método de escolha para cargos públicos era o sorteio, tido como o mais igualitário", diz o cientista político Robert Dahl no livro Sobre a Democracia. Para ele, um cidadão ateniense tinha uma chance razoável de ser sorteado ao menos uma vez na vida.
Segundo alguns historiadores, Sólon decepcionou muita gente. Os ricos diziam que suas inovações foram longe demais, e os pobres reclamavam que foram insuficientes (queriam a reforma agrária). Nem o sábio conseguiu agradar a gregos e troianos.
Solon of Athens, Ron Owens, Sussex Academic Press, Canadá, 2010.